sábado, 7 de dezembro de 2019

Miguel Reale Júnior* - Aliança com o passado

- O Estado de S.Paulo

Para Bolsonaro e os ‘pensadores’ que o cercam importa explorar o radicalismo

Manifesta a postura retrógrada do programa do pretenso partido Aliança pelo Brasil. Apontam-se como suas principais linhas a segurança do cidadão graças ao direito de andar armado; o louvor a Deus, que revela caminhos e direitos inalienáveis; os valores tradicionais proclamados pelos nossos pais fundadores; a consagração da família tradicional; o confronto com a ideologia do garantismo; a liberdade do mercado como solução única para nossa economia; a destruição do socialismo. Deus, pátria e família, especialmente a própria.

Escolho alguns pontos para análise. Na introdução, desenha-se quadro irreal de estar o País calado, sofrendo a dominação do crime violento, do narcotráfico e do crime organizado. Dramatiza-se o passado, como se tivesse havido condescendência com a alta criminalidade como consequência da promessa de paz, por entregarem os brasileiros suas armas em pacto suicida para a abdicação do direito à legítima defesa.

Ao ver dos aliancistas, houve desrespeito ao referendo de 2005, impondo-se o controle das armas. Duas inverdades: o controle da criminalidade não se realiza pela população armada, situação cujos resultados comprovados são nocivos. A menor repressão ao crime que amedronta, o assalto à mão armada, depende da baixíssima apuração de autoria pelos órgãos de segurança dos governos estaduais. A criminalidade não será estancada dando um revólver a cada cidadão.

O referendo de 2005 não concedeu posse e porte de arma aos brasileiros. Nessa consulta popular se indagava se deveria prevalecer o disposto no artigo 35 do Estatuto do Desarmamento, sobre comercialização ou não de arma de fogo. Perguntou-se, então: “O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?”. Não se tratava de garantir a todos, sem critérios e limites, posse ou porte de armas, mas de saber se a comercialização de armas deveria ser totalmente proibida.

Outro aspecto ligado à segurança pública está no ataque ao inimigo imaginário, a ideologia do garantismo, doutrina formulada pelo jusfilósofo italiano Luigi Ferrajoli, acusada de ser a raiz do problema da impunidade no Brasil, um “garantismo socialista”, favorecedor do narcotráfico.

Santa ignorância. Dos princípios básicos do garantismo penal, destaco o da legalidade (não haverá crime ou pena sem lei anterior); o da lesividade (não há crime sem que haja violação de um bem relevante à sociedade); o da culpabilidade (não há responsabilidade objetiva em matéria penal sendo o crime doloso ou culposo); o acusatório (garantindo ao réu ampla defesa e direito ao contraditório). Denominar tal doutrina de socialista e em favor do narcotráfico é demais!!!

O caráter religioso do partido é patente. Segundo o programa, a providência divina indica o caminho do partido, que toma como seus os valores fundantes do Evangelho. Transforma-se, apesar de se tentar negar, o exercício do poder político em missão confessional, de vez que, sendo a relação entre a Nação e Cristo intrínseca e inseparável, é o povo brasileiro religioso e igualmente devem ser seus representantes, tendo Deus em sua vida.

Depois, em culto às tradições, o programa exalta os brasileiros ilustres do passado, que deixa de indicar, os quais denomina de fundadores e formadores do Brasil, em pura imitação da figura dos pais fundadores da nação norte-americana.

Posso lembrar duas figuras de nossa República, Rui Barbosa e Campos Sales. Rui há um século, na campanha presidencial de 1919, proferiu importante discurso sobre a questão social. Dizia o mestre: “Estou, senhores, com a democracia social (...) que quer assentar a felicidade da classe obreira não na ruína das outras classes, mas na reparação dos agravos a que ela até agora tem curtido. Aplaudo no socialismo o que tem de são, de benévolo, de confraternal, de pacificador”.

Campos Sales, por sua vez, ensinava não ser importante “saber o que é popular, mas sim o que é razoável e justo, sendo um dos deveres do homem de Estado combater as ilusões populares, mesmo à custa do poder e das posições”. Não parece que o bolsonarismo siga as lições desses importantes personagens do passado.

O programa, portanto, de ideias retrógradas, desconhece as mudanças significativas do pensamento político, ignora até mesmo a lição de Rui de cem anos atrás, para fazer do socialismo um bicho-papão, explorando ilusões populares e ignorando deliberadamente toda a evolução do socialismo, que, como bem acentua Antônio Paim (O Socialismo Brasileiro, vol. II, pág. 18), teve papel notável na História do Ocidente por seu substrato moral.

Doutra parte, no plano econômico, o programa adota como única solução a liberdade do mercado, que se autorregula, pois “a liberdade econômica não se contrapõe à existência da moral”. Todavia sem diretrizes de cunho social, num país pobre e desigual como o nosso, a receita neoliberal só aumentará o desnível das classes sociais.

Por fim, cabe destacar que o programa volta aos anos 30 do século passado ao se referir ao homem e ao desenvolvimento integral. Meu pai, integralista na juventude, posteriormente, em diversas obras, como Pluralismo e Liberdade, adotou o pensamento liberal-social, por via do qual se respeita o mercado como agente de produção de riquezas, reservando, contudo, ao Estado, em especial à União, o papel de articulador e promotor de políticas sociais fundamentais em áreas como saúde e educação, criando rede de saneamento básico e valorização dos docentes, promovendo políticas de inclusão social nas periferias das grandes cidades.

Mas para Bolsonaro e os “pensadores” que o cercam importa antes explorar o radicalismo imperante, açular as ilusões, gritar sua fé em Deus que abrirá os caminhos para a destruição de perigosos inimigos. Em defesa da razão, resta apenas conclamar: iluministas do Brasil, uni-vos.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça

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