quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Ligia Bahia - Saúde nas eleições de 2020

- O Globo

Entre 2010 e 2019, a rede SUS nacional perdeu 7 mil leitos obstétricos, enquanto o número de nascimentos cresceu

Para a saúde, a década de 2010 termina com mais baixos do que altos. A taxa de mortalidade infantil decresceu em ritmo menor que em períodos anteriores e se manteve acima de 14 por 1.000 bebês entre 2014 e 2017. A proporção de brasileiros que vive abaixo da linha de pobreza aumentou de 6,6% em 2016 para 7,4% em 2017. Houve melhoras, entre as quais, o declínio da fecundidade entre mulheres jovens e incremento na escolaridade feminina. Esses impasses, retrocessos e alguns avanços não reconhecem barreiras do calendário, adentram 2020. Entre 2010 e 2018 houve cinco eleições, três para governadores, deputados e presidente e duas para prefeitos e vereadores. Invariavelmente a saúde ganhou destaque em todas as eleições. Mas, com raras exceções, deixou de ser prioridade logo após o encerramento das urnas.

Uma possível explicação para essa diferença abissal entre o que se promete e o que será realizado é o apelo a propostas vagas a respeito do SUS. Declarar aspirações é uma vantagem, permite angariar votos de eleitores com interesses divergentes e afirmar depois a necessidade de redução da marcha, e que está se recorrendo a medidas de transição para alcançar a miragem apresentada na plataforma eleitoral. Quando os contrastes entre o SUS eleitoral e o real ficam exuberantes, contribuem para queda dos índices de avaliação de quem pretende se reeleger, a culpa é dos governos anteriores.

Dois exemplos. O compromisso do presidente Bolsonaro de estabelecer uma carreira de Estado para médicos foi ajustado e reajustado, restou um contrato CLT para alguns médicos, os incluídos no Programa Médicos pelo Brasil, menos de 4% dos que estão em atividade. Nem carreira, nem garantias trabalhistas para a maioria. O prefeito Crivella declarou, entre outras intenções de expandir a rede pública assistencial, que iria investir em quatro anos mais R$ 2 bi no SUS municipal. E ocorreram cortes, congelamento e remanejamento indevido de R$ 1,5 bi.

O governo federal atribui dificuldades com a quantidade, formação e inserção de médicos à política de abertura de faculdades privadas de medicina, iniciada em 2013, mas não fechou vagas. Pelo contrário, os estímulos do Ministério da Educação à intensificação da privatização do ensino superior são notórios. Crivella considera que a crise da saúde no Rio de Janeiro não existe, é apenas uma campanha da imprensa “canalha.” Um prolongamento das eleições via redes sociais, que reafirma o quão odientos são os inimigos e esconde as estruturas fundamentais das políticas.

Entre 2010 e 2019, a rede SUS nacional perdeu cerca de 7 mil leitos obstétricos enquanto o número de nascimentos cresceu, e não ocorreram mudanças no tempo de permanência das gestantes em hospitais. Na cidade do Rio de Janeiro, os leitos de terapia intensiva aumentaram, sendo 161 para o SUS e mais de 935 para os clientes de planos privados. Gestantes peregrinas e mortes sem acesso a cuidados e outras desigualdades inadmissíveis na saúde passaram de ano. Retóricas vazias sobre o SUS e desconfianças permanentes entre as forças políticas que já se preparam para disputar as eleições estão impedindo a construção de um terreno comum para conversar sobre saúde.

Enfiar o SUS no mesmo saco das atuais divisões político-partidárias é um erro. Para escapar do ciclo eleição, frustração, nova eleição é preciso dar um passo à frente, exercer com rigor o direito de divergir. Os esforços de governos anteriores e dos atuais (incluindo erros e acertos) em todas as esferas da federação têm sido insuficientes para se contrapor às tendências estruturais de retração do SUS. Ao invés de se procurar apagar as diferenças é necessário entendê-las para propor alternativas concretas. Apoio e oposição ao SUS são difusos. Empresários e a parte da população com maior renda temem perder posições relativamente privilegiadas de retornos financeiros e atendimento qualificado. Acordos, ainda que mínimos, demoram tempo. É tempo de buscar convergências para melhorar a saúde. É preferível ter mais SUS do que requentar discursos de SUS idílico.

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