segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Angela Alonso* - O ano do cavalo

- Folha de S. Paulo / Ilustríssima

Bolsonaro desconcertou quem achava que a ferradura presidencial imporia a marcha da cavalgadura

No horóscopo chinês, o animal de 2019 foi o porco, símbolo de paciência e bondade. Lá no lado comunista do mundo, pode ser que esses bons sentimentos tenham predominado. Já no Brasil, sem dúvida, este foi o ano do cavalo. Houve coices para todos os lados e declarações equinas para todos os gostos —ou para todas as faltas dele.

Começou com a posse do Cavalão, apelido de juventude do presidente no Exército. O codinome reporta as qualidades que o destacaram entre os colegas: as atléticas, não as intelectuais. Seu atributo nuclear é a força, como sublinhou o filho Carlos em tuíte depois da facada: “O ‘Cavalão’ passa bem”. “O velho é forte como um cavalo”.

O país logo soube o significado de ter um presidente Cavalão. Se quem apelidou conhecia cavalos, deve ter pensado nos xucros, animais rebeldes à doma, que atacam até quem os alimenta e cordatos apenas sob cabresto. No páreo eleitoral, o xucro venceu o manga-larga e ressuscitou uma maneira de governar que hibernava desde a primeira metade dos anos 1980.

O estilo Bolsonaro revitalizou esta linhagem empoeirada de governantes nacionais que apreciam a cavalgadura. O mandatário anterior a amar os cavalos —e o pau de arara— foi o derradeiro da ditadura. Em 1978, quando um repórter perguntou ao ainda candidato a presidente, indicado pela cúpula militar, se estava gostando do “cheiro de povo”, o general Figueiredo respondeu que “o cheirinho do cavalo é melhor”.

Depois da redemocratização, os bichos do horóscopo foram talvez menos cheirosos, mas mais educados. Tucanos e Lulas brigaram no bosque que vai do centro à esquerda, mas jamais chicotearam adversários com o vocabulário de estábulo que atualmente grassa no pasto da extrema direita.

Mesmo os vizinhos do gramado à direita, Sarney e Temer, suportaram com galhardia as piadinhas infames sobre maribondos e morcegos. Bem ou mal, todos os presidentes pós-ditadura, até o temperamental Collor, respeitaram a liturgia do cargo e as formalidades democráticas.

Bolsonaro retomou a tradição Figueiredo, desconcertando os que imaginavam que ferradura presidencial imporia a marcha da cavalgadura. Vem sendo o contrário. A quebra da liturgia foi completa, ao ponto de desrespeitar mesmo os bons modos. Já as formalidades democráticas viraram informalidades autoritárias.

O efeito dessa ruptura tem sido bifronte.

Parte da sociedade civil reagiu com indignação e depressão. Foi um ano de dissabores para progressistas, democratas e civilizados, que responderam ao desmonte das políticas de direitos humanos, de cultura e de proteção social e ambiental com críticas sérias e respostas satíricas —como um especial de Natal.

Mas esse lado da sociedade organizada tem dificuldade de reagir propositiva e concertadamente. Defende o que o governo ataca. Contudo não tem logrado se unir em torno de projetos alternativos de sociedade e patrulha os próprios aliados, como soube Marcelo Freixo na negociação das medidas de segurança.

Mas há outro lado da sociedade civil. Desde a redemocratização, quando cientistas sociais e profissionais da política de esquerda falavam em “sociedade civil” pensavam sempre nela como um polo de inovação, modernidade, progressismo. Viam nela o repositório do belo e do bem.

Esqueceram de olhar para seu outro lado, tão sociedade civil quanto, mas feito de igrejas, associações, redes de sociabilidade inclinadas para a tradição, a religião, a família, o conservadorismo. São também os valores do presidente que, ao contrário de Figueiredo, teve votos e foram muitos.

Esta parte conservadora da sociedade civil comemora, desde o fim do páreo eleitoral, a liberdade de trazer à luz do dia valores e condutas guardados no armário desde o fim da ditadura. Não se veem como autoritários, mas como restauradores de uma boa ordem perdida.

A exuberância e a excitação desta parte da sociedade civil está às vistas. Para além da própria agenda afim, a quebra de liturgia presidencial a liberou para dizer o que pensa, exprimir o que sente, agir como acha certo. Nisso o presidente é um abridor de porteiras. Seu mandato franqueou uma estrada boiadeira para a extrema direita orgulhar-se de si mesma, os preconceituosos se exibirem, os violentos executarem.

São duas partes da mesmíssima sociedade. Por mais de três décadas nos acostumamos, em política, ciência, cultura e costumes, ao predomínio de caravanas de mangalargas, agora estamos sob o tropel dos xucros. O ano novo não promete amansá-los. No horóscopo chinês, quem regerá 2020 será o rato.

*Angela Alonso, professora de sociologia da USP e pesquisadora sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

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