terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Joel Pinheiro da Fonseca* - Por uma literatura verdadeiramente democrática

- Folha de S. Paulo

Quando a arte e a cultura adoecem, o povo adoece junto

Entre a possível volta do AI-5 e a escolha de Elizabeth Bishop como homenageada da Flip, difícil saber qual o mais grave. Bishop, afinal, nem brasileira é. E, como se isso não bastasse, defendeu o golpe militar em uma carta. Se esse é o tipo de escritor que a esquerda democrática celebra, que esperança teremos?

Quando a arte e a cultura adoecem, o povo adoece junto, pois a sensibilidade de um povo é formada pelas obras de arte. Quisera eu que o problema fosse só a Bishop. Examinando literatura brasileira, contudo, constato que não se salva um.

Guimarães Rosa foi outro perigosamente circunspecto quanto à ditadura militar. Para completar, em sua obra maior, promove a homofobia ao “salvar” Riobaldo da homossexualidade com a revelação do sexo de Diadorim. Nelson Rodrigues, então, foi apoiador explícito do regime militar. O que de bom pode sair de uma mente dessas?

Voltemos ao “clássico” Machado de Assis. Agora celebrado como um “autor negro”, ele foi na verdade alguém que escondeu sua negritude, buscando incorporar-se à elite branca. Teve ainda o despautério de, em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, colocar o ex-escravo Prudêncio açoitando um escravo seu; falsa simetria criada para igualar opressores e oprimidos.

E não estou falando só de cultura erudita, não. Na cultura popular vale a mesma coisa. É o caso do escritor homem branco cis-hétero Chico Buarque. É verdade, ele combateu a ditadura. Mas já reparou que, em suas músicas, não raro se coloca no lugar da mulher? Até quando vamos tolerar —e até aplaudir— que a voz do opressor usurpe o lugar de fala da vítima?

Caetano Veloso é ainda pior. Aqui os delitos se perdem na infinitude, mas queria salientar o uso do termo “mulato” em sua obra, afirmação da ideologia da miscigenação racial, ou seja, do genocídio dos negros no Brasil. O mesmo vale para os compositores que falam em “morenas”, e ainda todos os que exaltam a beleza e sensualidade da mulher, formas repulsivas de objetificá-la e submetê-la, como naquela ode ao olhar masculino, estuprador em potencial, que é a “Garota de Ipanema”. Estaria já o bolsonarismo escondido nas notas melífluas da bossa nova?

Entre apropriações culturais, lugares de fala, afetos fascistas e erros de opinião, pouco se salva do nosso cânone. E não é para menos. O tal “cânone” nada mais é do que os homens brancos que graças a seus privilégios foram considerados mais talentosos ou melhores que o restante da humanidade (e os que não eram homens ou brancos imitaram seus padrões). Tá na hora de reinventar esse cânone e promover a redefinição da identidade e da sensibilidade nacionais.

A não ser que julguemos minuciosamente cada artista em busca da pureza moral, não teremos nenhuma esperança de vencer as trevas na política. A arte deve ser um caminho para a imaginação edificante. Antes que você me diga que estou tolhendo a cultura, te dou contraexemplos. Temos arte progressista de alta qualidade nas músicas da Beyoncé, por exemplo. Quer algo brasileiro? Ora, há uma nova geração de funkeiras e cantoras de sertanejo que estão ressignificando a nossa música. Embora vez ou outra cometam algum deslize e reproduzam papéis de gênero tradicionais, são escolhas relativamente seguras para o progresso da literatura. Por que a Flip não homenageia uma delas em vez da sinhá gringa fascista? Só não vale a Anitta porque ela é bolsominion!

*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.

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