segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Marcus André Melo* - Evo e Salvini

- Folha de S. Paulo

A reversão autoritária parece doença para a qual se adquire imunidade com o tempo

Passaram-se já três meses que Matteo Salvini perdeu o cargo de vice-primeiro ministro, que acumulava com a pasta da Justiça. Sua jogada política malogrou: apostava que a moção de desconfiança que apresentou levasse a uma nova eleição em que seria vitorioso. Il capitano, que encarnava mais que ninguém a figura de líder populista radical, perdeu, mas o episódio não deixou traumas ou qualquer tensão institucional na Itália.

Evo Morales caiu em meio a protestos de massa contra a fraude nas eleições presidenciais que fora detectada pela OEA e que prejudicava seu adversário, Carlos Mesa. O Tribunal Constitucional que deveria arbitrar o conflito estava desmoralizado desde que chancelou a candidatura de Evo pela quarta vez.

As ruas prevaleceram após a recusa dos militares em reprimi-las. Não há novidade alguma aqui: os dois ex-presidentes anteriores soçobraram da mesma forma. O próprio Carlos Mesa naufragou, em 2005, em meio a protestos massivos e bloqueios de estradas, liderados por Morales. Antes, em 2003, manifestações de rua também sob seu comando levaram à derrocada do governo de Sanchez de Lozada (2002-2003).

Em ambos os países, líderes populistas foram derrotados, mas, no caso da Bolívia, ela envolveu a violação de regras. Não há surpresas: o que ocorreu foi “uma regressão à média”, à instabilidade crônica.

A escassa institucionalidade democrática na Bolívia é consistente com o padrão já identificado pela literatura: os melhores preditores da longevidade democrática em um país são o tempo sob o qual o país esteve sobre regras democráticas e sua renda per capita.

A democracia naufragou 70 vezes durante o século 20. O Uruguai foi o único país em que isso ocorreu onde ela existia há pelo menos 20 anos. É preciso fazer uma distinção entre a probabilidade de consolidação da democracia e a ocorrência de reversão onde a democracia não está consolidada.

Os analistas tendem a subestimar o risco de reversão nas democracias novas, e superestimam o risco de reversão onde a democracia está consolidada. A reversão autoritária parece doença para a qual se adquire imunidade com o tempo, como conclui Milan Svolik (Yale University).

É certo que mudou o padrão do colapso da democracia. Entre 1973 e 2018, ocorreram 197 casos de rebaixamento para o status de não livre na classificação da Freedom House —88 são casos em que parte do chefe do governo a transformação autoritária. Mas isso não contraria a conclusão sobre o papel da renda e da história na sobrevivência da democracia.

Misturar fenômenos em países inteiramente distintos —como Hong Kong, Chile, Bolívia, Itália, Turquia e EUA— produz apenas ruído.

*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

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