domingo, 22 de dezembro de 2019

O que a mídia pensa – Editoriais

Perseguir cultura e arte é agredir a nação – Editorial | O Globo

Ataque do governo Bolsonaro à produção artística e cultural tem de ser contido em nome da democracia

Não se esperava de Jair Bolsonaro um início de governo tranquilo. O estilo agressivo demonstrado em 28 anos de trajetória como deputado do baixo clero na Câmara prenunciava tempos difíceis no relacionamento do presidente com atores políticos, organizações de representação social, pessoas e instituições que divergem dele. A intolerância com a diversidade já era notória.

Na campanha eleitoral os territórios de enfrentamentos foram sendo delimitados. ONGs, defensores do meio ambiente como um todo, índios, minorias em sentido amplo e tudo o que ele identificasse como esquerda estariam na mira. Neste sentido não houve surpresas. Mas o ataque à cultura e às artes chama especial atenção.

Não basta ocupar os espaços que eram dos “inimigos”. O aparelhamento de segmentos do Estado pelo bolsonarismo nada fica a dever ao PT e aliados. Mas não basta preencher vazios deixados pela saída de servidores do último governo e de “petistas” remanescentes.

É preciso destruir, desmontar as cadeias de produção artística e cultural, apagar qualquer marca, qualquer registro do passado. O mesmo desejo autoritário de reescrever a História observado em diversas épocas no mundo em vários países.

Neste sentido, é sugestivo que o presidente interino da Agência Nacional do Cinema (Ancine), Alex Braga, tenha mandado retirar das paredes da sede da instituição cartazes de filmes brasileiros antigos. Entre eles, “Deus e o diabo na terra do sol”, de Glauber Rocha, e “O bandido da luz vermelha”, de Rogério Sganzerla, pontos de referência do moderno cinema brasileiro na década de 60. O objetivo é apagar um passado de produções artísticas. Mas o presente e o futuro também, pois foi retirado do site da Ancine o espaço da relação de novas produções. Atos como este evocam crimes cometidos por regimes antidemocráticos de direita e esquerda contra artistas e suas obras.

É algo que vai além da censura. Esta já havia sido esboçada com o anúncio de que projetos de filmes “inadequados” no aspecto moral, religioso e político não teriam apoio da própria Ancine. Em julho, Bolsonaro se referiu à necessidade de “filtros”. Um sinônimo de censura. O governo Bolsonaro deu dois passos à frente da própria ditadura militar, que censurou a arte e a imprensa, mas não fechou todos os guichês de apoio à produção de cineastas, por exemplo. Criada em 1969, um ano após a edição do AI-5, a estatal Embrafilme financiou e distribuiu filmes de artistas opositores do regime. Isso não o fez menos ditatorial, mas indicou que houve, em alguns momentos, rasgos de bom senso.

Bolsonaro tem o mesmo DNA da ditadura, mas seu ataque institucional à cultura e a artistas, na democracia, ultrapassa limites até mesmo respeitados naqueles tempos. A sanha contra a produção artística apareceu na limitação à Lei Rouanet. Depois, houve uma atenuação para não alijar de vez os musicais do teatro brasileiro. Mas a semana acabou ainda com incertezas sobre a revisão das regras. O certo é que reduzir aporte incentivado de empresas a projetos de produção artística se traduz em menos emprego e menos renda em uma ampla linha de produção.

O golpe contra o Microempreendedor Individual (MEI), para atingir escritores, jornalistas, artistas de diversos campos, foi tão brutal e inconsequente que o governo também recuou. A medida inviabilizava a prestação de serviços de um número incontável de pessoas, não apenas no “trabalho intelectual”, de que o bolsonarismo tem ojeriza. Havia passado do ponto. O tiro atingia trabalhadores de muitos outros setores. É característica deste governo sempre testar limites. Recuos nada significam. São táticos.

Há uma lógica destrutiva nos movimentos bolsonaristas contra a arte e a cultura, seja em palavras e atos. Talvez em busca de repercussão nas redes sociais, a favor ou contra, não se mede o alcance de declarações e de ações estapafúrdias. Na agressão gratuita à atriz Fernanda Montenegro pelo diretor da Funarte Roberto Alvim — “sórdida”, “mentirosa” — ou no acionamento da embaixada brasileira em Montevidéu para retirar um filme sobre Chico Buarque do 8º Festival de Cinema do Brasil, na capital uruguaia. Não teve sucesso, mas a iniciativa não pode ser esquecida.

Chega a ser anedótico o comportamento de alguns agentes do bolsonarismo colocados no setor artístico. O maestro Dante Mantovani, escalado para a Funarte, pontificou que “os Beatles combatem o capitalismo” e que o rock leva a drogas, sexo e à indústria do aborto. Se o objetivo é agitar as redes sociais, mantendo uma claque de militância de extrema direita mobilizada, funciona.

Funciona como peça de um marketing do escândalo para manter a tensão em torno da agenda da chamada “guerra cultural” que bolsonaristas travam contra a esquerda, ou o que supõem ser esquerda. Quando este tipo de visão fica circunscrito a bandos de radicais anticultura, inimigos da arte em suas diversas expressões, isso pode ser visto como algo exótico a ser contido pela força da lei. Mas se este tipo de visão de mundo chega ao Palácio do Planalto e se infiltra no Estado, a sociedade precisa se precaver e buscar proteção das instituições republicanas.

O caso pode ser bizarro, mas a destituição de Sérgio Nascimento de Camargo, da Fundação Palmares, pela Justiça, a pedido do Ministério Público, é um exemplo. Assumir esta entidade com declarações racistas, preconceituosas, requer mesmo a intervenção de organismos de Estado.

Todo este movimento que parece ser coordenado a partir de um plano carrega a doença do patrimonialismo que contamina a vida pública brasileira. Faz o governo achar que o dinheiro público é seu, e não é. Precisa prestar contas do que faz com ele no estratégico setor da produção cultural.

Por trás desses desvarios fica exposta a falta da percepção de que a cultura e a arte são de todos os brasileiros, sem demagogia.

Quando Bolsonaro, família e apaniguados tratam de colocar amarras no processo que permite que o patrimônio cultural brasileiro inspire músicas, filmes, teatro, livros e tudo o mais, eles agridem a nação e suas raízes.

Amazônia já – Editorial | Folha de S. Paulo

Desastre conduzido pelo governo Bolsonaro demanda reação enérgica da sociedade

O governo Jair Bolsonaro tinha meros 25 dias no poder quando se deflagrou a maior tragédia ambiental do Brasil. Barragem da mineradora Vale se liquefez em Brumadinho (MG) e levantou um tsunami de rejeitos que matou 270 pessoas.

Era o prenúncio ominoso do que estava por vir, num ano pleno de más notícias para o meio ambiente —para nada dizer das notícias fraudulentas despejadas sobre o assunto desde o Planalto.

Falhou a Vale na manutenção da segurança e falhou o poder público em obrigá-la a tanto. Para isso deveriam servir o licenciamento ambiental e a fiscalização do cumprimento de suas exigências, mas tais processos se desvirtuaram em papelório e faz de conta que perdem de vista o objetivo primário, preservar a população e a natureza.

Bolsonaro e equipe fizeram mais que prostrar-se, entretanto. Capitanearam os esforços para afrouxar as normas do licenciamento, sob pretexto de desburocratizá-las (coisa de que por certo necessitam). Só não se consumou retrocesso completo porque o Congresso chamou para si a negociação e exerceu um poder moderador.

Desde a campanha Bolsonaro propagava doutrina nacionalista sobre a Amazônia, com críticas a governos estrangeiros e ONGs.

Seus discursos funcionaram como combustível para inflamar os ânimos da coalizão predatória contra a floresta, composta por grileiros, madeireiros ilegais e pecuaristas, e não faltou quem previsse a alta no desmatamento.

O aumento da destruição começou a ser detectado por satélites no final do primeiro semestre. Bolsonaro reagiu como sabe, negando a realidade com fabulações paranoicas contra o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que conduz o monitoramento da devastação há três décadas.

O presidente acusou o Inpe de falsificar dados e de estar a serviços das ONGs. Diante da reação altiva do diretor do instituto, Ricardo Galvão, exigiu e obteve sua exoneração do ministro da Ciência, Marcos Pontes. Galvão terminaria entre os dez cientistas mais destacados do mundo pela revista Nature.

Coerentemente, o Planalto não se limitou às palavras. Ricardo Salles, um ministro escolhido para desmontar as políticas da própria pasta do Meio Ambiente, cismou com o Fundo Amazônia, fonte de recursos para a floresta mantida por Noruega e Alemanha.

Quer alijar doadores e assumir o controle das verbas; na prática, só conseguiu paralisar o mecanismo.

O desgoverno ambiental já se tornava tema de conhecimento no mundo em agosto e setembro, na estação seca, com a explosão das queimadas que se seguem ao corte.

Confrontado com medidas de satélite, Bolsonaro inventou que não havia aumento de focos de incêndio, em comparação com anos anteriores, e que as ONGs estavam queimando as matas.

Imobilizado pela narrativa negacionista, o governo federal demorou a reagir. Com enorme atraso, montou operação espetaculosa de combate às chamas com as Forças Armadas e pediu ajuda a Israel.

Quase ao mesmo tempo, novo desastre ambiental encurralou a administração quando milhares de toneladas de petróleo cru começaram a aparecer nas praias do Nordeste. Repetiu-se o padrão de comportamento que mescla alienação, calúnia e inoperância, agora com Salles na vanguarda.

O papel bisonho desempenhado pelo ministro a serviço de Bolsonaro fecharia 2019 —que terminará, provavelmente, como o segundo ou terceiro ano mais quente da história— como nele entrou, metendo os pés pelas mãos.

Viajou a Madri para participar da 25ª conferência mundial sobre emergência climática e saiu dela como protagonista da obstrução que a transformou num fiasco.

Com tal sequência de desmandos, a área ambiental responde, até aqui, pelos danos mais palpáveis infligidos pelo bolsonarismo ao país. A alta de 29,5% no desmate da Amazônia junta números às declarações e ações desastradas do governo —com perda devastadora também para a imagem do país.

A calamidade demanda reação enérgica da sociedade. A todos, incluindo o agronegócio, interessa a defesa da região. Governadores, Congresso, empresariado e opinião pública podem e devem mobilizar-se contra retrocessos conduzidos pelo Executivo federal.

Cuidar da segurança externa – Editorial | O Estado de S. Paulo

Com dólares de sobra para cobrir a dívida externa e a balança comercial ainda no azul, o Brasil continua blindado contra choques, mas é preciso dar atenção a alguns sinais de alerta. As contas ficaram menos folgadas neste ano, as exportações perdem vigor, o cenário global permanece nublado e as projeções do comércio para 2020 são pouco otimistas. Neste ano o buraco nas transações correntes chegou a US$ 45,05 bilhões até novembro, com aumento de 27,18% em relação à marca de um ano antes. A piora resultou principalmente da redução do superávit comercial – uma queda de 26,39%, de US$ 47,07 bilhões para US$ 34,65 bilhões. Investidores e analistas costumam acompanhar com atenção as transações correntes, um importante indicador de segurança. Essas transações incluem três contas: a balança do comércio de bens, a de serviços e a de rendas. Geralmente no azul, o saldo comercial contrabalança em parte os déficits das duas outras contas. Também por isso é preciso seguir com cuidado o comércio de bens.

Em 2019, o ingresso líquido de US$ 69,11 bilhões de investimento direto cobriu com folga, como tem ocorrido há anos, o buraco das transações correntes, segundo o relatório mensal sobre o setor externo apresentado na sexta-feira passada pelo Banco Central (BC). Esse tipo de recurso, dirigido à atividade empresarial, é normalmente a melhor forma de financiamento das transações correntes, por ser a mais segura e a mais produtiva.

Entraram US$ 77,40 bilhões de investimento, em termos líquidos nos 12 meses até novembro. Esse valor correspondeu a 4,21% do Produto Interno Bruto (PIB) estimado pelos economistas do BC. No mesmo período o déficit em transações correntes chegou a US$ 51,16 bilhões, soma equivalente a 2,78% do PIB. A deterioração, embora sem ser alarmante, é sensível e vale alguma atenção dos formuladores da política econômica. Nos 12 meses terminados em novembro do ano passado aquela proporção havia ficado em 2,02%. Entre os meses finais de 2016 e setembro de 2018 havia sido sempre inferior a 2%.

Houve um ligeiro recuo desde o mês anterior, quando o déficit alcançou 2,83% do PIB. Houve também uma revisão dos números. No relatório divulgado em novembro, a proporção registrada em outubro havia sido de 3%. De toda forma, a correção foi pequena e a melhora contabilizada de um mês para outro foi modesta. Mas a mudança em relação ao cenário de 2018 é muito visível e a deterioração é ainda mais sensível quando se consideram os dados de 2017.

A folga deve ser bem menor no próximo ano, de acordo com as projeções do BC, apresentadas na quinta-feira passada em seu relatório trimestral de inflação. O déficit em transações correntes deve atingir US$ 57,7 bilhões, com aumento de 12,9% sobre os US$ 51,1 bilhões estimados para 2019. O rombo equivalerá a 3,1% do PIB. A causa principal será, novamente, a redução do superávit comercial, decorrente de uma diminuição de 0,44% no valor exportado e de um aumento de 3,2% nas despesas com a importação. O investimento direto ficará em US$ 80 bilhões, valor estimado também para este ano, e continuará mais que suficiente. Mas a folga será bem menor.

A redução do superávit comercial será atribuível a um fator positivo – o maior crescimento econômico no Brasil, com mais consumo e mais investimento – e a pelo menos três negativos – a insegurança no mercado global, a continuação da crise argentina e a baixa competitividade da maior parte da indústria brasileira. Não se aumentará o poder de competição simplesmente baixando custos trabalhistas e recriando a CPMF, dois temas constantes do ministro da Economia. O custo Brasil é muito mais que isso.

Com reservas de US$ 366,38 bilhões, dívida bruta de US$ 325,65 bilhões e déficit externo ainda administrável, o Brasil continua seguro. Não faltam, no entanto, sinais agourentos, dentro e fora do País, apesar da retomada do crescimento econômico. O capital é medroso e qualquer susto um pouco mais forte poderá torná-lo perigosamente escasso para as economias emergentes.

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