sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

César Felício* - A pedra angular

- Valor Econômico

Aliança pelo Brasil ganha ares confessionais

Na concepção de poder bolsonarista, existem pilares de sustentação, que o alicerçam no liberalismo econômico exacerbado, com Paulo Guedes; e no jacobinismo das classes médias, com Sergio Moro. E há a pedra angular, aquela que se destaca no centro dos arcos de construções antigas, mantendo toda a estrutura de pé e com capacidade para suportar os pesos laterais.

Trata-se aqui, evidentemente, do ativismo evangélico no exercício da política. Tal como se descreve no versículo 22 do salmo 118, a pedra que os construtores do passado rejeitaram tornou-se a pedra angular. São os evangélicos imbuídos do propósito de construir um projeto de poder que fazem o elo entre Bolsonaro e a parcela mais pobre do eleitorado.

Há muitos ministros evangélicos neste governo, mas uma única pessoa está lá exclusivamente por este motivo. Muito subestimada ao longo de 2019, é a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves que estrutura o bolsonarismo nesta faixa de público.

A pauta de Damares não é a da arena pública, não são estratégias globais de saúde, educação, crescimento sustentável, distribuição de renda, longe disso. Sua agenda se conecta com assuntos de ordem moral, que estão da porta para dentro dos lares, não fora. A recente polêmica sobre a abstinência sexual é um exemplo. Ou não está no rol de preocupação de toda mãe a sexualização precoce e a gravidez ainda na adolescência?

Além de estabelecer estas faixas de sintonia, a ministra também parece disposta a fazer política. Em entrevista à jornalista Rachel Sheherazade, do SBT, Damares falou que um de seus propósitos é colocar mais mulheres na vida pública. Ela se queixou de que há 1,3 mil cidades no Brasil sem sequer uma vereadora. Prometeu uma “revolução” na ocupação de espaço político e incentivar a eleição de pelo menos uma mulher por municípios. Como fará isso, não disse.

A capilaridade que Damares busca não é banal. A ministra estrutura o programa “salve uma mulher”, para treinar pessoas a dar apoio a mulheres vítimas de violência. Não se limitará a servidores públicas. Ela quer envolver no projeto manicures, depiladoras, instrutoras de academias de ginástica. Uma multidão avaliada por ela em 4 milhões de pessoas.

Não lhe falta portanto ambição, como indica o próprio fato de ter feito treinamento de mídia e consultoria de imagem pouco depois de assumir o cargo. A ministra chegou onde chegou porque evangélicos mais bem posicionados para este patamar se inviabilizaram, como foi o caso do ex-senador Magno Malta, de quem foi assessora parlamentar. Ela pode continuar a auferir ganhos com as debilidades de potenciais concorrentes internos. Seu nome parece mais leve que o de Marcos Feliciano, por exemplo. E é bom lembrar que em 2018 a opção que Bolsonaro mais buscou para compor a chapa presidencial era um nome evangélico.

Partido confessional
O Aliança pelo Brasil, assim que se converter na nova estrela do firmamento partidário brasileiro, poderá ocupar um posto sem precedentes: arrisca a ser o primeiro partido confessional da história do país. Não há registro de um pastor pedir a fiéis que assinem apoio a um partido, acompanhado por funcionários de cartório, como fez o pastor Emerson Patriota, da Igreja Presbiteriano de Londrina, em vídeo divulgado esta semana pelas redes sociais.

Nem todos os evangélicos aplaudiram. Em nota, a Igreja Presbiteriana do Brasil se proclamou apartidária. Também pastor presbiteriano, em Florianópolis, o reverendo André Mello comentou ser difícil distinguir quem perde mais, se a Igreja ou o Estado, quando as duas esferas se misturam.

“Estão tentando fazer um partido religioso. Um partido que não será de uma religião específica, mas que terá um líder claro, que está no poder. Será que não percebem dentro das igrejas o risco que estão correndo? Será que ninguém está vendo?”, indaga Mello. O risco que se corre, por óbvio, é o dos templos se tornarem correias de transmissão de uma estrutura política. E das denominações, muitas das quais dominadas por clãs familiares, perderem o comando sobre sua base.

“A Igreja no Brasil tem credibilidade por ser vista pela população como autônoma em relação ao governo. Quando se abraça um projeto de poder, a linha divisória desaparece e o risco que surge é maior para a Igreja do que para o Estado”, comenta.

Mello não é neutro nessa história. Ele pertence ao Livres, um dos movimentos que tentam se inserir na política fora do ambiente partidário. No caso do Livres, com um recorte liberal na economia. O importante é que ele convida a observar o fenômeno de uma perspectiva pouco visitada até o momento: muitos procuram mostrar como Bolsonaro aderiu à agenda evangélica, mas nem tantos lançam o olhar para a trajetória inversa, a de como o bolsonarismo está dominando os templos.

O que a torna equação mais preocupante é que há outro evento em curso, o da expansão exponencial do protestantismo. As igrejas evangélicas espalham-se neste século pela América Latina como um todo e pelo Brasil em particular por motivos estruturais, que antecederam o advento das redes sociais e que ganharam tração depois delas.

“Para entender a força do crescimento evangélico é preciso entender que essa é uma religião de migrantes. De gente que saiu em sua maioria de um mundo desfeito, o da tradição rural, o dos pequenos municípios, o que está completamente fora do cosmopolitismo, das bandeiras universais. Os evangélicos crescem aí, na tentativa de desenraizados se recomporem”, analisa o reverendo.

Durante a era petista, Lula entregou políticas de transferência de renda a quadros que, em sua origem remota, estavam no catolicismo de esquerda. Foi da herança deste vetor religioso que se construíram as ferramentas que consolidaram o lulismo nos grotões, da qual o programa Bolsa Família é o carro-chefe. Para desestruturar esta fortaleza, Bolsonaro concluiu que precisaria ter a Bíblia à mão.

*César Felício é editor de Política.

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