segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Carlos Pereira - Afinal, quem manda?

- O Estado de S.Paulo

Em uma democracia representativa, a última palavra é dos políticos

Nas últimas semanas, o Supremo Tribunal Federal (STF) tomou duas decisões aparentemente contraditórias no que diz respeito ao combate à corrupção e à impunidade.

Por um lado, decidiu que a execução da pena de um condenado pela Justiça só pode ter início após o trânsito em julgado e não mais a partir da condenação por um colegiado em segundo grau. Por outro, o STF decidiu que os dados coletados pela Receita Federal e pela Unidade de Inteligência Financeira (UIF) – antigo Coaf – podem ser compartilhados, de forma ampla e sem restrições, com o Ministério Público e a polícia sem a necessidade de autorização judicial.

Qual o impacto dessas decisões para os outros Poderes?

Existem pelo menos duas correntes que oferecem respostas a esta pergunta: a dominância burocrática e a dominância congressual. Ambas partem de problemas que políticos eleitos enfrentariam ao delegar poderes para organizações de controle e judiciais.

A perspectiva da dominância burocrática afirma que as organizações de controle ficaram tão profissionalizadas e independentes que não mais seria possível serem controladas pelos políticos que as criaram. Essas organizações se especializaram e desenvolveram “vida própria”, tornando-se insuladas, com vantagens informacionais e alto grau de discricionariedade e, portanto, com capacidade de perseguir seus próprios objetivos e preferências, muitas vezes à revelia das preferências dos Poderes Executivo e Legislativo.

Os pressupostos da perspectiva da dominância burocrática têm sido fortemente contestados pela abordagem da dominância congressual. Existiria um sistema pouco visível, mas muito eficaz, pelo qual os legisladores poderiam controlar as organizações burocráticas e judiciais. Por meio da definição de competências, hierarquias e ritos procedimentais, os políticos teriam como “guiar” essas organizações a fazer escolhas consistentes com as suas preferências. Estrutura e processos das organizações de controle criariam assim um ambiente institucional favorável para que os interesses dos políticos prevalecessem (stack the deck). Mesmo em casos em que as preferências dos políticos venham a se alterar no decorrer do tempo, as organizações de controle e judiciais seguiriam esse novo percurso numa espécie de piloto automático.

Para essa corrente, a independência das organizações de controle e judiciais (entendida como a capacidade de tomar decisões que não seriam alteradas pelos outros Poderes) seria resultado da interação estratégica entre o Legislativo, o Executivo e o Judiciário e não das provisões constitucionais. A independência judicial dependeria das mudanças na composição desses três Poderes governamentais e seria fundamentalmente determinada pela distância entre o Executivo e o Legislativo.

Quando o partido e/ou coalizão do presidente não desfrutam de maioria no Legislativo (governo dividido), a independência das organizações de controle e judiciais tenderia a ser preservada, especialmente por meio do uso de vetos a iniciativas legislativas. Entretanto, o controle unificado do governo enfraqueceria a independência dessas organizações, pois o Executivo e o Legislativo tenderiam a se coordenar mais facilmente e implementar mudanças que venham a fragilizar a independência dos controles judiciais.

Como a decisão pela ampla maioria dos ministros do STF em relação ao compartilhamento de dados da Receita Federal e da UIF parece ter sido consistente com a preferência majoritária dos políticos em um ambiente em que o presidente não desfruta de maioria no Legislativo, não são esperadas interferências dos outros Poderes fragilizando a independência judicial.

O mesmo não pode ser dito em relação à decisão apertada quanto ao início da execução da pena do condenado após o trânsito em julgado. Se a abordagem da dominância congressual estiver correta, é esperado que o Legislativo mude a decisão do STF e restabeleça o início da execução da pena a partir da condenação em segunda instância. Afinal de contas, quem manda em uma democracia representativa?

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