quinta-feira, 25 de abril de 2019

Opinião do dia: Alberto Aggio*

Do governo Bolsonaro emanam vetores que se entrecruzam e até se opõem. Os claros e cada vez mais evidentes conflitos entre os generais que compõem o governo (o vice-presidente Hamilton Mourão incluso) e o grupo “palaciano” comandado pelos filhos do presidente, especialmente em relação ao tema da Venezuela, não são de pouca monta e podem provocar uma quebra irreparável na sustentação política do governo.

Mas o ponto mais agudo advém da reforma da Previdência, alcunhada de “Nova Previdência”. O ministro da Economia, Paulo Guedes, faz blague com a noção de “revolução”. Mas se a inspiração de Paulo Guedes é Chicago e sua aplicação no Chile de Augusto Pinochet, não deixa de haver sentido. Pinochet liderou uma “revolução neoliberal” inversa ao programa socialista em vigor nos anos de Salvador Allende.

Enquanto Pinochet vocalizava que seu governo “não tinha prazos, mas metas”, seus ministros e intelectuais falavam de “revolução silenciosa”. Não há que estranhar a obsessão com a palavra. Contudo o cenário brasileiro é de democracia, sustentada pela Carta Constitucional e suas instituições, situação inteiramente distinta da do Chile nos anos Pinochet.

*Historiador, é professor titular da Unesp. “Do fantasma Pinochet ao risco Savonarola”, O Estado de S. Paulo, 24/4/2019

Willian Waak: Tão velho quanto palácios

- O Estado de S.Paulo

Os ‘ideólogos’ à volta de Bolsonaro estão atacando o que realmente interessa

Nada têm de gratuito, maluco ou infantil os ataques contra o vice-presidente, general Hamilton Mourão, lançados pelos círculos mais íntimos de Jair Bolsonaro, neles incluídos familiares e intelectual a quem o presidente atribui primeira importância. Trata-se de saber quem vai enquadrar quem. Em última análise, é uma luta pelo poder.

Intrigas palacianas são tão velhas quanto... palácios. Nesse caso, porém, não se trata de saber quem tem mais acesso ou consegue mais favores do dono do Palácio, mas, sim, de determinar a quem o dono do Palácio vai obedecer. Do ponto de vista dos assim chamados “ideólogos” juntinho do presidente, faz todo sentido chamar Mourão de “conspirador”.

Pois o vice-presidente ganhou “Profil durch Kontrast”, como diz a famosa expressão política alemã: ganhou contornos como figura política por meio do contraste oferecido pela atuação de outros. A confusão e até notória bagunça nas áreas sob domínio direto dos “ideólogos” no começo do governo é que transformaram Mourão num personagem identificado com pacificação, racionalidade e sensatez – não eram os atributos que se conferiam a ele durante a campanha eleitoral, por exemplo.

A “conspiração” atribuída a Mourão reside no fato – sempre sob a ótica dos ideólogos – de ele representar o que se poderia chamar de “núcleo duro” do poder no Palácio. Nesse sentido, os ideólogos estão atacando o que realmente interessa. Para os militares no Palácio, ao contrário do que propagam os “ideólogos”, grande perigo não são comunistas e esquerdistas embaixo de cada cama. São o caos político e a bagunça institucional, ocorrências que os “ideólogos” consideram não só inevitáveis, mas até desejáveis na grande “revolução conservadora” que julgam ser capazes de conduzir.

*José Serra: Outra década perdida?

- O Estado de S.Paulo

A solução para nossos problemas econômicos exige voto distrital misto e parlamentarismo

Tudo leva a crer que o ano de 2019 fechará mais uma “década perdida”, numa frustrante repetição do que ocorreu nos anos 1980. A expressão, na verdade um tanto exagerada e catastrofista, foi cunhada com relação àqueles anos, quando a economia brasileira, até então invejada por sua pujança, tropeçou no desequilíbrio externo e na superinflação, exibindo um crescimento medíocre do PIB, muito distante do ritmo do pós-guerra: cerca de 17% em dez anos. A presente década pode terminar sendo, em matéria de dinamismo econômico, pior do que aquela.

É bem verdade, porém, que a “década perdida”, numa perspectiva econômica, é um tanto injusta com o Brasil dos anos 80. Dado o crescimento rápido verificado no após guerra – e em parte devido às suas lacunas –, grandes problemas foram se acumulando, sintetizados na inflação galopante e no desequilíbrio externo, marcas da nossa transição de economia agrícola para industrial no historicamente curto espaço de 50 anos. Metrópoles expandiram-se com infraestrutura deficiente e a oferta agrícola não acompanhava a demanda crescente. Ademais, a população padecia de níveis muito baixos de instrução e pouco acesso à saúde.

Como é sabido, o modelo de desenvolvimento por substituição de importações que prevaleceu no pós-guerra, associado à urbanização rápida e à lenta modernização da agricultura, produziu uma economia concentrada, protegida da competição externa e menos propensa à inovação, e por isso mesmo sujeita a fortes pressões inflacionárias. A essas pressões estruturais se sobrepôs um relaxamento fiscal que decorreu de nossa complexa redemocratização, cujo momento crítico foi a Assembleia Nacional Constituinte.

A nova Carta trouxe-nos um federalismo mal calibrado e pouco consequente do ponto de vista fiscal, com a complicação suplementar de ter consolidado um corporativismo indomável e “de luta” no serviço público – que por bom tempo conseguiu passar-se por “defesa dos trabalhadores”. A fome juntou-se à vontade de comer e, unidas, confluíram num arranjo político fiscalmente precário, por mais que alguns governantes, aqui e ali, tenham tentado retirar a água do convés com pequenos baldes.

O Plano Real representou a grande guinada, ao controlar a superinflação aberta que se arrastara até 1994, por meio de uma engenhosa regra de desindexação. Logo após, outra grande obra política de Fernando Henrique Cardoso foi realizada: a renegociação das dívidas dos Estados e municípios, que garantiu a geração de superávits primários nos entes subnacionais e praticamente extinguiu os bancos estaduais, verdadeiras usinas de inflação.

*Eugênio Bucci: Censura epidêmica

- O Estado de S.Paulo

Ela maculou a reputação do Supremo Tribunal e abalou a expectativa de segurança jurídica...

Ao trancafiar os cálculos sobre a reforma da Previdência, impedindo jornalistas e, no mais, qualquer brasileiro ou qualquer brasileira de ter acesso aos números, o governo federal ultrapassou (mais uma vez) as imagens mais claustrofóbicas da ficção científica mais pessimista. Nos filmes Blade Runner (baseado num conto de Philip K. Dick) ou Matrix (inspirado no livro Neuromancer, de William Gibson), conhecemos as engrenagens maquínicas de um poder que se desumanizou por inteiro para se converter ele mesmo num ciborgue-leviatã, mas até mesmo ali os seres humanos conseguem, de um jeito ou de outro, fazer contas com dados reais.

As mais famosas distopias do século 20, como 1984, de George Orwell, ou Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, também não nos ajudam nesse campo – embora no livro 1984 exista o Ministério da Verdade, cuja atribuição é construir e instalar as verdades oficiais que são mentiras absolutas. Essa coisa bolsonárica de decretar o sumiço das planilhas em que o governo trabalha para sustentar seu projeto de reforma da Previdência parece conter mais pulsões totalitárias do que o cardápio de expedientes tirânicos imaginado por George Orwell.

Não que o Brasil esteja virando um Blade Runner ou uma Laranja Mecânica (a obra-prima de Stanley Kubrick, cujos fantasmas nos vêm puxar a perna durante estas noites sufocantes de 2019). Não que o totalitarismo se tenha instalado no Brasil. O risco, por enquanto, é mais incipiente, mas é real.

A iniciativa de banir a aritmética do debate político escancara o que vai pela cabeça do comando do Executivo. Se ainda não temos aqui o Ministério da Verdade, e não temos, não é por falta de disposição do poder. Se ainda não viramos uma paródia depressiva de Admirável Mundo Novo, é só porque a malha institucional – um tanto pitimbada, mas efetiva – da nossa democracia tem resistido. Se dependesse dos novos inquilinos da Esplanada, o Ministério da Verdade já estaria em pleno funcionamento.

Nesta hora, a compreensão dos vetores que orientam os atos do poder é tão ou mais decisiva do que a análise do quadro objetivo. A subjetividade instalada no governo conta. As intenções contam – contam porque desnudam o projeto em curso. O governo que aí está pode parecer errático. Nada do que ele propõe dura. As idas e vindas – as tentativas erradas e os erros consumados – se embolam sem que se consiga extrair das condutas destrambelhadas uma linha coerente, lúcida. Para piorar a desorientação randômica das cabeçadas palacianas, há ainda as brigas internas entre facções que, também elas, são desorganizadas e violentas como gangues adolescentes. Num ponto, contudo, esse governo ostenta uma unidade coesa: esse ponto são as investidas contras as liberdades e os direitos. Nisso o impulso essencial da Presidência da República é uno e compacto. Trata-se de um denominador comum que dá uma racionalidade tanática ao desordenamento das aparências. É por isso, enfim, que se tornou essencial entender a subjetividade do delírio autoritário que tomou o poder no Brasil.

Zeina Latif*: Jogo de empurra

- O Estado de S.Paulo

É nos Estados que o quadro é dramático. De todos os lados, os números são muito ruins

Não se trata de apontar vilões. Mas é inegável que o País precisa discutir medidas urgentes, não só para conter o crescimento dos gastos com o funcionalismo, mas também reduzi-los. O Estado, que deveria servir aos cidadãos, tem seus recursos fiscais bastante comprometidos com a folha dos servidores.

No nível federal o quadro é menos grave. Em 2018, o gasto com a folha consumiu 24% da receita líquida, cifra que já foi mais elevada no passado. A reforma da Previdência de 2003, que eliminou a integralidade das aposentadorias para os servidores que ingressaram a partir daquele ano, vai contribuir para reduzir esse valor adiante.

É nos Estados que o quadro é dramático. De todos os lados, os números são muito ruins: o déficit previdenciário na casa de R$100 bilhões e a conta de restos a pagar em mais outros R$100 bilhões. Fora os repasses constitucionais a municípios atrasados. A maioria dos Estados não consegue cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) que estabelece um teto de 60% da receita líquida corrente para o pagamento da folha. O gasto com a Previdência (mais de 40% da folha) é o que mais cresce: média de 7,6% ao ano descontada a inflação, segundo o Ipea, entre 2013 e 2018.

Pior, esse gasto vai crescer em ritmo mais acelerado nos próximos anos, partindo de um patamar já elevado – em 2017, para cada 100 funcionários na ativa, havia 88 inativos, segundo o Ibre-FGV. O Ipea aponta que, em 2015, 40% do funcionalismo tinha 49 anos ou mais. Os próximos anos serão de avalanche de aposentadorias. Teremos, pois, ainda muitos anos de deterioração dos serviços públicos.

Manuel Carvalho: Portugal é um estado de direito, doutor Moro…

- P Público (Portugal)

Chamar “criminoso” a um cidadão que não foi julgado nem condenado é um abuso que revela a verdadeira natureza de Sérgio Moro.

É, no mínimo, um desplante. E no máximo um desplante no limiar do agravo diplomático que um ministro da Justiça estrangeiro venha até nós chamar “criminoso” a um ex-primeiro ministro que nem sequer foi condenado em primeira instância.

Que José Sócrates seja um espinho cravado na ética republicana, que acumule um pecúlio de suspeitas capazes de legitimar o estatuto de político que todos amam odiar, que se tenha transformado no ícone maior dos vícios do regime, é uma coisa; que seja apelidado de “criminoso” na praça pública sem que a sua sentença tenha transitado em julgado (sem que se saiba até se vai haver julgamento), é outra coisa completamente diferente. Caso o juiz Sérgio Moro tenha esquecido, num Estado de direito existe a presunção de inocência. A menos que…

A menos que Sérgio Moro tenha definitivamente despido a toga de juiz para se vestir com a pele de justiceiro, uma suspeita que a forma como geriu alguns processos da Operação Lava Jato legitima junto de muitos observadores.

Porque, é óbvio, um juiz tem o dever de ser minucioso na atribuição de estatutos a terceiros. Tem de conservar a prudência e o recato sobre processos em investigação, principalmente quando está num país estrangeiro. Tem de ser capaz de manter a elevação do seu cargo e da sua responsabilidade e saber resistir às acusações como as que José Sócrates, na sua delirante visão do mundo, lhe dirigiu. Tem, finalmente, de respeitar a independência da Justiça nos países que visita, abdicando de condenar sumariamente pessoas que nem sequer começaram a ser julgadas.

Sérgio Moro tem toda a legitimidade em defender as suas ideias sobre as virtudes do sistema penal brasileiro sobre o português, incluindo os méritos da delação premiada ou essa acumulação de funções que concedem ao juiz de instrução a responsabilidade de ser também o juiz que preside aos julgamentos dos suspeitos. Pela dignidade do seu cargo e pelo prestígio que acumulou antes de acelerar o julgamento de Lula para impedir a sua recandidatura, antes de produzir uma condenação que muitos observadores internacionais consideram ser forçada face à fragilidade das provas, antes de aceitar ser ministro do mais polémico presidente do Brasil das últimas décadas, Moro seria sempre bem-vindo a Portugal para fazer a apologia das suas ideias de justiça. O que disse sobre Sócrates foi muito para lá do tolerável e tornou-o uma persona non grata.

Bruno Boghossian: O vice vira peão

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro faz jogada arriscada, mas esquece que o vice não pode ser demitido

A deputada Perpétua Almeida foi à tribuna da Câmara na terça-feira (23) para defender Hamilton Mourão. Apesar de ser vice-líder do PC do B, a parlamentar contou que estivera com o general na véspera para falar sobre o Acre e aproveitou para prestar solidariedade.

“Eu acho uma injustiça esse fogo amigo deste governo Bolsonaro que está aí. Nem sequer consegue se entender!”, reclamou a comunista.

Sob ataque da ala extremista do bolsonarismo, o vice-presidente virou um peão no tabuleiro político. Mourão passou a ser explorado pela oposição, pelo Congresso e, principalmente, pelos radicais da direita.

Carlos Bolsonaro e seus amigos saíram em campanha para acusar Mourão de conspirar contra o presidente e impedir a transformação do país numa república fundamentalista “olavista”. Se o governo continuar acumulando erros, o grupo pode simplesmente jogar a culpa pelo fiasco na conta do vice traidor.

Igor Gielow: Crise com Carlos é inflexão na relação de militares com Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Fardados se queixam de olavistas, mas têm pouca margem de manobra na prática

As crises do governo Bolsonaro são como episódios de uma série de TV dessas que passam no domingo à noite: intermináveis, repetitivas e visando enrolar o espectador enquanto assuntos mais sérios se desdobram na tal da realidade.

A mais recente delas, envolvendo um vídeo em que Olavo de Carvalho descasca militares, deverá acabar na sinopse como um ponto central de inflexão narrativa. E talvez não pelo seu desfecho aparente.

Como se sabe, Bolsonaro foi convidado pelos seus amigos militares a fazer ser redigida uma nota na qual disse com jeitinho que o escritor radicado nos EUA precisava calar a boca. O fez, não sem antes elogiar seu patriotismo, espírito público e importância ímpar para o estado das coisas brasileiras —sobre o último item, é difícil discordar.

Mas não é Olavo o real alvo. A briga se dá entre a ala militar do governo Bolsonaro, que como o Tinhoso das Escrituras não é uma, mas várias, e os dois filhos aderentes das ideias esposadas por Olavo: o deputado Eduardo e, principalmente, o vereador Carlos.

Rodopiam pelo governo outros dervixes dessa obscura “tariqah”, escola sufista, de Virgínia: o chanceler Ernesto Araújo e sua fiel escudeira Letícia Catel, o assessor internacional Filipe Martins, de forma mais discreta o ministro Abraham Weintraub (Educação). É uma turma bastante coesa, se comparada com os seus rivais fardados, e o ponto de apoio central sempre foi a dupla 02 e 03 de filhos presidenciais.

Vinicius Torres Freire: Brasil, um país 1%

- Folha de S. Paulo

Dados de emprego e imposto indicam que economia anda no ritmo 2017 e 2018

A cada semana aparecem sintomas de que a economia brasileira se acomodou a um ritmo de crescimento de pouco mais de 1% ao ano, como em 2017 e 2018.

Os sinais mais recentes de lerdeza vieram dos balanços de março do emprego com carteira assinada e da arrecadação federal de impostos, divulgados nesta quarta-feira (24) pelo governo.

Desde outubro do ano passado, o número de empregos com carteira assinada cresce em torno de 1,4% ao ano. Nesse ritmo, apenas em março de 2022 o país voltaria a ter empregos formais na mesma quantidade de março de 2015. Não é uma previsão, claro, mas uma medida do tamanho do atraso e do estrago.

Desde outubro do ano passado, o valor da receita de impostos do governo federal cresce cada vez mais devagar. A arrecadação do primeiro trimestre foi apenas 1,1% maior que a do início do ano passado (em termos reais: descontada a inflação). É outro indício de economia devagar, quase parando.

O emprego com carteira anda mal por causa da indústria, entre os grandes setores da economia. As fábricas até pareciam se animar um pouco em abril e maio do ano passado. A partir de outubro, o caldo entornou, e a panela de empregos novos ficou vazia. Desde então, o número de pessoas empregadas com carteira assinada é praticamente o mesmo (na comparação com o mesmo mês do ano anterior).

Matias Spektor: O futuro

- Folha de S. Paulo

Perigosa, direita populista que hoje dá as cartas tem método e projeto

Esta é minha última coluna neste espaço.

Quando este jornal me convidou para escrever, há sete anos, a ideia era inusitada. Nenhum grande veículo tinha um colunista dedicado à política externa brasileira. Para minha sorte, muitos leitores fizeram da agenda internacional a sua pauta.

Esses anos assistiram à expansão do debate público sobre temas internacionais. Hoje, dezenas de profissionais expressam opiniões sobre o assunto no Twitter e no Facebook.

Isso é muito positivo. A velha redoma que limitava a conversa a um punhado de embaixadores aposentados se estraçalhou, aumentando a diversidade e a densidade do debate.

Acontece que essa transformação também trouxe coisas negativas. Nas redes sociais, a competição por “likes” premiou argumentos de apelo fácil, muitas vezes inverídicos ou incapazes de resistir ao mínimo escrutínio. O debate ficou menos qualificado.

Isso é um problema sério porque ocorre ao mesmo tempo em que colapsa o que havia de consenso na política externa da Nova República. Quem termina ocupando o espaço é a turma que hoje comanda a agenda internacional do governo Bolsonaro.

Eu admito a minha parcela de culpa: como tantos outros acadêmicos, não percebi que um dos efeitos da vitória de Donald Trump seria o nascimento do antiglobalismo messiânico à brasileira.

O resultado é nefasto porque a direita populista que hoje dá as cartas é perigosa. Não se trata de um bando tresloucado: em suas decisões, há método e projeto. A direção do que vem por aí é péssima para o país.

Luiz Carlos Azedo: Um delírio ambiental

Nas entrelinhas / Correio Braziliense

”É óbvio que a linha adotada pelo governo em relação aos problemas ambientais provocará novos desastres”

Não tem risco de dar certo a intervenção policial-militar do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), com a nomeação de um coronel, dois tenentes-coronéis e dois majores da Polícia Militar de São Paulo para comandar a instituição. A transformação do tema da sustentabilidade num caso de polícia, por capricho pessoal do ministro, não tem precedentes na história das políticas públicas ambientais do país, inauguradas no governo José Sarney, quando foi lançado o programa Nossa Natureza, do qual resultou a fusão de vários órgãos e a criação do Ibama.

Nada contra os militares individualmente, até porque são homens que atuaram intensamente no policiamento florestal. Entretanto, a área exige interdisciplinaridade para uma boa gestão, o que a formação policial simplesmente não garante, embora seja importante para combater os crimes ambientais. Como diria o falecido astrofísico norte-americano Carl Sagan, é o tipo de decisão que somente pode ser atribuída ao “analfabetismo científico”, que está em alta em razão dos conceitos estapafúrdios do presidente Donald Trump, dos Estados Unidos, com repercussão mundial desde a saída do governo norte-americano do Acordo de Paris.

A propósito de um comentário de Platão sobre o ensino de matemática às crianças do Egito Antigo, Sagan dizia que a ignorância em ciência e matemática nos dias atuais é muito mais danosa do que em qualquer outra época. A raiz dos problemas ambientais brasileiros é uma cultura atrasada, que estimula e protege agressões ao meio ambiente, muitas vezes insanáveis, tanto no meio urbano como no rural. É por isso que muitos ignoram e negam o aquecimento global, a diminuição da camada de ozônio, a poluição do ar, o lixo tóxico e radioativo, a chuva ácida, a erosão da camada superior do solo e o desflorestamento da Amazônia.

É óbvio que a linha adotada pelo governo em relação aos problemas ambientais provocará novos desastres, como os já ocorridos em razão de ações governamentais realizadas na marra, contra pareceres originais dos órgãos ambientais, como é o caso da Usina de Belo Monte, no Pará. Sem falar das licenças ambientais, da fiscalização e do controle que deveriam ter evitado as tragédias de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, nas bacias do Rio Doce e São Francisco, respectivamente. A agenda ambiental do governo está com sinal trocado; em vez da busca de soluções em base científicas, a opção é pela truculência administrativa contra pesquisadores e cientistas.

Há inúmeros exemplos históricos de resultados desastrosos em consequência de políticas que, por razões ideológicas e religiosas, trataram a ciência como caso de polícia, como a perseguição do Colégio de Roma aos matemáticos italianos, porque consideravam uma heresia o cálculo infinitesimal, que foi fundamental para o desenvolvimento da Ciência e a Revolução Industrial na Inglaterra. O mesmo aconteceu com a medicina europeia na Idade Média, com a perseguição aos médicos seculares e o desprezo pela cultura judaica e islâmica por parte da Inquisição espanhola. O fundamentalismo ideológico preside decisões como a tomada na intervenção policial-militar no ICMBio.

Maria Cristina Fernandes: Como Olavo passou de ideólogo militar a rival

- Valor Econômico

Guru inflou ego militar abalado pelas políticas de reparação

Antes de se transformar no principal ideólogo da conspiração militar no governo Jair Bolsonaro, Olavo de Carvalho fez carreira como conferencista em colóquios das Forças Armadas e recebeu estreladas condecorações.

Ao eleger o general Hamilton Mourão, como seu principal alvo, Olavo refaz sua trajetória e volta ao ponto de partida de sua aproximação com os militares. Data do governo Fernando Henrique Cardoso, quando se tomaram as primeiras medidas de reparação da ditadura, movimento que também projetou tanto o presidente da República em sua pregação parlamentar quanto o atual vice, notório polemista em seu generalato nas Forças Armadas.

Olavo de Carvalho forneceu o substrato do discurso injustiçados-nunca-mais que lustrou a auto-estima militar num momento em que tiveram início a exumação de ossadas e a indenização de familiares de vítimas notórias do regime, como a filha de Carlos Lamarca.

Uma de suas primeiras conferências se deu no Clube Militar, no Rio, por ocasião dos 35 anos do golpe e a convite do general Helio Ibiapina. Presidente do clube por quatro mandatos consecutivos, Ibiapina chefiava a repressão em Pernambuco quando o líder comunista Gregório Bezerra, amarrado à corda de uma guarnição militar, foi exibido pelas ruas do Recife como um troféu da quartelada.

Neste discurso, o Olavo de 20 anos atrás apareceu irreconhecível. A fala, de improviso, foi transcrita e recebeu o nome de "Reparando uma injustiça pessoal". Nela, o escritor declamou um longo mea-culpa da oposição que fizera ao golpe. Naquele dia, lustrou os brios de militares humilhados pelo discurso da reparação. Disse que eles deveriam se orgulhar de terem desmontado as guerrilhas comunistas e fascistas que dominavam o país - "Nunca se deteve uma revolução com tão poucas mortes".

Ele já dizia o que diz agora, sobre o fracasso em mudar as mentalidades que "devolveu o país para os comunistas". Mas isso não deveria ofuscar suas estrelas. "Não se envergonhem de sua obra. Levantem suas cabeças, tenham orgulho e não permitam que nenhum hipócrita comunista venha se fazer de seu fiscal".

Naquele dia, o guru que hoje atribui aos militares um "exíguo horizonte de consciência e invencível submissão aos critérios politiqueiros de julgamento", se mostrou benevolente e até paternal: "Nunca, nunca cedam a sua dignidade ao falso moralismo da hora, nunca sacrifiquem aquilo que é elevado e digno em vocês àquilo que é baixo e vil num outro qualquer."

Nilson Teixeira*: O gradual declínio do otimismo

- Valor Econômico

Ainda há tempo para ajustar o rumo, apesar de ser difícil que o governo recupere o otimismo do fim de 2018

O Ministério da Economia tem defendido uma plataforma liberal. A agenda inclui uma proposta de reforma da Previdência, que geraria uma economia de R$ 1,1 trilhão em 10 anos; um programa de privatizações e de venda de ativos, totalizando R$ 1 trilhão; uma reforma tributária, que diminuiria bastante a carga tributária sobre as empresas; uma maior abertura no comércio internacional, que contribuiria para o aumento da produtividade; uma redução da burocracia, para melhorar as condições de negócios no país; e a transferência da gestão de recursos para Estados e municípios, visando elevar a eficiência na utilização desses fundos.

Essa agenda e a crença de que o ministro da Economia será capaz de implantá-la são responsáveis pelo otimismo de uma grande parcela do mercado. Todavia, os equívocos dos últimos meses têm reduzido esse sentimento e atenuado a valorização dos ativos.

Mesmo descontando a confiança excessiva que acomete ocupantes do poder, representantes do governo têm superestimado os benefícios da implantação gradual dessa agenda. É difícil crer, por exemplo, que o país crescerá, nos primeiros trimestres após a aprovação de uma reforma previdenciária, ao ritmo de 6% ao ano. Ao mesmo tempo, é difícil assumir, como recentes documentos do governo deixaram claro, que o país terá superávit primário a partir deste ano. Do mesmo modo, não é possível atribuir a realização dos 23 leilões de concessões deste ano ao atual governo, pois o seu trâmite ocorreu praticamente todo no governo anterior. Há exagero nesse comportamento.

A tramitação da emenda do orçamento impositivo confirma a completa falta de articulação do governo no Congresso. Essa desarticulação pode até ser condizente com o discurso de campanha, mas não é apropriada para um governo que precisa construir uma maioria parlamentar. Esse é outro fator que justifica um maior questionamento sobre as perspectivas para os próximos anos.

Ribamar Oliveira: Regime de capitalização terá que ser detalhado

- Valor Econômico

Reforma entra, agora, em sua fase mais difícil

Aprovada a proposta de reforma da Previdência na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados, as dificuldades do governo serão ainda maiores daqui para frente. Agora é que começa a discussão para valer, pois cada mudança será avaliada com lupa e ficarão claras as perdas de cada um dos futuros aposentados. Não há dúvida que a maioria da população é favorável à reforma da Previdência, sabe que ela é fundamental para o equilíbrio das contas públicas, mas a necessidade inquestionável das mudanças tende a obscurecer quando cada um fica sabendo em quanto será atingido.

O secretário especial de Previdência e Trabalho, Rogério Marinho, prometeu apresentar todas as informações sobre as alterações que estão sendo propostas, os dados em que as medidas foram baseadas, as planilhas utilizadas, o impacto fiscal de cada mudança e as projeções para o gasto futuro da Previdência.

Com as planilhas e os dados apresentados, as consultorias da Câmara e do Senado, os consultores e especialistas do mercado farão suas próprias projeções para verificar a consistência das propostas do governo. Isso é normal e até mesmo desejável, em uma sociedade democrática, principalmente no caso de alterações previdenciárias, que atingem dezenas de milhões de pessoas.

Cada mudança proposta poderá ser quantificada, ou seja, será possível saber qual a contribuição que ela dará para a redução total da despesa e quem serão os eventuais "perdedores". Isto dificultará muito o andamento da reforma, pois as informações detalhadas alimentarão lobbies de toda natureza. Mas não há como ser diferente, em um regime democrático.

Quem acompanhou pela televisão a votação da reforma na CCJC da Câmara, na noite de terça-feira, constatou que muitos deputados votaram favoravelmente à admissibilidade da proposta fazendo ressalvas a vários pontos do texto. Além da mudança no Benefício de Prestação Continuada (BPC), que boa parte não admite aprovar, as alterações na aposentadoria rural também têm alta probabilidade de não constarem do texto substitutivo a ser votado.

Os dados e as projeções que o secretário vai apresentar mostrarão que o impacto fiscal das duas mudanças será muito pequeno, o que ajudará muitos a sustentar com maior veemência o voto contrário a elas. A Instituição Fiscal Independente (IFI), entidade do Senado, estimou que o aumento de 55 para 60 anos na idade mínima para aposentadoria da trabalhadora rural tem um impacto fiscal de R$ 49,6 bilhões em dez anos.

Merval Pereira: Questão de DNA

- O Globo

A paranoia familiar é alimentada pela História, pois nada menos que oito presidentes foram substituídos por seus vices desde o início da República

A disputa aberta de poder em que o vice-presidente Hamilton Mourão está envolvido, não por acaso, não tem paralelos históricos pela violência das palavras empregadas por Olavo de Carvalho e seus pupilos, entre eles Huguinho, Zezinho e Luisinho, como passaram a ser conhecidos no meio político os filhos de Bolsonaro, que ele denomina carinhosamente como 01, 02 e 03, como se recrutas fossem.

São os seus recrutas, “sangue do meu sangue”, e nada também acontece ali por acaso. Bolsonaro fala através de seu filho Carlos, o 02, especialista nas mídias sociais a quem Bolsonaro atribui grande parte de sua vitória. Quando Bolsonaro estava internado, depois da tentativa de assassinato que sofreu ainda na campanha eleitoral, Carlos já evidenciou o que achava de Mourão.

Tuitou afirmando que a morte do pai interessava não apenas aos inimigos declarados, mas a quem está por perto, principalmente após aposse. De lá para cá a disputa só fez escalar, inclusive porque Mourão assumiu o papel de moderador de um governo que vive de intrigas e embates permanentes como estilo de fazer política.

A paranoia familiar é alimentada pela História, pois nada menos que oito presidentes foram substituídos por seus vices desde o início da República, por motivos variados, desde a morte do titular até o afastamento por impeachment.

Desde o primeiro presidente, Deodoro da Fonseca, cujo vice Floriano Peixoto assumiu com sua renúncia e, em vez de convocar eleições, governou sob estado de sítio, até Temer, que, recusando o papel de “vice decorativo”, comandou uma conspirata política para assumir o lugar de Dilma, quando esta se enfraqueceu pelo fracasso econômico e se expôs ao cometer crimes de responsabilidade fiscal, a escolha dos vices sempre foi problemática.

Uma disputa aberta como a atual, mas não tão pouco sutil, aconteceu quando o general Figueiredo teve que viajar para a Clínica Cleveland para colocar pontes de safena. O político mineiro Aureliano Chaves assumiu o governo e fez o mesmo contraponto de Mourão em relação a Bolsonaro. Chegava cedo ao Palácio do Planalto, e saía altas horas da noite, a salientara fama de preguiçoso de Figueiredo. O entorno do ditador não escondia a irritação, e acusava Aureliano de deixar a luz acessa no gabinete presidencial para dar a impressão de que trabalhava.

Míriam Leitão: Trapalhadas em família

- O Globo

Bolsonaro se deixa dominar pelos filhos, que atacam integrantes do governo, como o vice-presidente, e assumem poderes que não têm

O último surto dos filhos do presidente mostra, uma vez mais, a situação bizarra em que o Brasil se encontra. Um vereador do Rio fica dando ordens de bom comportamento ao vice-presidente da República. A família do governante se comporta como se o país tivesse escolhido, nas urnas, o clã inteiro para governar. O presidente não consegue ter a mínima autoridade em sua própria casa e aparece como um joguete na mão dos filhos.

Quando era perguntado sobre por que demonstrava pensamentos diferentes dos do então presidente João Figueiredo, Aureliano Chaves costumava responder: “não sou demissível ad nutum”. Esse é o ponto que inquieta os filhos do presidente. O vice-presidente, Hamilton Mourão, foi eleito, tanto quanto Bolsonaro, e tem suas próprias ideias. Não há razão alguma para que não possa tê-las, até porque na democracia a diversidade sempre foi melhor que a ordem unida.

Mourão não apareceu na vida nacional por ser um disciplinado soldado. Pelo contrário, exatamente por expor suas ideias — de admiração pelo regime militar — o general Mourão foi duas vezes punido antes de ir para a reserva. As suas indisciplinas, aliás, não foram piores que as do capitão Jair Bolsonaro, que acabou preso por 15 dias por desafiar superiores. Portanto, que não se peça agora a Mourão que apenas bata continência, seja um soldado de Bolsonaro. Goste-se ou não, ele tem um mandato.

Já os filhos do presidente não têm mandato para dar ordens na administração da República. Carlos foi eleito vereador, pode cuidar dos inúmeros problemas da cidade do Rio. Eduardo, seu irmão mais novo, foi eleito deputado federal e tem um mandato a exercer na Câmara. Os dois ontem estavam no Twitter se revezando em críticas a Mourão. Eduardo, a propósito, também não é —é bom lembrá-lo disso —o ministro das Relações Exteriores. O cargo está mal ocupado, é verdade, mas isso não dá ao filho número três a liberdade de assumir o comando da política externa. Flávio, o primogênito, atingido por um escândalo na largada, que ainda não explicou, ficou mais quieto inicialmente. Mas já apresentou uma ideia completamente sem sentido de acabar com a reserva legal nas propriedades rurais. Como senador, ele deveria ter a responsabilidade de estudar, por alto que seja, os assuntos sobre os quais quer fazer algum projeto.

Luís Fernando Verissimo: Guerra das estrelas

- O Globo

‘Nosso futuro está escrito nas estrelas” disse Shakespeare, ou Brutus pela mão de Shakespeare. Também disse o contrário: que nosso destino vem, não do alto, mas das nossas entranhas, e quem somos nós para exigir que, além de ser Shakespeare, Shakespeare seja coerente?

No Brasil de Bolsonaro podemos escolher não só quem ou o que nos guiará, mas os detalhes da sua natureza. Para orientar-se e orientar a nação neste começo de governo, Bolsonaro escolheu as estrelas. Para assegurar-se de uma relação direta com as estrelas escolheu, para começar, um astrólogo famoso. Se os astros falharem... não faltará um suprimento de estrelas saudosas de outra natureza, prontas para intervir.

O Paulo Guedes não usa estrelas nos ombros, nem —que se saiba — metafóricas, mas seus sonhos americanistas e seus delírios de mercado aberto, custe socialmente o que custar, devem fazer dele talvez o mais perigoso dos nossos guias.

Comenta-se em Brasília que na volta dos Estados Unidos, onde ouviu a notícia de que a Petrobras não aumentaria o diesel, Guedes foi ao escritório de Bolsonaro, que trancou a porta. Durante duas horas só se ouviu uma voz de dentro do escritório. Na saída, Bolsonaro suava e parecia trêmulo. Durante as duas horas, ele só ouvira reprimendas e ameaças do presidente. Acabara tendo de ouvir a pergunta humilhante: o senhor não sabe, seu Jair, no que nós nos metemos? Em que briga de cachorro grande?

A situação é essa. Estrelas graduadas, metidas com estrelas metafísicas, metidas com estrelas liberais, numa constelação em choque, ou várias constelações engalfinhadas num pega sideral, até que se definam. Quem vencerá? Não se sabe nem quem está na frente. Os militares tem as armas e o hábito, embora se digam regenerados e teimem em representar essa nova normalidade. O Olavo de Carvalho representa uma excentricidade de um só, o que não deixa de ser uma credencial política. Não sei se anda armado.

Carlos Alberto Sardenberg: Imprensa livre incomoda. Ainda bem

- O Globo

A fúria com que Toffoli reagiu a reportagem só fez piorar o ambiente para ele e para a Suprema Corte

Digamos, provisoriamente, que o ministro Dias Toffoli tem razão quando decreta: “Se você publica uma matéria chamando alguém de criminoso, acusando alguém de ter participado de um esquema, e isso é uma inverdade, tem que ser tirado do ar. Ponto. Simples assim.”

Mas quem decide onde está a verdade? E como?

O pessoal do site “O Antagonista” e da revista “Crusoé” encontrou em processo da Lava-Jato uma menção direta a Dias Toffoli. Trata-se de um esclarecimento de Marcelo Odebrecht a respeito de um e-mail que enviara aos então executivos da empreiteira, Adriano Maia e Irineu Meireles, em 13 de julho de 2007, perguntando: “afinal, vocês fecharam com o amigo do amigo do meu pai?”

Procuradores levantaram as questões corretas: primeira, quem é “amigo do amigo do meu pai”? E, segunda: fecharam o quê?

Jornalistas fariam as mesmas perguntas. E a resposta saiu fácil.

O pai de Marcelo é Emílio, amigo de Lula desde muito antes daquele e-mail. E o amigo de Lula, referido, era Dias Toffoli, então no cargo de ministro-chefe da Advocacia-Geral da União, governo Lula.

Ricardo Noblat: Aproxime-se para lá

- Blog do Noblat / Veja

A canelada de Rodrigo Maia em Bolsonaro
Bem que o presidente Jair Bolsonaro tentou agradar Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados, no pronunciamento que gravou ontem a propósito da aprovação do texto da reforma da Previdência Social na Comissão de Constituição e Justiça. Foi uma menção rápida, mas ele a fez:

– Agradeço o empenho e o trabalho da maioria dos integrantes da comissão e também o comprometimento do presidente Rodrigo Maia.

Menos de duas horas depois, em entrevista à GloboNews, Maia deu-lhe uma forte canelada:

– Qual é a agenda do governo? Qual é a agenda do governo para a Educação? Eu não conheço. Qual é a agenda do governo nas relações internacionais? É um desastre.

E foi em frente. A falta de uma agenda, segundo ele, impede que os deputados decidam se estão dispostos ou não a apoiar o governo. Perguntado se sua relação com o presidente da República seria melhor do que já foi “como deputado”, Maia respondeu:

– Pessoalmente, é pior.

A canelada de Maia em Bolsonaro tem a ver diretamente com três coisas pelo menos. Primeira: o tratamento de segunda classe que Bolsonaro dá a ele e aos demais deputados. Maia acha que Bolsonaro contribui para demonizar a política e aposta no quanto pior, melhor.

Segunda coisa: o quase nenhum empenho de Bolsonaro para aprovar a reforma da Previdência. Bolsonaro comporta-se como se o Congresso fosse o único responsável pela aprovação ou não da reforma. E está pronto para culpá-lo caso a reforma seja rejeitada.

A terceira coisa foi apontada pelo próprio Maia durante a entrevista com uma frase curta: “Há um conflito dentro desse governo que o Parlamento não quer participar”. O conflito opõe militares, ministros com viés ideológico e os filhos do presidente da República.

É por isso que Maia quer distância do governo. Seu sentimento é também compartilhado pelos líderes dos partidos de centro. Se ao governo falta uma agenda, o Congresso tem a sua. E dela faz parte a reforma da Previdência e o fortalecimento do Estado de Direito.

Vai acabar mal

Governo movido a crises
Foi uma festa e tanto a que celebrou, ontem, os 89 anos do ex-presidente José Sarney. A mansão onde ele mora no Lago Sul de Brasília encheu-se de políticos da ativa e da reserva, e de ministros do Tribunal de Contas, além de parentes e amigos do aniversariante.

Ibope: Bolsonaro tem pior avaliação no início de um governo eleito

Índice dos que consideram atual gestão ótima ou boa é o mais baixo entre presidentes da redemocratização, diz pesquisa

Eduardo Bresciani / O Globo

BRASÍLIA - A gestão de Jair Bolsonaro tema pior avaliação para o início de um governo eleito desde a redemocratização, segundo dados da pesquisa Ibope, contratada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), divulgada ontem. Segundo o levantamento, 35% consideram a gestão ótima ou boa, enquanto 27% avaliam como ruim ou péssima. Os números mostram, no entanto, que a maioria dos entrevistados (51%) dizem confiar no presidente.

Primeiro presidente eleito pelo voto direto após a ditadura militar, Fernando Collor tinha 45% de avaliação ótima ou boa no início de seu governo, em maio de 1990. Fernando Henrique (41%), Luiz Inácio Lula da Silva (51%) e Dilma Rousseff (56%) também registraram mais avaliações positivas do que Bolsonaro nos meses iniciais do primeiro mandato.

A avaliação do governo Bolsonaro só é melhor do que o início das gestões de Itamar Franco — 34% em janeiro de 1993 — e de Michel Temer, avaliada como ótima ou boa por 14% em setembro de 2016. Itamar e Temer assumiram a Presidência após processos de impeachment de Collor e Dilma, respectivamente.

Na pesquisa feita em março pelo Ibope, sem ter sido contratada pela CNI, 34% consideravam o governo Bolsonaro ótimo ou bom, 34% regular e 24% ruim ou péssimo.

“VOTO DE CONFIANÇA”
Para o gerente-executivo de Pesquisa e Competitividade da CNI, Renato da Fonseca, a avaliação de Bolsonaro tem relação com a forma como o presidente se elegeu. O percentual que considera o governo atual como ótimo e bom (35%) é semelhante às intenções de voto que Bolsonaro tinha em pesquisas às vésperas do primeiro turno.

— As pessoas que não estavam engajadas desde o início e deram voto de confiança ainda não estão convencidas de que seus anseios serão atendidos —disse Fonseca.

A pesquisa Ibope também aponta, por outro lado, que 51% dizem confiar no presidente. O índice dos que não confiam é de 45%. Já 4% não souberam ou não quiseram opinar. O percentual dos que disseram aprovar a maneira de Bolsonaro governar também foi de 51%, enquanto 40% desaprovaram.

Maior sigla da direita espanhola flerta com conservadorismo radical

Partido Popular se repagina para atrair votos antes da eleição de domingo (28)

Lucas Neves / Folha de S. Paulo

MADRI - O Partido Popular (PP), maior força da política espanhola no campo conservador, anda de pele nova.

Acossado em seu terreno pelo Cidadãos (que se diz de centro) e pelo neófito Vox (ultradireita), recalibrou o discurso e retocou a imagem para se vender como “a” sigla de direita nas eleições gerais do próximo domingo (28).

No processo, a ala moderada do partido —ligada ao ex-primeiro-ministro Mariano Rajoy, destituído após a aprovação de uma moção de desconfiança, em junho de 2018— foi escanteada.

Ato contínuo, uma legião de ex-ministros do gabinete dele e de deputados do PP pediu as contas da política para buscar guarida na iniciativa privada.

Para repor as baixas, o novo líder da legenda e candidato a premiê no domingo, Pablo Casado, escalou um elenco sui generis.

Lá estão, entre outros, Adolfo Suárez Illana, filho do primeiro-ministro que encabeçou a redemocratização pós-Franco (no poder de 1976 a 1981), mas de perfil bem distante do centrismo conciliador do pai; e a marquesa e jornalista Cayetana Álvarez de Toledo, crítica contumaz de Rajoy.

Integram ainda a esquadra o toureiro Miguel Abellán e o pastor evangélico Juan José Cortés, que se tornou conhecido depois de sua filha ser assassinada por um pedófilo, nos anos 2000.

Todos buscam vagas no Congresso ou nos parlamentos locais, sob a batuta de Casado, que, em nove meses de liderança partidária, coleciona mais aparições midiáticas do que Rajoy em quase sete anos na chefia do governo espanhol —e 14 como número um do PP.

Clóvis Rossi: Espanha vota domingo, com dor

- Folha de S. Paulo

Medo, mais que esperança, condiciona o sufrágio

Em um mundo ideal, eleição é aquele momento em que o votante deposita esperança na urna. Fica evidente que a Espanha não vive precisamente momentos de idílio com a política e, por extensão, com as urnas, pois esperança é o bem mais escasso a ser depositado no pleito deste domingo (28).

O retrato mais preciso —e melancólico— desse desconforto com o voto aparece na coluna da escritora Lara Moreno para El País desta quarta-feira (24).

Depois de assistir aos dois debates da semana entre os principais candidatos, Lara escreveu algo que muitos brasileiros pensaram em 2018: “Eu queria votar com paixão. Eu queria votar com convencimento. Queria votar com os olhos abertos, não com os olhos fechados. Eu, sobretudo, queria votar sem dor. Espanha, que o domingo lhe seja leve”.

É pouco provável que venha mesmo a ser leve. Prevalece o voto com dor ou o voto do medo, em vez da esperança.

À esquerda, o medo é do crescimento do Vox, partido de recente formação, saudosista da ditadura franquista, que infelicitou o país durante os quase 40 anos que se seguiram à guerra civil de 1936/39.

É tão reacionário que, para apoiar na Andaluzia os partidos de centro e centro-direita mais votados, exigiu que estes renunciassem a medidas contra a violência machista. Santiago Abascal, seu líder, disse que tais medidas correspondem a “mandamentos da ditadura de gênero”.

Qualquer semelhança com o machismo do bolsonarismo não é mera coincidência: Vox é um dos grupos que tende a se integrar à internacional de extrema direita em formação na Europa, sob o comando de Steve Bannon, ex-conselheiro de Donald Trump, ídolo dos Bolsonaros.

Partido Vox convulsiona o cenário político da direita na Espanha

Ben Hall | Financial Times / Valor Econômico

Os espanhóis vão às urnas neste domingo na eleição geral mais altamente carregada dos últimos 40 anos. Mas, por um dos critérios, já existe um vencedor. O Vox, o partido ultranacionalista que irrompeu no cenário nacional no fim de 2018, transformou a correlação de forças políticas da Espanha. Supunha-se que o passado franquista tinha vacinado o país contra a extrema-direita que se alastrou por boa parte da Europa. Mas o Vox provou que isso era uma ilusão.

Pouco mais que seis meses atrás Pablo Casado, o líder do Partido Popular (PP), de centro-direita, ridicularizou a ideia de que o Vox representaria uma ameaça eleitoral. O Vox não tinha um único vereador em nenhuma cidade da Espanha, disse ele em entrevista ao "Financial Times". Na eleição geral passada, de 2016, o partido conquistou mero 0,2% dos votos e nenhum assento no Parlamento. Mas o Vox, comandado por Santiago Abascal, um ex-vereador do PP, é atualmente um turbilhão que agita o cenário político conservador. Tem 11% das intenções de voto nas pesquisas e poderá conquistar 30 das 350 cadeiras no Parlamento. A tempestade se armou tão rapidamente que as pesquisas podem estar subestimando o apoio ao Vox.

O premiê Pedro Sánchez, do socialista PSOE, disse na semana passada que "a Espanha sempre teve uma extrema-direita, dentro do PP ou fora dele. Agora a extrema-direita tem um partido próprio".

Sob o rígido controle do ex-premiê conservador José María Aznar, o PP se manteve como uma grande igreja, abarcando liberais sociais e econômicos, democratas-cristãos e os nostálgicos dos valores católicos tradicionais e de um Estado unitário e mesmo do regime autocrático de Francisco Franco.

Um país atolado na incerteza: Editorial / O Estado de S. Paulo

Desconfiança e cautela continuam sendo palavras de ordem nos mercados, enquanto se esperam os próximos lances da reforma da Previdência. O dólar, um dos melhores sinalizadores do humor dos investidores, disparou e foi negociado ontem a pouco mais de R$ 3,98. Fundamental para o futuro da economia brasileira, a reforma das aposentadorias havia completado com muita dificuldade só a primeira etapa na Câmara dos Deputados. Vencida a fase mais simples, a aprovação do projeto na Comissão de Constituição e Justiça, investidores, empresários e até economistas do Executivo tinham pouco ou nenhum motivo para maior otimismo. A inépcia política do governo havia sido o grande espetáculo da noite anterior. Na manhã de ontem, novos números de várias fontes confirmaram a fraqueza dos negócios, a escassez de empregos e a precária condição das contas públicas. Como elevar as apostas, se nem o presidente da República mostrava disposição para batalhar pelos ajustes mais importantes?

Uma das primeiras más notícias do dia foi a perda, em março, de 43.196 vagas formais – resultado das admissões e demissões no mês, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) do Ministério da Economia. O acumulado no trimestre ainda foi positivo, com saldo de 179.543 contratações, mas os dados do mês surpreenderam os analistas. O recuo poderia ser explicado, pelo menos parcialmente, pela antecipação de contratações em fevereiro, mas está aceso mais um farol de alerta. Nos primeiros três meses, a geração de empregos com carteira assinada foi 15,9% menor que no período de janeiro a março do ano passado.

Vagas fechadas e consumo estagnado combinam com inadimplência. O número de consumidores inadimplentes chegou em março a 63 milhões, o maior contingente da série iniciada em 2016, segundo a Serasa Experian. Por esse balanço, 40,3% das pessoas adultas estão com dívidas atrasadas e negativadas. Houve um aumento de 2 milhões em um ano.

Desemprego, concentração de gastos no início do ano (IPTU, IPVA, etc.) e um repique da inflação no primeiro trimestre pressionaram as famílias, comentou o economista Luiz Rabi, da Serasa Experian.

Comissão Especial exigirá melhorias na articulação política: Editorial / O Globo

Passagem do projeto da reforma da Previdência pela CCJ mostra que persistem falhas no bloco governista

A considerar atumultuada aprovação do projeto de reforma da Previdência, terça-feira, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), na Câmara, como treino para embates decisivos que vêm aí, o grupo de parlamentares que apoiam o governo Bolsonaro continuas em poder ser chamado de “base parlamentar”. Melhorou, mas a articulação política ainda precisa ser aperfeiçoada, para enfrentar os choques na Comissão Especial, em que o mérito das propostas será discutido.

Embora caiba à CCJ a deliberação sobre a constitucionalidade do projeto, as discussões terminaram tratando de questões demérito, coma oposição deixando claro que usará a tramitação do projeto apenas para fazer luta política. Demonstra não estar interessada em discutir afundo a reforma, talvez por perceber que diante da avalanche de estatísticas que justificam as mudanças não teria o que dizer. Restam as táticas de obstrução, as possíveis e as impossíveis. Mais uma razão pela qual governo e parlamentares da situação não podem abrir brechas para protelações. Por exemplo, a negativa ao pedido de planilhas sobre efeitos da reforma, o que permitiu que se criasse a ideia falsa de que existe algo a esconder na proposta.

A reforma se move: Editorial / Folha de S. Paulo

Proposta para a Previdência passa pela CCJ sem mudanças relevantes

Embora tardia, a aprovação da proposta de reforma da Previdênciapela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, na noite de terça (23), reforça a impressão de que uma certa inércia política favorece o avanço do texto.

A imperícia do governo Jair Bolsonaro (PSL) nos entendimentos com os partidos atrasou a data de votação além do usual. Ainda assim, obteve-se maioria expressiva no colegiado, de 48 a 18 em um total de 66 membros. Convém recordar que, em 2016, o projeto previdenciário encaminhado por Michel Temer (MDB) passou ali por 31 a 20.

Desta vez, há um presidente em início de mandato obtido nas urnas, a cumprir o anunciado a seus eleitores. Mais que isso, a perspectiva de desdobramentos funestos em caso de fracasso da reforma tende a aguçar o instinto de sobrevivência dos congressistas.

Com Bolsonaro, as crises nascem no próprio governo: Editorial / Valor Econômico

Michel Temer, quando era vice-presidente de Dilma Rousseff, choramingava de seu papel meramente "decorativo" no governo - deixou de sê-lo quando a substituiu na Presidência. Hamilton Mourão não quer, nem tem temperamento para ser um vice decorativo, e os filhos do presidente Jair Bolsonaro, que integram o novo poder da República, têm certeza que Mourão almeja o destino de Temer. Abriu-se mais um capítulo da saga de Bolsonaro na Presidência, com a rotina de criação sucessiva de problemas para si. Ou, como bem definiu o líder do PSL no Senado, Major Olímpio, sobre o impasse criado pelas divergências do "02" em relação a Mourão: é a comunhão do "inútil com o desagradável".

O Planalto sequer teve tempo de respirar aliviado pela passagem de seu principal projeto, o da reforma da previdência pela Comissão de Constituição e Justiça, e consumindo energias para apartar mais uma briga provocada pelos filhos de Bolsonaro. Governos tem regras e ritos para amortecer e resolver divergências, mas a atual administração de Bolsonaro balança ao sabor da fuzarca causada por sua família. Os ataques a Mourão descortinaram um conflito aberto entre duas facções no poder, que pode em algum momento paralisar o governo.

O vice-presidente tem, de fato, feito um contraponto às posições extremistas de Bolsonaro e família, no que exerce um papel benfazejo e útil a favor da moderação e, nisso, encarna o instinto de sobrevivência político de quem não enxerga o mundo pelas lentes das redes sociais. Ao fazer isso, cumpre também a função de mostrar que o governo tem, e precisa ter, a flexibilidade que o extremismo do presidente (e seus filhos) não permite ver. Em vários episódios em que Mourão entrou em assuntos polêmicos, foi sua posição que prevaleceu. Foi assim no caso da política do país em relação à ditadura de Nicolás Maduro, na Venezuela, e no episódio da transferência da embaixada do Brasil de Tel-Aviv para Jerusalém.

Fernando Pessoa: Acordar

Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,
Acordar da Rua do Ouro,
Acordar do Rocio, às portas dos cafés,
Acordar
E no meio de tudo a gare, que nunca dorme,
Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono.

Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar,
Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.
À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se
Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,
E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo.

Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne,
Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha,
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom,
São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada,
Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes,
Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste,
Seja

A mulher que chora baixinho
Entre o ruído da multidão em vivas...
O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito,
Cheio de individualidade para quem repara...
O arcanjo isolado, escultura numa catedral,
Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã,
Tudo isto tende para o mesmo centro,
Busca encontrar-se e fundir-se
Na minha alma.

Eu adoro todas as coisas
E o meu coração é um albergue aberto toda a noite.
Tenho pela vida um interesse ávido
Que busca compreendê-la sentindo-a muito.
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,
Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas,
Para aumentar com isso a minha personalidade.

Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio
E a minha ambição era trazer o universo ao colo
Como uma criança a quem a ama beija.
Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras,
Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo
Do que as que vi ou verei.
Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações.
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos.
Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca.

Dá-me lírios, lírios
E rosas também.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também,
Crisântemos, dálias,
Violetas, e os girassóis
Acima de todas as flores...

Deita-me as mancheias,
Por cima da alma,
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Meu coração chora
Na sombra dos parques,
Não tem quem o console
Verdadeiramente,
Exceto a própria sombra dos parques
Entrando-me na alma,
Através do pranto.
Dá-me rosas, rosas,
E llrios também...

Minha dor é velha
Como um frasco de essência cheio de pó.
Minha dor é inútil
Como uma gaiola numa terra onde não há aves,
E minha dor é silenciosa e triste
Como a parte da praia onde o mar não chega.
Chego às janelas
Dos palác ios arruinados
E cismo de dentro para fora
Para me consolar do presente.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Mas por mais rosas e lírios que me dês,
Eu nunca acharei que a vida é bastante.
Faltar-me-á sempre qualquer coisa,
Sobrar-me-á sempre de que desejar,
Como um palco deserto.

Por isso, não te importes com o que eu penso,
E muito embora o que eu te peça
Te pareça que não quer dizer nada,
Minha pobre criança tísica,
Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios,
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também..

Mariza - Maria Lisboa