segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Cacá Diegues - O risco da democracia

- O Globo

Presidente podia se dispor a ouvir mais pirralhas consagradas ou não em capas de importantes revistas cosmopolitas

E os juros foram para um patamar histórico mínimo, o Banco Central acaba de determinar que eles baixem para 4,5%. Isso não vai resolver a questão da miséria no Brasil ou a de nossa vergonhosa desigualdade, mas deve ajudar o país de algum modo. Pelo menos é o que percebo com a excitação dos ricos e a dos que querem ficar ricos. As agências que nos avaliam para investimentos potenciais estão elevando, aos poucos, nossa nota de oportunidades. Como a Standard & Poor’s, que acaba de melhorar nossa avaliação de risco.

A introdução na listagem da Nasdaq da brasileira XP Inc. (aquela que fez propaganda na TV com Luciano Huck), depois de um mais do que bem-sucedido IPO (o IPO é uma emissão primária de ações) em Wall Street, nos envia dois sinais importantes. Primeiro, ficamos sabendo que o capitalismo brasileiro tem agentes novos e criativos, como os jovens liderados pelo empresário Guilherme Benchimol. E, depois, que é possível fortalecer uma empresa nacional, lançá-la no mundo, sem apelar para robôs, fake news e propinas. Sem o Estado.

Com esse sucesso da XP, comemoramos também a confirmação de que estava mesmo equivocada a política econômica de apoio concentrado e irrestrito aos “campões” do capitalismo brasileiro. Para serem atendidos, quase todos aqueles campeões precisaram praticar acordos e manobras de corrupção, comprovados pela devolução da volumosa grana que, com a Lava-Jato, voltou aos cofres públicos. Não podíamos ter prova mais contundente da corrupção instalada no país.

Não sei que outros grupos financeiros, formados por jovens empresários ou não, navegam nesse mesmo mar contemporâneo de economia capitalista. A eles, o governo deveria estar prestando mais atenção. De minha parte, tento desvendar, por exemplo, com alguma pouca e precária leitura, o que vem a ser esse anarco-capitalismo, proclamado por alguns economistas. Como Hélio Beltrão, um de seus mais assíduos defensores em diferentes tribunas.

Em vez de passar tardes de sonho com príncipes árabes assassinos de jornalistas, ou perder tempo puxando o saco do presidente americano que não precisa dele, Bolsonaro podia estar dando voz a essas ideias novas, mesmo se forem aparentemente malucas. Devia promover e incentivar o que ainda não é, para inventar o que será.

Nosso presidente podia se dispor a ouvir mais pirralhas consagradas ou não em capas de importantes revistas cosmopolitas. Revistas que professam uma ideologia muito mais próxima da do nosso presidente, mesmo que ignore a existência dele. Cerca de dois mil anos atrás, um menino revoltou-se contra o ímpio comércio no templo e aprontou contra os vendilhões. Segundo os registros da época, o pirralho se chamava Jesus e tinha 12 anos de idade, quatro a menos que a pirralha Greta, aquela a quem a imprensa dá tanta importância.

A intolerância do governo acaba contagiando a própria oposição. Em breve, poderemos não estar mais sabendo a diferença entre direita e esquerda, porque as duas agem do mesmo modo, com a mesma intolerância e dificuldade de pensar fora da caixinha que cada um traz consigo, repleta de preconceitos e lugares-comuns. Se, na política, essa polarização radical empobrece o país e nos faz temer por sua imbecilização, na cultura ela é o oposto do próprio sentido da matéria. Imagine só protestar contra o tema da próxima Flip, porque a escolha recaiu sobre poeta que, em caráter privado, elogiou vagamente o golpe militar de 1964. O que é enorme diferença para elogios a torturadores ou ameaças com pau de arara.

A festa literária vai ser realizada em torno de Elizabeth Bishop, a maior poeta do continente americano (norte, centro ou sul), no século XX. Uma poeta que também escreveu sobre nós e que entendeu, do seu jeito particular, as agruras do país. O que faríamos então com gênios, como o cristão fundamentalista T.S.Eliot ou como o admirador do fascismo italiano Ezra Pound? Ignoraríamos sua poesia extraordinária? Faríamos o que fizeram, no passado, burocratas como Jdanov, a serviço de Stalin, ou Goebbels, a serviço de Hitler? A democracia é sempre um risco que não podemos deixar de correr. Vale a pena.

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