sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Míriam Leitão - Sexta-feira 13, 51 anos depois

- O Globo

AI-5 faz 51 anos e deveria ser assunto pacificado, mas voltou à pauta em função do sonho autoritário dos que hoje ocupam posição de poder

Numa sexta-feira 13, há exatamente 51 anos, o AI-5 caiu sobre o país como um viaduto. O Brasil era outro. Dos brasileiros de hoje, 76,21% não haviam nascido. São 160,2 milhões de brasileiros nascidos depois daquele dia. Pelo tempo passado e pela renovação populacional, esse deveria ser um assunto esquecido e pacificado. Mas o AI-5 foi um dos assuntos mais falados no país este ano, em função do estranho sonho autoritário de pessoas que hoje ocupam posição de poder.

Há vários mitos sobre a ditadura que andam sendo repetidos numa demonstração de que é preciso voltar a falar do assunto. Os militares chegaram dizendo que ficariam pouco tempo e ainda hoje alguns grupos defendem que o regime foi brando. Não existe ditadura suave e a dinâmica do caminho autoritário é incontrolável.

O general Castello Branco dizia que o regime seria temporário e ele durou 21 anos. O primeiro Ato Institucional foi apresentado como sendo o único e houve 17. O AI-5 duraria um ano, durou 10. O SNI seria apenas um pequeno serviço de inteligência e, como registra Elio Gaspari, virou um “monstro” na definição do seu próprio criador, Golbery do Couto e Silva. No final tinha seis mil funcionários, escritórios em cada ministério, em cada órgão estatal, envolveu-se em inúmeras maracutaias, do garimpo na Amazônia às negociatas com café.

O país não estava “indo para o comunismo”, mas sim vivendo um governo de muita instabilidade e que se aproximava do seu final. No ano seguinte haveria uma eleição em que se enfrentariam Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda, com grande chance de vitória do primeiro. Os dois se juntaram depois na Frente Ampla, que incluiu também João Goulart, uma aliança impensável entre o golpista Lacerda e o presidente deposto. Eles passaram por cima das diferenças pela causa comum do retorno à democracia. A frente foi proscrita pelo governo no interminável ano de 1968.

Na economia, a ditadura começou fazendo um plano anti-inflacionário e de ajuste das contas públicas. Através do PAEG, a inflação foi reduzida com um mecanismo de correção salarial pela média dos 24 meses anteriores e que levou a uma redução de salário real. Após o ajuste, o país acelerou o crescimento do PIB. Se o país estava crescendo, isso deveria ter desanuviado o clima político, mas a direita no poder decidiu radicalizar.

A coincidência entre o melhor momento da economia e o pior período da repressão é até estranha. O crescimento acelerado, em qualquer país, produz uma taxa maior de aceitação do governo. O PIB cresceu em média 11,2% de 1968 a 1973, segundo André Lara Resende no livro “130 anos da República”. Os militares queriam mais que apoio, ambicionavam a unanimidade. Para calar todas as vozes discordantes foi disparada a violência desmedida do Ato Institucional que fechou o Congresso por quase um ano, estabeleceu a censura prévia contra alguns órgãos de imprensa, suspendeu todas as garantias constitucionais, cassou parlamentares, expulsou estudantes e professores das universidades e expandiu a máquina de tortura e morte.

O crescimento do país era desigual. Segundo Pedro Ferreira de Souza, a parcela da riqueza nacional apropriada pelos brasileiros que estavam entre os 1% mais ricos subiu de 17,7% para 25,8% entre 1964 e 1970. Oito pontos percentuais em seis anos.

O tempo de forte alta do PIB é apenas uma parte dos 21 anos. Ficou restrito ao final dos 60 e começo dos 70. Houve o período de recessão, inflação, dívida externa e bagunça fiscal. “Quando, na segunda metade dos anos 1970, os desequilíbrios das contas externas e as pressões inflacionárias reapareceram, agora combinados com a correção monetária, estava montado o quadro para quase duas décadas de estagnação e aceleração inflacionária”, escreve Lara Resende.

Não deveria ser preciso dizer que o AI-5 abriu um tempo maldito que jamais pode provocar saudosismo nos governantes. Mas também não deveria ser preciso dizer que torturador não é herói e que presidentes não falam, com naturalidade, sobre instrumentos de tortura. Não deveria ser necessário dizer que os problemas da democracia só podem ser corrigidos com mais democracia. Contudo, ainda é preciso lembrar como foram terríveis aqueles dias, aqueles anos, que começaram numa sexta-feira 13, há 51 anos.

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