sábado, 28 de dezembro de 2019

Daniel Aarão Reis - Ócio e preguiça

- O Globo

Há desconfiança em relação às instituições políticas, desejo de reforma, conferindo-se protagonismo às gentes

‘O governo está surdo, cego e mudo em relação às demandas dos chilenos”. A autora da frase é Patricia Lillo, coordenadora do Coletivo Não + AFP (Administradoras dos Fundos de Pensão) em Santiago. Desde meados de outubro, a população nas ruas protesta contra as desigualdades sociais, a degradação dos serviços públicos e, em especial, o regime de aposentadorias, controlado por meia dúzia de bancos, para o qual só contribuem os trabalhadores. Para mais de metade das pessoas, paga-se uma pensão equivalente a menos de meio salário mínimo. Depois de grandes embates, impôs-se a elaboração de uma nova Constituição para superar a atual, legada pela ditadura do sinistro general Pinochet.

Em suas lutas, como assinalou Manuel Castells, os chilenos não estão sós.

Na América do Sul, no Equador e na Colômbia, movimentos de rua, nos últimos meses, conseguiram fazer com que os governos retirassem propostas atentatórias aos interesses e direitos das maiorias.

No norte da África, na Argélia, desde fevereiro, dezenas de milhares de pessoas nas ruas levaram de roldão um presidente que desejava eternizar-se no poder e agora questionam como farsescas eleições concedidas pelos militares no poder. Querem o fim do “sistema”, uma ditadura instaurada desde a Independência, em 1962, acusada de ter “roubado o país e nos roubado tudo”.

Em Beirute, capital do Líbano, desde meados de outubro, multidões, por cima de diferenças religiosas, algo inédito na história do país, estão nas praças públicas protestando contra as intrigas e a corrupção endêmica que gangrenam as instituições nacionais e descredenciam as elites governantes.

Na Índia, Narendra Modi, líder de extrema direita, enfrenta a contestação das ruas. Em revolta contra uma lei discriminatória em relação aos muçulmanos, explosões de cólera incendiaram o nordeste do país. O governo reagiu com repressão e bloqueou a internet em várias cidades. O Partido do Congresso, na oposição, solidarizou-se com os manifestantes e diversos governadores de província avisaram que não aplicarão a nova lei em seus territórios por ferir a Constituição.

No Extremo Oriente, em Hong Kong, desde junho, amplos movimentos, depois de impor a retirada de uma lei atentatória às liberdades democráticas, mantiveram-se nas ruas em luta pelo sufrágio universal para os órgãos locais de poder e a investigação, por comissão independente, da repressão desferida contra os manifestantes. Em 24 de novembro último, ganharam as eleições locais em 17 dos 18 distritos em disputa.

Faltaria ainda mencionar a França, onde, desde começos de dezembro, trava-se uma queda de braço entre o governo e os movimentos sociais em torno de um projeto de reforma da Previdência que revoga direitos consagrados. Há sinais de um inverno quente no país.

Em todos os movimentos, embora vinculados às histórias de cada país, algumas afinidades chamam a atenção: a desconfiança em relação às instituições políticas atuais, um desejo de reforma, conferindo-se protagonismo às gentes na construção do presente e do futuro; a dinâmica interna dos movimentos, auto-organizados, anônimos, levando a reboque partidos e sindicatos; o caráter político, visível na exigência de mudanças institucionais de grande alcance. 

Além disso, observa-se algo mais importante: a denúncia de um modo de vida injusto e mesmo cruel. Como disse um respeitável senhor em Paris, ao ser entrevistado sobre os motivos que o levavam à luta: “Não aguentamos viver mais nesta sociedade de merda”. Para quem deseja ver além da superfície, esta é a questão em jogo: nos movimentos prefigura-se uma concepção de sociedade alternativa, onde se amplie a capacidade de autogoverno, serviços públicos de qualidade e, acima de tudo, mais tempo livre, em todos os dias e mais tempo livre, na parte final da vida. Para fazer o que se entenda, inclusive para não fazer nada. O ócio com dignidade, proposto pelo antigo romano. O direito à preguiça, sugerido com ironia por Paul Lafargue. Neste final de ano, uma bela promessa, inspiradora.

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