terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Andrea Jubé - “Mãos Limpas” contou com juiz das garantias

- Valor Econômico

Proposta foi aprovada no Senado sem alarido

De todo o “amontoado de muita coisa escrita” (para usar a expressão do presidente Jair Bolsonaro) nos últimos dias sobre o juiz das garantias, ainda despontam aspectos pouco explorados como a presença desse magistrado na Operação Mãos Limpas, que serviu de inspiração à Lava-Jato; e a constatação de que o instituto é um dos legados do ex-presidente José Sarney em uma de suas quatro passagens pela presidência do Senado.

Uma década antes da emenda do deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) convulsionar o pacote anticrime do ministro da Justiça, Sergio Moro, com a introdução da figura do juiz das garantias, o parecer do então senador Renato Casagrande (PSB-ES) incluiu o instituto no projeto de reforma do Código de Processo Penal (CPP), aprovado pelo plenário do Senado em dezembro de 2010.

Implicado em denúncias de supostos malfeitos, Sarney quis entrar para a história do Senado como um presidente “reformista”: além da renovação do CPP, também articulou a modernização de outras legislações, como os Códigos Penal e Eleitoral.

A reforma do Código de Processo Penal acabou sendo aprovada no apagar das luzes de 2010, em uma sessão esvaziada, tarde da noite, em votação simbólica, à unanimidade. Não houve alarde nem comoção quanto à criação do juiz das garantias ou outra inovação do projeto.

O novo juiz das garantias brasileiro equipara-se ao “juiz da instrução” que vigora em Portugal, ao “juez de garantia” do Chile - que serve de referência para a América Latina - e ao “giudice per le indagini preliminari” da Itália.

A figura do juiz das garantias é contemplada no Código de Processo Penal italiano de 1988, que estabelece que o magistrado que atuou na fase preliminar do inquérito não participará da fase processual nem proferirá a sentença.

Deflagrada em 1992 em Milão, a Operação Mãos Limpas (Mani Pulite, na denominação original) desbaratou um esquema de corrupção sistêmico na Itália. A ação contava com o “giudice per le indagini preliminari”, responsável pelas medidas cautelares na fase do inquérito.

Um dos juízes das garantias na operação foi Andrea Padalino, que mais tarde se tornaria procurador em Turim - na Itália é possível a transição de carreiras. Dez anos depois da operação, Paladino falou ao conceituado jornal italiano La Repubblica. “A corrupção é um fenômeno longe de ser erradicado”, disse na entrevista publicada em 2003. Ele reconheceu avanços ponderando que não existia mais o clima de impunidade difusa dos anos da Mani Pulite, mas lamentou que os métodos de propina tenham se sofisticado.

A Operação Mãos Limpas é uma referência para o ministro Sergio Moro, que julgou processos da Lava-Jato quando estava à frente da Vara Federal de Curitiba. No conhecido artigo que publicou em 2004 - “Considerações sobre a operação Mani Pulite” - Moro classificou a ação como “uma das mais exitosas cruzadas judiciárias contra a corrupção política e administrativa".

Agora Moro e defensores aguerridos da Lava-Jato demonstram inconformismo com o juiz das garantias, apresentado por juristas como uma ferramenta que assegura a imparcialidade do julgador.
Uma interpretação corrente entre apoiadores de Moro é que a criação do instituto avaliza as críticas à atuação do então juiz à frente da Lava-Jato. O Supremo Tribunal Federal julgará neste ano habeas corpus em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva argui a suspeição de Moro na condução do processo relativo ao triplex no Guarujá.

Em contrapartida, outra corrente contrária ao instituto afirma que a novidade beneficia diretamente o senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ), alvo de investigação do Ministério Público do Rio de Janeiro por peculato e lavagem de dinheiro.

A implantação do juiz das garantias restringiria a atuação no caso do juiz Flávio Itabaiana Nicolau, que determinou as buscas e apreensões e quebras de sigilo bancário e telefônico que atingiram familiares e assessores de Flávio Bolsonaro.

Com a nova lei, Itabaiana se tornaria o juiz das garantias do caso. A partir do eventual oferecimento da denúncia - que dá início à ação penal - outro juiz assumiria o processo e profereria a sentença. Há 24 anos na carreira, Itabaiana é um juiz reconhecido pelo rigor extremo nos julgamentos.

Moro tem reafirmado nas redes sociais a insatisfação com o juiz das garantias. A nova lei diz que, "nas comarcas em que funcionar apenas um juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados".
Mas segundo Moro, 40% das comarcas do país têm somente um juiz. "Para mim é um mistério o que esse 'rodízio' significa”, criticou na rede social. A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) endossaram a reclamação.

Presidente da comissão de reforma do Código de Processo Penal na Câmara, o deputado Fábio Trad (PSD-MS) pondera que o juiz das garantias não precisa estar fisicamente no local da infração porque atualmente os processos são digitais. “Ele pode estar na comarca contígua onde ocorreu o crime, e ali ele exerce o juízo de garantias legais; é um avanço civilizatório porque o juiz que vai julgar não é o que presidiu o inquérito, e assim terá uma visão mais equilibrada das provas”, argumenta Trad.

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No dia 23 de dezembro, véspera da divulgação dos vetos ao pacote anticrime, o presidente Jair Bolsonaro recebeu no Palácio da Alvorada o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Apenas o nome de Maia constou posteriormente da atualização da agenda oficial.

Três dias depois, Toffoli - que é presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) - anunciou a criação de um grupo de trabalho para regulamentar a implantação do juiz das garantias até 15 de janeiro. A nova lei vigora a partir do dia 23.

Há demanda por novos magistrados: levantamento do CNJ relativo a 2019 mostra que há 18,1 mil juízes em atividade (estaduais, federais, trabalhistas e militares) e 4,4 mil vagas em aberto.

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