sábado, 2 de novembro de 2019

Misha Glenny* - O triunfo e tragédia 1989

- Eu &Fim de Semana / Valor Econômico

Otimismo com a queda do Muro de Berlim, há 30 anos, dá lugar a era de intolerância

Nos anos 80, eu sempre me sentia aliviado ao chegar à Hungria vindo da austera Tchecoslováquia ou da prisão ao ar livre que era a Romênia. Na verdade, naquele período, até mesmo identificar a Hungria como “comunista” já seria forçar a barra. Com um pé no lado ocidental e outro no oriental, o país era descrito desde meados dos anos 60 como “a barraca mais animada do acampamento”.

Por baixo do verniz, no entanto, uma polícia secreta ativa assediava, intimidava e aprisionava a oposição democrática. Esse grupo abrangente de dissidentes teve papel vital em sustentar nos anos 80 os ideais da antiga Revolução Húngara de 1956. O grupo, no entanto, basicamente formado por intelectuais e veteranos daquela revolução, não conseguia arregimentar grande apoio entre as pessoas comuns.

Mas, em 1988, emergiu uma força enérgica e radical. Esse novo grupo fez questão de apenas aceitar membros com menos de 35 anos. Os jovens tomaram as ruas sob sua liderança em números que não se viam desde 1956. Lembro deles marchando ao Orszaghaz, o prédio do Parlamento em Budapeste. Eram destemidos. Marchavam sob o estandarte do Fidesz - a Aliança dos Jovens Democratas.

À frente estava um jovem carismático e bem articulado, proclamando que a era dos comunistas estava chegando ao fim. Ele tinha um inglês excelente e durante esse período o entrevistei em algumas ocasiões para ouvir seu ponto de vista sobre o futuro: democracia multipartidária, liberdade de expressão, imprensa livre e liberdade de reunião. Ele, sem dúvida, me convenceu.
Desde então, Viktor Orbán seguiu em frente e convenceu milhões de húngaros. Só que sua mensagem mudou. Agora, o outrora fervente democrata é o inventor de um híbrido peculiar, a “democracia iliberal”. Ele é a própria personificação dos últimos 30 anos: do autoritarismo à liberdade e da liberdade de volta a um certo tipo de autoritarismo.

Atolados como estamos agora em uma nova era de nacionalismo e intolerância, é difícil conjurar a euforia e o otimismo daqueles dias de novembro de 1989, da queda do Muro de Berlim. A partir de 1991, a violência extrema do desmembramento da Iugoslávia foi um alerta inicial para as sérias dificuldades que seriam enfrentadas pela transição do comunismo ao capitalismo.
Por toda a região, os governos de dissidentes e especialistas técnicos que tomavam posse estavam completamente quebrados. A União Europeia oferecia palavras cordiais e começava a contemplar um plano de integração. A Alemanha, em especial, mas a França também, fez investimentos pesados nas economias da Europa Central.

O Ocidente, entretanto, também encorajou uma passagem rápida, e muitas vezes traumática, das economias de planejamento central para o livre mercado, uma transformação para a qual as enferrujadas instituições dos Estados comunistas não estavam preparadas. O resultado rapidamente ganhou um apelido brutalmente honesto: capitalismo gângster.

Para compreender a emergência de uma cultura de corrupção e a devastação infligida pelo crime organizado, primeiro é preciso voltar ao próprio ápice da Guerra Fria, quando comecei a visitar os países comunistas - primeiro como turista, depois como jornalista e, por alguns poucos anos inebriantes na década de 80, como ativista contrabandeando mensagens de dissidentes sitiados.

Em minha memória, uma neblina fria sempre me acompanhava quando cruzava do Oeste para o Leste. Isso não tem como ser verdade, mas talvez minha primeira viagem a Varsóvia, Leningrado e Moscou em 1973 tenha ficado gravada em meu inconsciente. Eu tinha apenas 15 anos, e um professor atipicamente iluminado em minha escola achava que a viagem estudantil daquele ano deveria ser para Moscou e São Petersburgo. Embora fosse quase maio, a neve ainda caía e a noite chegava cedo.

Minha lembrança mais vívida é a de um pequeno grupo de homens e mulheres idosos em Moscou entrando em uma igreja para celebrar a Páscoa. Um grupo de marginais empurrava e caçoava dos fiéis velhos enquanto oficiais da polícia e da KGB olhavam achando engraçado. Senti uma mistura de medo, curiosidade e indignação que se tornaria bastante familiar ao longo dos 15 anos seguintes.

Naquela viagem, pela primeira vez troquei dinheiro no mercado paralelo e o usei para comprar um legítimo cinto do Exército soviético. Enquanto eu passava alguns rublos ao duvidoso vendedor, meu coração girava em rotação máxima. Não conseguia deixar de imaginar o pior desfecho possível - sendo trancafiado em alguma cela da Lubianka, a sede da KGB em Moscou. Foi um alívio total. Meu negociante não era nenhum enganador, e fiquei exultante com minha compra.

O mercado negro era intrínseco à vida no Leste Europeu. Até em países relativamente avançados como Hungria ou Tchecoslováquia, as filas eram uma realidade diária, e não apenas para luxos. Lembro-me de entrar na Kotva, a loja de departamentos símbolo de Praga, e deparar-me com prateleiras e prateleiras de picles de pepinos na seção de frutas e vegetais. E nada mais. Se você precisasse de algo especializado como um carburador ou uma peça de máquina de lavar, havia pouca opção a não ser recorrer ao mercado paralelo.

Itens ocidentais proibidos, como cópias da revista “Playboy” ou videocassetes, atingiam os preços mais altos. Pessoas com parentes no campo tinham vantagem no que se referia a garantir as vitaminas necessárias para obter uma dieta equilibrada. Cada país tinha sua palavra que podia ser traduzida como “conexões”, o eixo linguístico em torno ao qual girava a economia informal. Sem “conexões”, a vida era verdadeiramente miserável (mesmo se você as tivesse, já não era lá essas coisas).

Ao longo dos anos 70 e 80, continuei voltando. Fascinado pela atmosfera paranoica que existia ao longo do bloco, acostumei-me aos rituais de atravessar fronteiras: os intrusivos formulários sem sentido a preencher; o olhar carrancudo dos guardas de fronteira; e, do outro lado, a uniformidade visual sem graça dos Estados de partido único. Ocasionalmente, frases de efeito gigantes adornavam prédios que se esfarelavam: “Vamos cumprir as resoluções do 16º Congresso do Partido Comunista da Tchecoslováquia” e outras frases do tipo que se destacavam pela falta de sentido.

Como os regimes comunistas buscavam controlar tão vorazmente a esfera pública, a vida interior era ainda mais importante. No local de trabalho, as pessoas podiam relutantemente mimetizar a linha partidária, mas, em casa, se empenhavam em filosofia, política, história e questões sociais com uma intensidade raramente vista no Ocidente. As amizades formadas tinham raízes profundas, porque a confiança, inexistente na vida pública, era commodity preciosa.

Em 1981, ganhei uma bolsa de pós-graduação do British Council para estudar em Praga. Juntei-me a um grupo excêntrico aspirante a acadêmico - um ano de pesquisas na Tchecoslováquia comunista não era visto como uma das vias mais rápidas para uma carreira de sucesso na época. Aprender tcheco e, depois, outras línguas eslavas, no entanto, mostraria ser um divisor de águas e me colocaria no caminho para virar um escritor.

Além de passar o tempo e tornar-me “conoisseur” das lendárias cervejas da Boêmia, ganhei dinheiro gravando locuções em off, em inglês, para produtos como a linha de tratores eslovacos Zetor. Também ajudei meu amigo, hoje morto, Olda Cerny, então chefe de dublagem nos estúdios Barrandov. Juntos traduzíamos filmes ao tcheco. Muitos anos depois, quando me vi ao lado do ator John Hurt em um jantar, pude dizer a ele que sabia todas suas falas em “Alien, o Oitavo Passageiro”, em tcheco.

Olda não estava na lista de dissidentes da polícia secreta, então não sofria perseguição. Ainda assim, foi um dos defensores silenciosos do movimento de oposição Carta 77. Ele não assinou a carta em si, mas traduzia seus documentos e artigos para que fossem contrabandeados para o Ocidente - e ele me chamou para ajudá-lo.

Ao voltar a Londres em 1982, contribuí para uma notável revista, a “Labour Focus on Eastern Europe”. A publicação era uma espécie de porta-voz de um grupo diverso de esquerdistas que apoiavam a luta pelos direitos democráticos no Leste Europeu. Sua maior força estava nos laços com o movimento sindical independente polonês Solidariedade, cuja emergência em 1980 sacudiu as fundações do mundo comunista. A revista “Labour Focus” muitas vezes dava furos na mídia tradicional quando dissidentes soviéticos e do Leste Europeu contrabandeavam informações sobre abusos dos direitos humanos.

Ainda assim, muitos no Reino Unido, incluindo vários do Partido Trabalhista, viam a “Labour Focus” com suspeita e hostilidade. Nas incontáveis discussões que tive com eles em meu Partido Trabalhista local ou na União Nacional dos Estudantes, eles consideravam a União Soviética e seus satélites o menos pior entre os dois males na Guerra Fria. Qualquer coisa que prejudicasse os soviéticos era, por implicação, obra de subservientes ajudando os Estados Unidos. Concluí que, apesar de todas suas credenciais de consciência social, a maioria não reconheceria um movimento genuíno de trabalhadores como o Solidariedade nem se tropeçasse nele.

A relutância em criticar o autoritarismo no lado oriental (um traço observável ainda hoje na liderança trabalhista) foi um presente para Margaret Thatcher e o conservadorismo ocidental. Habilidosamente, ela integrou a resistência ao status quo no Leste Europeu em sua narrativa política. Ironicamente, ela enaltecia o heroísmo da luta dos trabalhadores na Polônia enquanto destruía o poder dos sindicatos no Reino Unido.

Foi necessário que ativistas determinados como o historiador E. P. Thompson e a cientista política Mary Kaldor ajudassem a dar vida nova a um movimento conjunto Oriente-Ocidente pelo desarmamento nuclear na Europa no início dos anos 80 para que a esquerda, muito tardiamente, começasse a levar a sério a oposição no Leste Europeu.

Nesse momento, juntei-me a dezenas de ativistas de todos os espectros ideológicos que se empenhavam em um dos grupos de contrabando mais persistentes da Guerra Fria. Minha acanhada criminalidade, então, começou a ganhar vida própria - mas eu ainda precisava tornar-me mais profissional.

Peguei um trem de Viena a Budapeste como tarefa de reconhecimento. Ele era composto de diferentes tipos de vagões, pertencentes a ferrovias romenas, húngaras, austríacas e da Alemanha Oriental, que fui estudando casualmente em busca de lugares para esconder mercadorias. Os vagões romenos, de tão mal construídos, eram um sonho. De trás de um banheiro imundo, encontrei um painel que era possível levantar à faca. Da vez seguinte em que viajei, consegui esconder peças de uma máquina da Xerox desmontada quando saímos de Viena e recuperá-las depois de cruzar a fronteira. Na capital húngara, dei um jeito de chegar ao esconderijo onde entreguei o equipamento a Laszlo Rajk Jr. e Gabor Demszky, dois dos mais carismáticos líderes da oposição húngara.

Como jovem idealista de 21 anos, estendi timidamente minha mão a Rajk, sentindo que estava tocando a história. Alto, com uma forte voz grave e um charme idiossincrático, ele era filho da mais famosa vítima dos julgamentos stalinistas promovidos como espetáculos no início dos anos 50 por todo o Leste Europeu. No mês passado, ao ouvir que Rajk havia morrido, chorei por dentro ao lembrar daquele primeiro encontro.

O momento mais memorável de minha história com o Leste Europeu viria em 24 de novembro de 1989. Estava na antecâmara que dava para um balcão sobre a praça Venceslau, onde os líderes da Revolução de Veludo falavam para a multidão que ocupava o bulevar abaixo. Alexander Dubcek, o grande herói da Primavera de Praga em 1968, sorriu enquanto passou por mim para falar à multidão. Ele cumprimentou os milhões à nossa frente com seu ameno sotaque eslovaco e todos nós na antecâmara fomos varridos pelo êxtase.

O Ocidente estava ávido em participar dessa nova onda de otimismo que se disseminava pelo Leste Europeu. Nesse estado de espírito, era fácil fazer vista grossa aos ocasionais casos indigestos: os surtos de violência em Bucareste ou na Transilvânia; os misteriosos assassinatos em Sofia; ou a repentina proliferação de pornografia explícita, com milhares de jovens mulheres recorrendo ao trabalho sexual para sustentar-se.

A tese de Francis Fukuyama sobre “o fim da história” já soava inconsistente quando foi publicada em 1992, um ano depois de as guerras na Iugoslávia terem irrompido. Claramente, as relações entre as várias nacionalidades iugoslavas e facções religiosas tiveram uma grande responsabilidade na calamidade. Um fator menos óbvio, no entanto, foi a transferência sistemática de ativos estatais para mãos privadas que ocorreu em todo o país sob o nevoeiro da guerra. A cultura das “conexões” (“veze”, em servo-croata) assumiu uma escala industrial brutal. Quando os conflitos acabaram, a nova rede do capitalismo gângster, tecida por uma aliança de políticos, serviços de segurança, oligarcas e crime organizado, havia submetido os ensanguentados Bálcãs a seu firme domínio.

O capitalismo gângster foi replicado de diferentes formas e a diferentes velocidades por todo o antigo mundo comunista - embora normalmente com menos violência do que na Iugoslávia. A forma anárquica de livre mercado ficou mais visível na Rússia, onde era possível fazer grandes fortunas graças à riqueza mineral do país. Para muitos europeus orientais, o crime organizado e a corrupção pareciam estar inextrincavelmente ligados ao livre mercado.

Silenciosamente, burocratas comunistas haviam se preparado por muitos anos para o novo alvorecer capitalista. Na Bulgária, mais de 90% das sociedades anônimas formadas desde 1986 no espírito da perestroika pertenciam a membros da polícia secreta comunista. Depois de terem alertado a população por décadas sobre os males do capitalismo, esses altos funcionários do Partido Comunista agora estavam por mostrar a ela o que isso significava na prática.

Muitos dos dissidentes, tão importantes nas pressões que forçaram as mudanças, foram deixados de lado. Em “A Morte de Danton”, peça de Georg Büchner sobre a Revolução Francesa escrita em 1835, ele diz que “a revolução é como Saturno”. “Devora seus próprios filhos.” No Leste Europeu, não demorou muito para que essas implacáveis e ambiciosas novas forças adotassem tal máxima e jogassem os antigos dissidentes para escanteio.

Václav Havel, que havia escrito o roteiro da Revolução da Veludo na Tchecoslováquia, tornou-se o herói trágico de seu drama. Seu grande oponente, Václav Klaus, o economista que havia virado primeiro-ministro, passou de personagem secundário ressentido a diretor de todo o espetáculo.

Possivelmente o político mais desagradável que já conheci, Klaus rapidamente farejou os pontos fracos de Havel. Como presidente recém-empossado, Havel distraiu-se recebendo líderes intelectuais do mundo, estrelas de Hollywood e músicos como Frank Zappa. Klaus, por sua vez, se ocupava em construir uma poderosa máquina partidária e em testar as águas do populismo em questões como imigração, negação das mudanças climáticas e euroceticismo.

O fracasso dos dissidentes em tornar políticos democráticos eficientes traz importantes lições. Em vários casos, nutriam esperanças totalmente irrealistas sobre a rapidez com que seus países poderiam prosperar no sistema de livre mercado. A União Europeia frisava que o preço de se unir ao bloco envolvia reformas dolorosas - que valiam a pena no longo prazo, mas que sempre traziam o risco de reações contrárias. Depois de meio século sob a tirania do bloco soviético, muitos europeus orientais se ressentiam em juntar-se a outra estrutura supranacional - mesmo que muito mais tolerante e consideravelmente mais rica.

Essa suspeita latente em relação à União Europeia veio à superfície depois da crise financeira de 2008. O próprio modelo que as novas democracias deveriam emular agora se voltava contra elas. Na Hungria, por exemplo, muitos haviam sido encorajados a fazer hipotecas em moedas como o franco suíço e o euro. Quando a crise veio, dezenas de milhares de famílias estavam falidas. Foi nessas circunstâncias que a praga do populismo se disseminou rapidamente.

Poucos no Ocidente previam que o sistema comunista do Leste Europeu iria ruir. Mesmo a CIA só começou a levar a possibilidade a sério em 1988. Os círculos políticos na Alemanha Ocidental foram pegos completamente de surpresa. Embora tenha tido seus momentos espinhosos, a política de dissuasão, baseada na certeza da destruição mútua da ameaça nuclear, havia levado a um aparente equilíbrio. O Ocidente não imaginava que as pessoas comuns iriam superar o temor de tomar as ruas. Afinal, o maior movimento de massa na história do Leste Europeu, o Solidariedade na Polônia, não havia fracassado depois da insurreição em 1980 e 1981?

Independentemente de termos deixado de prever a revolução que se aproximava, todos fomos culpados de presumir que os Havels do mundo iriam guiar o Leste Europeu rumo a um futuro próspero. Eles não o fizeram, é claro. O único verdadeiro dissidente que teve sucesso em manter-se no poder foi Orban - renunciando aos ideais da juventude.

Ainda assim, os idealistas deixaram sua marca. Embora Orban e outros líderes populistas controlem Hungria e Polônia e tenham grande influência na República Tcheca e na Eslováquia, eles enfrentam uma obstinada resistência de grandes partes da população.

Essa resistência se nutre em parte das formidáveis lutas por liberdade que pontuaram os 40 anos de comunismo no Leste Europeu: Hungria (1956), Tchecoslováquia (1968), as greves dos mineiros no Vale Jiu, na Romênia (fim dos anos 70), o Solidariedade, a Carta 77. É graças a essa rica história que as revoluções de 1989 ainda não foram derrotadas por completo. Ainda assim, quando penso em como testemunhei Havel e Dubcek no balcão na praça Venceslau, a sensação é a de que fomos pegos em um sonho jovial e inspirador, mas, no fim das contas, ilusório. (Tradução de Sabino Ahumada)

*Misha Glenny, jornalista britânico de 61 anos, ex- correspondente de “The Guardian” e da BBC na Europa Central, cobriu o colapso do comunismo e as guerras que despedaçaram a ex-Iugoslávia. É autor de “McMáfia” e “Mercado Sombrio”, ambos editados pela Companhia das Letras, entre outros

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