domingo, 17 de novembro de 2019

Opinião do dia – Luiz Werneck Vianna*

IHU On-Line - Após a soltura do ex-presidente Lula, o presidente Bolsonaro determinou que seus ministros não se pronunciassem sobre a decisão do STF e ele próprio declarou que não vai rebater as declarações do ex-presidente Lula, mas já fez vários comentários em resposta às declarações do ex-presidente. Como o presidente e a ala bolsonarista tendem a lidar com a presença de Lula no cenário político?

Luiz Werneck Vianna – Tem coisas que são enigmáticas. Qual é o comportamento das Forças Armadas em relação a tudo isso? Como eles estão observando esse quadro? Porque no limite está posta a volta de um regime militar do tipo AI-5, como já foi preconizado por fontes palacianas e pelo filho do presidente da República. Se isso tem passagem ou não, seria uma aventura dos infernos, porque o Brasil não é mais o país de 64. O país mudou muito para o bem e para o mal. Esse enigma vamos ter que resolver nos processos. Agora, não convém provocar a resolução de uma maneira que seja desastrosa para o país. O que penso é que apareceu uma oportunidade nova para o centro político.

IHU On-Line – Em que sentido?

Luiz Werneck Vianna – Um centro liberal e progressista, conforme está se dizendo aí. Apareceu uma oportunidade para este lugar que estava vazio e passa por políticos, personalidades e movimentos sociais que o suportem, que o levem à frente.

IHU On-Line – Quem pode assumir este lugar?

Luiz Werneck Vianna – A personificação disso está complicada, mas o lugar apareceu; alguém vai ocupá-lo. As oportunidades estão aí e é evidente que não sou eu quem está dizendo isso de um lugar obscuro da academia brasileira; isso está presente inclusive nos editoriais dos grandes jornais do dia de hoje [12-11-2019]. Não interessa ao país uma conflagração, especialmente uma conflagração que não tem maiores propósitos. Vamos alinhar o país à política externa americana do Donald Trump? Será que ele ganha as eleições? Será que ele não será objeto de um impeachment?

E mais: o caso do Chile deveria ser exemplar de como a política do ministro Guedes levou a um levante popular no Chile pelo aumento da passagem do metrô, de tal forma que a as tensões e os conflitos se tornaram insuportáveis. O presidente [Sebastián] Piñera, apesar de todos os recursos que tem promovido, inclusive a admissão de uma nova Constituição, vai conseguir estar à frente do governo até o final do seu mandato? Esse caminho ensina que a política à la Chicago Boys, que foi levada a cabo no Chile, apresenta frutos muito venenosos a médio e longo prazo. Essa leitura está sendo feita.

Há outras possibilidades de cuidar do desenvolvimento capitalista do país com as instituições políticas funcionando, com a valorização da democracia política, e com políticas sociais inclusivas. Não há incompatibilidade entre políticas sociais inclusivas e o regime capitalista. Depende de que regime capitalista estamos falando. Se for dominação autocrática, é uma coisa, tal como ocorreu no Chile de [Augusto] Pinochet. A partir de uma convivência democrática, é outra coisa, são outras possibilidades de convivência, de educação dos conflitos e de solução e de admissão dos conflitos, da legitimidade deles.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC- Rio. Entrevista, IHU On-Line, 14 Novembro 2019

Luiz Sérgio Henriques * - De curtos-circuitos e centelhas

- O Estado de S.Paulo

A sedução do homem providencial percorre como praga a política latino-americana

Nas sociedades de risco em que nos movemos, conflito e mudança social parecem não seguir caminhos mapeados e, por isso, dotados daquele mínimo de previsibilidade que mesmo precariamente nos dava certo conforto intelectual. Era possível especular, com mais ou menos certeza, como e quando a lenta evolução da “base material” iria dar lugar aos movimentos mais velozes e intrincados da “superestrutura”, para usar a terminologia marxiana de curso comum. Erros de previsão, diga-se de passagem, eram bem mais constantes do que os poucos acertos, mas havia alguma familiaridade com o mundo que nos cercava e aparentemente podia ser decifrado com as categorias da política ou da economia política.

Pois essa aparência se dissolveu de vez. Vemo-nos agora, como sugere Fernando Henrique Cardoso, em meio a fios desencapados cujo contato acidental pode desencadear curtos-circuitos de proporções imprevistas, passando transversalmente por classes e camadas sociais, ignorando ou redefinindo interesses materiais brutos, acirrando demandas de reconhecimento ou explorando ressentimentos difusos. Um conhecedor das revoluções do século 20 poderia mencionar, a propósito, a centelha – a iskra, não por acaso o título de um jornal operário russo – que faria incendiar todo o edifício da ordem, mas o que falta agora, irremediavelmente, é o agente político – o partido – que compreende a si mesmo como capaz de dominar todo o processo e encaminhá-lo para o fim previamente disposto.

Na falta desse demiurgo – o que não é de lamentar –, requerem-se doses adicionais de cautela e comedimento, atenção aos riscos que assediam nossas sociedades e afeição inabalável às formas da democracia. Já é alguma coisa que tenha desaparecido do horizonte, a não ser no caso de seitas francamente minoritárias, o apelo revolucionário que, estivéssemos nos anos 1960, teria imposto o recurso às armas e a militarização da política – ou, na verdade, a anulação desta última da pior forma possível. Cuba, o símbolo daquela época, hoje é parte do problema, não hipótese de solução. A manutenção do autoritarismo na antiga ilha rebelde chega a ser funcional para a extrema direita da região, unida, como se viu em recente voto nas Nações Unidas, na estratégia infame do bloqueio, que enrijece o regime, garante-lhe algum consenso passivo e, acima de tudo, castiga cruelmente o povo cubano.

Alberto Aggio* - Aporias da ‘frente democrática’

- O Estado de S.Paulo

A competição eleitoral não deverá obstar uma unidade reformista em favor da Nação

A queda de popularidade do presidente Jair Bolsonaro fez com que se abrissem especulações a propósito do quadro sucessório, que, por sinal, ainda vai longe. Diante das dificuldades de governança cada vez mais evidentes, o próprio presidente não se furtou a estimular o desvelamento do quadro de oponentes, fosse ele composto pelo que resta da oposição derrotada na eleição que lhe garantiu o poder ou por aqueles que, vendo os problemas de largo calado do governo, passaram a buscar um espaço para iniciar a órbita em direção a uma possível candidatura futura.

Sem um projeto claro a perseguir como marca de seu governo, além da confusa intenção de destruir o que “a esquerda impôs ao País” durante as três últimas décadas, a Bolsonaro interessa que a questão eleitoral permaneça flutuando como tema a possibilitar-lhe uma contraposição retórica com seus possíveis adversários. Sua sucessão passou a ser um instrumento usado pelo presidente para medir a temperatura em relação aos seus apoios, sem necessitar, mais uma vez, ceder à articulação com o mundo político. Bolsonaro continua investindo suas fichas nas correias de transmissão que lhe garantiram a vitória eleitoral, com prevalência nas redes sociais.

Permanecer com o porcentual de apoio que lhe garanta a passagem para o segundo turno em 2022 parece ser o objetivo que está por trás dessa estratégia.

Ao admitir que disputará sua própria sucessão, contraditando discurso de campanha, quando defendeu o fim da reeleição, Bolsonaro aferra-se à ideia de que o melhor cenário seria não permitir o surgimento de novos postulantes, consolidando a contraposição eleitoral com o PT, o que lhe garante um público cativo e, supostamente, poderia dar-lhe novamente a vitória. Contudo, como se viu, emergiram alguns nomes, uns mais e outros menos abertamente, que procuraram aproveitar-se da oportunidade para se colocarem como protagonistas dessa precoce contenda. No cenário que se instalou, podem-se identificar alguns “dissidentes” em velada campanha. Outros, na oposição derrotada, pleiteiam uma nova identidade para esse campo, mas há ainda aqueles que acalentam uma confrontação entre “mitos” e continuam a reiterar os velhos bordões de antes. De novidade apenas uma reaparição, até certo ponto esperada, a prometer superar o “último” dos vários “ciclos de erros” vividos pelo país nos últimos tempos.

Desafio é construir agenda que atenda aos anseios do país

Políticos e especialistas avaliam como o centro pode driblar a polarização, reforçada pela soltura de Lula e seu renovado embate com Bolsonaro. Não embarcar no discurso radical e apostar em uma agenda propositiva, que atenda aos reais anseios do país, são alguns dos caminhos apontados.

Os caminhos no debate político fora da polarização Lula-Bolsonaro

Silvia Amorim, Bruno Góes e Bernardo Mello | O Globo

A soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva reacendeu o embate político da campanha de 2018 que resultou na eleição do presidente Jair Bolsonaro. O confronto entre petistas e bolsonaristas, que fez naufragar na disputa nomes que se apresentavam como opções mais moderadas, ganhou novos contornos quando, ainda no primeiro dia após sua liberdade, Lula já disparou seus primeiros ataques ao presidente.

A retomada da polarização volta a colocar representantes de partidos de centro diante do dilema: como evitar que o espaço político seja novamente duopolizado pelas forças políticas que chegaram ao segundo turno na última eleição? Há espaço para o centro com Bolsonaro e Lula dominando a cena política?

O GLOBO pediu que políticos e especialistas avaliassem o cenário. Foram ouvidos o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), o diretor do Datafolha, Mauro Paulino, o ex-governador do Espírito Santo Paulo Hartung e o cientista político Carlos Melo.

Um consenso inicial é que, apesar do ambiente polarizado, há espaço para um caminho moderado em relação aos estilos de Lula e Bolsonaro. Outra resultante geral é a avaliação de que, para as lideranças de centro, deve predominar uma agenda propositiva em vez de um discurso negativo — o centro não pode ser um mero meio-termo entre esquerda e direita nem achar que contundência é sair xingando todo mundo, resumiu Carlos Melo.

O ex-presidente Fernando Henrique defende que se busque um discurso voltado a interesses concretos da população. Maia acredita que apoiadores de Lula e de Bolsonaro pouco ouvem fora das próprias bolhas, mas que fora delas há um grande contingente de pessoas em busca de diálogo. Já Hartung considera que é cedo para antecipar a disputa eleitoral e espera que a polarização arrefeça em breve.

Mauro Paulino lembra que, em 2018, uma parcela dos eleitores se movimentou como pêndulo, indo na direção oposta do candidato que não queria. Para ele, há espaço na próxima eleição para candidaturas que se apresentem contrárias à radicalização.

E AGORA, CENTRO?

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, EX-PRESIDENTE ‘Não se trata de atrair eleitores de centro, mas todo o eleitorado’

Não se trata de atrair “eleitores do centro”, mas de atrair os eleitores em geral. É preciso que o candidato tome posição e diga com clareza o que pensa fazer no país como um todo, mas sem esquecer que as “pessoas” têm aspirações e demandas concretas, e é em função dessas expectativas que agem.

A polarização atual está centrada na política e o presidente foi eleito em um momento no qual cabia uma agenda negativa (dizer não ao PT, não à criminalidade e não à corrupção). É se de esperar que em 2022 o eleitorado queira uma agenda positiva.

Luiz Carlos Azedo - Por que tanto atraso?

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Na República, a constituição de empresas não dependia mais do governo, e sim da vontade dos empreendedores. Era uma revolução e o Brasil integrava-se à economia internacional”

Um comentário no Twitter do ministro da Educação, Abraham Weintraub, nos leva à indagação que intitula a coluna: “Não estou defendendo que voltemos à Monarquia mas… O que diabos estamos comemorando hoje? Há 130 anos foi cometida uma infâmia contra um patriota, honesto, iluminado, considerado um dos melhores gestores e governantes da História (Não estou restringindo a afirmação ao Brasil)”, disse o ministro, na sexta-feira, em meio a comemorações dos 130 anos da proclamação da República. Referia-se, obviamente, a D. Pedro II, que governou o país de 1840 a 1889.

A breve intervenção do ministro, que gerou muita polêmica nas redes sociais, revela muita coisa, a começar por um natural desconhecimento sobre a História do Brasil, sobretudo no Império, que sempre foi muito pouco estudado no ensino médio e nos cursinhos para vestibular. Em segundo lugar, indica uma nostalgia bem característica do pensamento reacionário, como já tivemos oportunidade de tratar por aqui. Em parte, isso acontece porque, para consolidar a República, nossos militares e políticos, impregnados de positivismo, tentaram passar uma borracha na história anterior ao15 de novembro de 1889. Diga-se de passagem, para alegria de uma elite latifundiária, patrimonialista e racista, que nunca admitiu a devida reparação aos ex-escravos e seus descendentes; muito pelo contrário, lutou para manter privilégios e obter indenizações, já que considerava o escravo uma propriedade privada, assegurada pela Constituição liberal de 1824, outorgada por D. Pedro I.

Ao contrário de todos os demais países do Novo Mundo, com exceção do Canadá e das Guianas, em 1922, o Brasil não se tornou uma república ao se tornar independente. Não foi apenas uma esperteza de D. João VI, que recomendou a iniciativa ao filho, se a ruptura com a Corte portuguesa fosse inevitável. Havia ali um projeto de reunificação do império colonial português, pois o príncipe D. Pedro I era herdeiro da casa de Bragança, e a intenção de manter o regime escravocrata (daí a tentativa, frustrada pelos ingleses, de anexar Angola para garantir o tráfico negreiro e dar a ele um caráter doméstico), com a qual conciliou José Bonifácio, patriota verdadeiro, mas monarquista convicto, traumatizado pelas revoluções europeias e a revolta dos escravos no Haiti.

Merval Pereira - Os invisíveis

- O Globo

O mais recente invisível a se tornar visível foi o porteiro do condomínio de Bolsonaro e do miliciano Ronnie Lessa

A invisibilidade social é objeto de diversos estudos acadêmicos. Há profissões que têm utilidade no cotidiano, mas são consideradas subalternas, como lixeiros e coveiros, que tornam invisíveis quem as exerce.

Um caso clássico desse preconceito aconteceu com o âncora Boris Casoy que, ao ver uma mensagem de fim de ano de dois lixeiros, comentou na Bandeirantes, sem saber que o microfone estava aberto: “Que merda, dois lixeiros desejando felicidades do alto de suas vassouras. O mais baixo da escala de trabalho”. Casoy pediu desculpas ao saber que o áudio havia vazado, mas o estrago estava feito.

Outras profissões, como porteiro, motorista, secretária, garçom, empregada doméstica, fazem parte do dia a dia das famílias e empresas e frequentemente ouvem e vêem coisas que não deveriam ouvir nem ver, mas de tão invisíveis, dão liberdade às pessoas para falarem o que não pode ser ouvido em público. O embaixador Marcos Azambuja, com sua ironia cortante, diz que não há nada mais perigoso do que secretária.

Os personagens invisíveis estão em torno de nós e são temas de trabalhos acadêmicos, filmes e livros. Professores já experimentaram trabalhar de garis e constaram essa invisibilidade social, fruto de preconceito e desprezo.

“A Vida Invisível de Euridice Gusmão”, filme de Karim Ainouz que representa o Brasil na disputa do Oscar de melhor filme estrangeiro, trata de outra tipo de invisibilidade, das pessoas que não podem ter sonhos, esmagadas pela realidade.

Bernardo Mello Franco - Deus, Pátria e Família

- O Globo

O movimento dos anos 1930 se inspirava no fascismo e apelava à fé e ao patriotismo para disputar o poder

Deus, Pátria e Família era o lema do integralismo, movimento de inspiração fascista fundado por Plínio Salgado em 1932. Deus, Pátria e Família é o lema da Aliança pelo Brasil, partido lançado pelo presidente Jair Bolsonaro em 2019.

Os dois grupos de ultradireita são separados por 87 anos e duas ditaduras. Unem-se no apelo à fé, ao nacionalismo e ao anticomunismo para mobilizar seguidores e disputar o poder.

Os integralistas buscaram referências na Europa. Salgado chegou a ser recebido por Mussolini, que comandava a Itália com seus milicianos de camisas negras. Voltou decidido a copiar o modelo de Estado autoritário, com partido único, hierarquia rígida e submissão total ao chefe.

Alguns rituais do fascio foram abrasileirados. A saudação com o braço esticado ganhou a companhia do grito indígena “Anauê!”. Em tupi, a palavra significa “Você é meu irmão”. Os integralistas desfilavam de camisas verdes e, a exemplo dos nazistas, se engalanavam com braçadeiras. No lugar da suástica, exibiam a letra grega sigma.

“O símbolo lembra que o nosso movimento tem o significado de integrar todas as forças sociais do país na suprema expressão da nacionalidade”, explica o site da Frente Integralista Brasileira, que cultua a memória e o ideário de Salgado.

Míriam Leitão - PT deveria admitir erros na economia

- O Globo

Os erros econômicos do PT acabaram revogando o seu legado social e, sem entendê-los, o partido vai repeti-los em um eventual retorno

Sim, o PT precisa fazer autocrítica. Na economia, certamente. Não por qualquer exigência de humilhação pública, mas porque é preciso saber se o partido, na eventualidade do retorno, repetirá ou não os mesmos erros. Quando o PT saiu do Planalto a economia estava em ruínas: o PIB encolhia 3,5%, a inflação havia batido em 10%, os juros estavam em 14% (hoje estão em 5%), o desemprego havia disparado de 6% para 11,4% em um ano e meio, a dívida pública subia em espiral, o país perdera o grau de investimento, as contas públicas estavam no vermelho.

Há uma falha ainda mais grave da perspectiva de um partido de esquerda: ele transferiu renda para cima. Os subsídios e renúncias fiscais subiram de 2% para 4% do PIB. Se existe um rosto que significa o beneficiado das escolhas econômicas do PT é Joesley Batista. Ele e seus irmãos ficaram muito mais ricos.

E no exterior. O BNDES comprava emissões inteiras de debêntures lançadas pelo grupo para que, com capital público no bolso, eles fossem às compras em outros países. Foi assim que eles compraram, por exemplo, a Pilgrim’s Pride, a maior processadora de frango dos Estados Unidos. Houve uma sandice pior.

Eles pegaram dinheiro no banco para adquirir a National Beef. As autoridades antitruste vetaram, o banco deixou que o grupo ficasse com o recurso para uma compra futura, de fato feita. Tempo, como qualquer banco sabe, é dinheiro. Hoje, os Batistas têm a maior parte da sua fortuna no exterior.

Dorrit Harazim - Retratos cruzados

- O Globo

Os destinos de Ketellen, Davi e Francisco são parte do retrato atual do Brasil. Este retrato pode melhorar a passos lentos

Duas notícias se cruzaram nesta segunda semana de novembro, Mês da Consciência Negra no Brasil. Uma é de abrangência nacional e inédita — segundo o estudo “Desigualdades sociais por cor ou raça”, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estudantes negros passaram a ser maioria no ensino superior público do país em 2018. Alvíssaras.

A segunda notícia é local e recorrente — menina atingida na rua por bala perdida morre no Rio. Ketellen Gomes estava a caminho da escola quando levou o tiro. Aos 5 anos de idade, cursava o pré e talvez, muito talvez, viria se somar aos 50,3% negros (pretos e pardos) que hoje compõem a maioria dos estudantes em universidades públicas. Ou, quem sabe, se tornaria uma das alunas por trás da estatística de 46,6% negros em faculdades privadas.

Não deu.

Elio Gaspari - Tomar dinheiro de desempregado é covardia

- O Globo | Folha de S. Paulo

O doutor Paulo Guedes afaga para cima e apedreja para baixo

O doutor Paulo Guedes garantiu a sua presença nos anais da ciência econômica: propôs a taxação dos desempregados para financiar um programa de estímulo ao emprego. Não se conhece iniciativa igual no mundo, nos séculos afora.

Pela proposta da ekipekonômica, os brasileiros que recebem o seguro-desemprego, que vai de R$ 998 a R$ 1.735, pagarão de R$ 75 a R$ 130 como contribuição previdenciária. O sujeito perdeu o emprego, não tem outra renda, pede o benefício, que dura até cinco meses, e querem mordê-lo em 7,5% do que é pouco mais que uma esmola.

Se isso fosse pouco, no mesmo pacote a ekipekonômika desonerou os empregadores que aderirem ao programa do pagamento de sua cota previdenciária de 20%. Tinha razão o poeta Augusto dos Anjos, “a mão que afaga é a mesma que apedreja”, mas o doutor Paulo Guedes afaga para cima e apedreja para baixo.

Tomar dinheiro dos miseráveis era coisa comum no tempo da escravidão. Em 1734, para combater “a ociosidade dos negros forros e dos vadios em geral”, a Coroa cobrava quatro oitavas de ouro a cada bípede livre que vivia na região das minas. Em 1835 a Assembleia da Bahia tomava dez mil réis de todos os negros libertos nascidos na África. Esse imposto rendia um bom dinheiro, algo como 7,6% do orçamento da província. Eram tungas de outra época.

Janio de Freitas - O novo valor do zero

- Folha de S. Paulo

Quem padece as políticas elitistas transfigura-se em arma de combate, e combate

Zero. É apenas um cisco de vergonha, não uma quantidade, que se encosta na verdade para estabelecer em 0,1% o crescimento econômico da América Latina neste ano, na mais recente estimativa da Cepal —a instituição mantida pela Organização das Nações Unidas para estudo da economia regional.

Zero de crescimento e, no entanto, excetuada a Venezuela, as classes altas não estiveram queixosas em nenhum país desta geografia do desemprego, das favelas, de vida com R$ 4,50 por dia, de morte pela falta de saneamento e violência sem limite. Da desigualdade e da injustiça como princípios básicos de cada país.

Não é preciso lembrar por que as classes altas não estiveram nem estão queixosas dessas políticas econômicas nacionais.

Jair Bolsonaro e Paulo Guedes não faltam com a já esperada contribuição ao divisionismo. O estudo da Cepal coincide com as atuais previsões daqui mesmo sobre o crescimento brasileiro neste ano.

Da campanha até à posse, os dois falavam em crescimento de 3%, e mesmo de 3,5% neste ano. O previsto está em 0,8%. A caminho da adesão às 17 economias, entre as 20 da região, já comprometidas com o ano de desaceleração. Mas as nossas classes altas não emitiram, até agora, nem a mais sussurrante insatisfação com algo do governo Bolsonaro. Bem ao contrário.

Os casos do Chile e da Bolívia são resumos perfeitos da América Latina. O Chile convulsionado seguia para crescer no ano quase 2%. Mas, fora as classes altas, os chilenos estão nas ruas, manifestando-se ou combatendo, por redução das usurpações e das opressões econômicas a que são submetidos.

Vinicius Torres Freire - Bolsonaro quer dar futuro ao reacionarismo

- Folha de S. Paulo

Isolamento político e situação socioeconômica ruim podem dificultar ascensão da APB

A ideia de restauração de uma identidade conservadora do Brasil foi uma fantasia do bolsonarismo desde seu início.

Parecia tão caricata quanto um dia foi a candidatura de Jair Bolsonaro, que chegou ao Palácio do Planalto, no entanto. O presidente improvável quer agora criar o partido da sua revolução reacionária, a Aliança pelo Brasil (APB). O que pode sair daí?

A APB é um expurgo sectário no governismo e um movimento que isola ainda mais Bolsonaro no Congresso e na política partidária em geral. A arenga autoritária da família e de sua seita antiestablishment o afasta do Supremo, que, de resto, acaba de soltar Lula e retira paulatinamente o apoio ao lava-jatismo, uma seiva do bolsonarismo.

Que tipo de ambiente socioeconômico pode favorecer o movimento reacionário da APB? Trata-se de uma economia que apenas em 2024 deve voltar a ter a renda (PIB) per capita de 2013. Que deve ter uma taxa de desemprego além de 10% ainda na eleição de 2022. Que até então terá passado anos sem aumento do salário mínimo ou melhoria notável de serviços públicos, para nem mencionar o efeito do desmonte legal e estrutural do mundo do trabalho como o conhecemos.

Bruno Boghossian – Flávio virou coadjuvante

- Folha de S. Paulo

Ordem de Toffoli instiga ministros que cobram relação mais rigorosa com investigadores

Flávio Bolsonaro se tornou coadjuvante. O julgamento do STF sobre o uso de relatórios do Coaf em investigações, na próxima quarta (20), serviria principalmente para testar a blindagem de que o filho do presidente dispõe no tribunal. Agora, o caso deve se tornar um novo capítulo da guerra cada vez mais tensa entre a corte e o Ministério Público.

As críticas feitas por procuradores à notícia de que Dias Toffoli havia requisitado dados bancários de quase 600 mil pessoas causaram mal-estar no tribunal. Magistrados passaram a defender que o caso seja explorado para estabelecer novos limites e inaugurar uma relação mais rigorosa com o Ministério Público.

O presidente do Supremo lançou um ataque desproporcional ao ordenar o envio do material a seu gabinete. Queria identificar abusos no compartilhamento de informações sigilosas entre o Coaf e a procuradoria, mas acabou deixando transparecer os excessos do próprio STF.

Hélio Schwartsman - Corredor estreito

- Folha de S. Paulo

Combinar liberdade com prosperidade depende do balanço entre o poder do Estado e o da sociedade

É excelente o novo livro de Daron Acemoglu e James Robinson. “The Narrow Corridor” (o corredor estreito) é uma espécie de continuação da obra anterior da dupla, o best-seller “Por Que Nações Fracassam”, e talvez por isso não obtenha o mesmo impacto, o que em nada diminui a importância do novo texto.

A tese geral de “The Narrow Corridor” é simples. O estado de liberdade política e prosperidade econômica experimentado pelas nações que chamamos de desenvolvidas está longe de ser a ordem natural das coisas. Ao contrário, é uma situação excepcional que exige cuidadosa manutenção por parte de seus usuários.

Durante a maior parte da história, as pessoas foram vítimas ou do despotismo de Estados fortes demais, ou do tribalismo, o sistema de normas comunitárias que, embora evite a guerra de todos contra todos, sufoca a liberdade individual e impõe limites ao crescimento econômico.

A combinação de liberdade com prosperidade depende de um raro balanço —daí o “corredor estreito”— entre o poder do Estado, capaz de impor uma ordem pró-desenvolvimento, e o da sociedade, que precisa conter os apetites totalitários das engrenagens estatais.

Ruy Castro* - A política é uma folia

- Folha de S. Paulo

Se vale essa algaravia de partidos, que tal a criação do Partido Nacional do Bola Preta?

Jair Bolsonaro demitiu o partido que lhe servia de cavalo e anunciou a fundação de um novo partido, o Aliança pelo Brasil, a partir do zero. Faz sentido —zero é mesmo o patamar dos partidos políticos brasileiros, exceto pelas subvenções que eles recebem do dinheiro público. Como Bolsonaro se diz defensor desse dinheiro, o mais econômico seria que se filiasse a um dos 32 partidos já existentes. Poupá-lo-ia, inclusive, de achar para seu partido uma denominação que o distinguisse dos outros 32.

Todas as combinações possíveis já pareciam esgotadas. Apenas entre os que comercializam a sigla trabalho, temos o Partido Trabalhista Brasileiro, o Partido Democrático Trabalhista, o Partido Trabalhista Cristão, o Partido Renovador Trabalhista Brasileiro, o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado e —epa!— o Partido dos Trabalhadores.

Na área socialista ou social-democrata, temos o Partido Socialista Brasileiro, o Partido Social Cristão, o Partido Social Democrático, o já citado e meio coringa Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado e o Partido da Social-Democracia Brasileira, o falecido PSDB. E alguém sabia que o ex-partido de Bolsonaro, o PSL, se chama Partido Social Liberal?

Vera Magalhães - Contradição suprema

- O Estado de S.Paulo

Enquanto presidente depende do STF, bolsonaristas pedem impeachment de ministros

Este domingo será um teste interessante para o bolsonarismo. Grupos que apoiam Jair Bolsonaro e tiveram um papel importante no impeachment de Dilma Rousseff, na campanha presidencial de 2018 e, neste ano, ao levar pessoas às ruas em defesa de pautas do governo, convocam para hoje uma manifestação pelo impeachment de Gilmar Mendes. E poucas pautas poderiam ser mais inconvenientes para o “mito” dos organizadores do que esta. E aí reside a contradição suprema do governo Bolsonaro, aquela que pode ser sua kriptonita.

A pregação anti-instituições e a campanha sistemática contra os demais Poderes, tendo as milícias virtuais como exército, são da essência do projeto bolsonarista de poder, todo ele calcado no culto à personalidade do líder e de sua família barulhenta.

Acontece que cedo demais, já na transição, o filho 01 saiu do meio dos moralistas de ocasião em que o bolsonarismo calcou seu discurso para cair no noticiário da mais velha política: seu assessor Fabrício Queiroz, amigo da vida toda do patriarca Jair e faz-tudo dos gabinetes da família, surgiu em movimentação financeira para lá de atípica a partir de um relatório do Coaf. A partir daí descortinou-se um cenário de funcionários fantasmas, muitos ligados à milícia carioca, depósitos de assessores na conta de Queiroz, transferências deste para a conta da primeira-dama, Michelle, saques em dinheiro de Flávio e toda sorte de práticas seguidas de explicações furadas – empréstimos não declarados no Imposto de Renda, supostas transações com carros e até a admissão de que se recolhia dos funcionários dinheiro para as campanhas de Flávio.

Eliane Cantanhêde - É ‘toma lá, dá cá’?

- O Estado de S.Paulo

Toffoli e Bolsonaro precisam afastar a suspeita de ‘toma lá, dá cá’ entre Executivo e Judiciário

O ano está terminando? Depende para quem, porque o Supremo, que está passando por 2019 sob pressão, ainda tem longos dias pela frente até o recesso de fim de ano e promete um 2020 também agitado. Desde já, 2019 está adentrando 2020 no STF. Isso, aliás, vale não só para o Supremo, mas particularmente para seu presidente, Dias Toffoli.

A percepção da sociedade sobre a mais alta corte do País já foi muito boa, em especial no julgamento do mensalão, considerado o mais importante da história no combate à corrupção. Mas essa percepção foi amarelando e não anda lá às mil maravilhas.

Há uma forte incompreensão sobre a liberação em série de presos e às vezes corretas e necessárias advertências contra o excesso de prisões preventivas e temporárias, nem sempre deferidas dentro da estrita legalidade e geralmente se estendendo além do razoável, ou permitido.

A isso se some a divisão do STF, o ambiente belicoso e a exposição pela TV Justiça das trocas de desaforos e insinuações entre aqueles senhores tão solenes em suas togas e nem tão elegantes na manifestação de suas divergências. Todos esses fatores somados, o resultado é uma suspeita que se consolidou por toda parte: a de “acordão” para esvaziar a Lava Jato.

Dimas Ramalho* - Submeter Tribunais de Contas ao TCU é inconstitucional

- O Estado de S. Paulo

Preocupado em aperfeiçoar o sistema de controle externo das contas públicas, o governo federal incluiu na Proposta de Emenda à Constituição 188/2019, a PEC do Pacto Federativo, três dispositivos que ampliam as competências atribuídas ao Tribunal de Contas da União pelo Art. 71 da Constituição da República.

Um novo inciso (XII) daria ao TCU a missão de consolidar a interpretação de leis complementares por meio de “orientações normativas” com efeito vinculante em relação aos Tribunais de Contas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Caso uma decisão destes órgãos regionais venha a divergir das “orientações normativas”, caberia reclamação ao TCU, que teria poder de anulá-la, fixando prazo para que outra fosse proferida, conforme disposto no §5 trazido pela PEC. Em caso de inércia do tribunal de origem, o TCU avocaria a decisão, forçando a reforma do decidido, nos termos do sugerido §6.

Na prática, as “orientações normativas” seriam a expressão da jurisprudência firmada pelo órgão federal, com força similar ao que as Súmulas Vinculantes editadas pelo Supremo Tribunal Federal têm em relação à atividade jurisdicional de tribunais e juízes do Poder Judiciário.

Tal analogia evidencia que a proposta do governo tem um virtuoso e legítimo objetivo, mas o caminho escolhido peca por vício de inconstitucionalidade e desconhecimento do sistema de controle externo brasileiro.

O país possui 33 Tribunais de Contas. Ao TCU, cabe a fiscalização dos recursos públicos federais. Em 23 Estados, um mesmo Tribunal de Contas analisa a aplicação das verbas estaduais e municipais. Na Bahia, em Goiás e no Pará, existem dois Tribunais de Contas, um para as finanças do Estado e outro para fiscalizar os recursos de todos os municípios da unidade federativa.

Há também o Tribunal de Contas do Distrito Federal e, por fim, os Tribunais de Contas do Município de São Paulo e do Município do Rio de Janeiro, que cuidam exclusivamente dos recursos das capitais de seus Estados.

O que a mídia pensa - Editoriais

Pendor autoritário – Editorial | Folha de S. Paulo

Ao ameaçar usar LSN contra Lula, Bolsonaro mina confiança nas instituições

Jair Bolsonaro (PSL) fez mais uma acintosa exibição de seu pendor autoritário ao reagir às primeiras manifestações feitas pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) após sair da cadeia.

Atacado pelo líder petista, que condenou sua política econômica e disse que ele governa para milicianos em vez de se preocupar com o país, o chefe do Executivo ameaçou recorrer à Lei de Segurança Nacional para conter o antecessor.

“Está aí para ser usada”, disse Bolsonaro ao site O Antagonista. “Alguns acham que os pronunciamentos, as falas desse elemento, que por ora está solto, infringem a lei”.

O presidente sugeriu também que as ações de Lula deveriam ser vistas como parte de um esforço da esquerda para retomar o poder na América Latina, ao lado dos protestos contra o governo no Chile e da volta dos peronistas na Argentina.

Publicada nos estertores da ditadura militar, a Lei de Segurança Nacional define penas para 21 crimes, incluindo incitação à subversão da ordem política, emprego de violência contra o regime democrático e ofensas à reputação do presidente e de outras autoridades.

A lei não foi revista após a redemocratização, mas certamente não constitui o instrumento adequado para um governante lidar com seus adversários em tempos de paz, com instituições democráticas em pleno funcionamento.

Poesia | Fernando Pessoa - Cruz na porta da tabacaria!

Cruz na porta da tabacaria!
Quem morreu? O próprio Alves? Dou
Ao diabo o bem-estar que trazia.
Desde ontem a cidade mudou.

Quem era? Ora, era quem eu via.
Todos os dias o via. Estou
Agora sem essa monotonia.
Desde ontem a cidade mudou.

Ele era o dono da tabacaria.
Um ponto de referência de quem sou
Eu passava ali de noite e de dia.
Desde ontem a cidade mudou.

Meu coração tem pouca alegria,
E isto diz que é morte aquilo onde estou.
Horror fechado da tabacaria!
Desde ontem a cidade mudou.

Mas ao menos a ele alguém o via,
Ele era fixo, eu, o que vou,
Se morrer, não falto, e ninguém diria.
Desde ontem a cidade mudou.

Música | Clara Nunes- Lama