domingo, 1 de dezembro de 2019

Bernardo Mello Franco - Armação ilimitada

- O Globo

A polícia paraense prendeu brigadistas acusados de tacar fogo na floresta. A notícia parecia estapafúrdia, e era. Mas foi festejada por se ajustar às ficções de Bolsonaro

Na “nova era”, não basta tomar cuidado com os excessos do guarda da esquina. É preciso se precaver contra as arbitrariedades do delegado, do promotor e do juiz.

Na quarta-feira, a polícia paraense prendeu quatro voluntários que ajudavam a combater incêndios em Alter do Chão. Eles foram acusados de tacar fogo na floresta para receber dólares de ONGs internacionais.

A notícia parecia estapafúrdia — e era. Mesmo assim, foi festejada por Jair Bolsonaro, que se apressou a comemorar o feito das redes sociais.

O caso agradou porque se ajustava a uma das ficções favoritas do presidente. Há meses, ele tenta convencer a plateia de que ambientalistas estariam por trás das queimadas na Amazônia. É uma invencionice conveniente, que desvia o foco da aliança do governo com ruralistas e madeireiros.

Em julho, Bolsonaro recorreu ao embuste quando o Inpe alertou para a escalada do desmatamento. Em vez de reconhecer o problema, ele contestou os números oficiais e disse que o diretor do instituto, um cientista respeitado, estaria “a serviço de alguma ONG”.

No mês seguinte, o presidente fez novas acusações genéricas e sem provas. Afirmou que as queimadas seriam “ação criminosa desses ‘ongueiros’ para chamar a atenção contra a minha pessoa, contra o governo do Brasil”. Ele também atacou o francês Emmanuel Macron, que havia criticado a destruição da floresta, e os governos de Alemanha e Noruega, que suspenderam doações ao Fundo Amazônia.

A impostura se repetiu em outubro, quando Bolsonaro tentou culpar um navio do Greenpeace pelo vazamento de óleo que atingiu o litoral do Nordeste.

Se o presidente pode, todos podem. É o que devem ter pensado as autoridades paraenses. A prisão dos voluntários foi divulgada com estardalhaço. Em pouco tempo, viu-se que o inquérito não continha provas, só convicções.

A transcrição dos grampos indica que a polícia distorceu diálogos e tirou frases de contexto para incriminar o quarteto. A busca por doações para manter a brigada foi apresentada como tentativa de “obter vantagem financeira”. Numa passagem caricata, os investigadores confundiram o uso de maconha com os incêndios criminosos.

A armação começou a ser desmontada quando o Ministério Público Federal informou que “nenhum elemento apontava para a participação de brigadistas ou organizações da sociedade civil” nas queimadas. As investigações da Procuradoria, iniciadas em 2015, apontam grileiros e empresários do setor imobiliário como responsáveis pela degradação ambiental em Alter.

Em meio à fumaça da exploração política, o governador Helder Barbalho determinou a troca do delegado do caso. Em seguida, soube-se que o juiz que mandou prender os jovens pertence a uma família de madeireiros e já atacou uma ONG pelos jornais. Pressionado, ele voltou atrás e ordenou a soltura dos voluntários. Os quatro deixaram a cadeia aos prantos, com as cabeças raspadas.

Bolsonaro não se abalou, só mudou o alvo da tapeação. Na sexta-feira, passou a acusar o ator Leonardo DiCaprio de financiar as queimadas. Deve ter assinado o cheque da proa do Titanic.

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