quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Minouche Shafik* - Rumo a um novo contrato social

- Valor Econômico

Precisamos de investimentos maciços em tecnologias verdes para transformar cidades, transportes e sistemas de energia. Considerado em conjunto, esse contrato social tem o potencial de restaurar um senso de esperança e otimismo com relação ao futuro

Toda sociedade se assenta em uma rede de normas, instituições, políticas, leis e compromissos com aqueles que precisam de apoio. Nas sociedades tradicionais, essas obrigações são assumidas principalmente por famílias e grupos familiares. Nas economias avançadas, um fardo maior é posto no Estado e nos mercados (por meio de planos de saúde e pensões). No entanto, mesmo neste último caso, grande parte do contrato social ainda é mantida por famílias (por meio de serviços de assistência não remunerados), pela sociedade civil (organizações de caridade e voluntariado) e empregadores, que frequentemente precisam fornecer seguro-saúde ou contribuições para o seguro-desemprego.

O contrato social não é sinônimo de Estado de bem-estar social. Mais propriamente, o Estado de bem-estar social refere-se às dimensões de um contrato social que são mediadas pelo processo político e pela ação subsequente do Estado, seja diretamente, por meio de impostos e serviços públicos, seja indiretamente, por leis que exigem que o setor privado ofereça certos benefícios. Como tal, o Estado de bem-estar social é melhor entendido não como um mecanismo de redistribuição de renda, mas como uma fonte de produtividade e proteção ao longo do ciclo de vida de alguém. Como John Hills, da London School of Economics, demonstrou, a maioria das pessoas contribui tanto com o Estado quanto recebe em troca.

No entanto, grande parte da raiva que veio a definir a política no mundo desenvolvido está enraizada na sensação das pessoas de que não recebem o que lhes é devido. Os nascidos em desvantagem sentem-se como se nunca tivessem uma chance. Aqueles que vivem em áreas rurais acreditam que os formuladores de políticas favorecem as cidades de forma esmagadora. As populações nativas temem que os imigrantes recebam benefícios antes de contribuírem o suficiente para fazer jus a eles.

Os homens sentem que seus privilégios históricos estão sendo corroídos. Pessoas mais velhas consideram que os jovens não têm gratidão por seus sacrifícios passados, e os jovens se ressentem cada vez mais dos idosos, por sobrecarregar os programas de seguridade social e deixar um legado de destruição ambiental. Toda essa desconfiança e animosidade é combustível para os populistas.

A ideia comum é que os trabalhadores de economias avançadas tiveram que sacrificar salários ou proteções sociais para competir com a força de trabalho dos mercados emergentes, e essas pressões se intensificaram à medida que o capital se tornou mais móvel. Pior, a mobilidade social que antes tornava a desigualdade tolerável politicamente se estagnou ou declinou.

Muitos aspectos dos Estados de bem-estar de hoje ainda são pensados em termos da velha economia, onde chefes de família eram homens e contribuíam para aposentadorias confiáveis ao longo de suas vidas, enquanto as mulheres ficavam em casa para criar filhos e cuidar dos jovens e dos idosos.

Pela primeira vez na história, hoje há mais mulheres no ensino superior do que homens em todo o mundo. As mulheres instruídas têm menos filhos, têm mais probabilidade de realizar um trabalho remunerado, e vão sentir cada vez mais as tensões entre sua participação no mercado de trabalho e suas responsabilidades tradicionais como cuidadoras. No entanto, pesquisas recentes do Fundo Monetário Internacional (FMI) mostram que a redução das diferenças de gênero traz benefícios significativos para o crescimento.

O desafio, então, é redefinir o contrato social para que as mulheres possam fazer pleno uso de seus talentos sem perda da coesão social.

Da mesma forma, as mudanças climáticas representam um colapso do contrato social intergeracional. Este ano, jovens fizeram protestos massivos contra um modelo econômico que não leva o meio ambiente em consideração de maneira adequada. À medida que aumentam as evidências de um desastre climático iminente, também cresce o apoio a modelos econômicos alternativos e desenvolvimento mais sustentável.

Uma vez que admitamos esses desafios globais, podemos começar a imaginar como seria um novo contrato social. Por exemplo, a educação precisará ocorrer mais cedo na vida das pessoas, quando as bases para o aprendizado subsequente forem estabelecidas, assim como mais tarde, para atender à demanda por requalificação. Também precisará se concentrar em tarefas que complementem o que os robôs podem fazer. Investimentos sérios em requalificação profissional - da ordem de 1% a 2% do Produto Interno Bruto (PIB), como na Dinamarca - devem ser essenciais para qualquer contrato social modernizado.

Um novo contrato social também pode precisar oferecer uma renda mínima para todos, mas estruturada de maneira a preservar o incentivo ao trabalho e à requalificação. Créditos de imposto de renda, treinamento obrigatório, estágios e garantias de emprego devem ser considerados. E, para explorar o crescente grupo de talentos femininos do mundo, serão necessários grandes investimentos para expandir os cuidados com as crianças e os idosos, proporcionar licença parental compartilhada e combater os efeitos de preconceitos formais e informais que colocam as mulheres em desvantagem. Por exemplo, se os benefícios fossem tornados móveis e oferecidos proporcionalmente, mais trabalhadores poderiam depender do trabalho de meio período para equilibrar outros compromissos.

Quanto à sustentabilidade, precisamos adotar uma maneira completamente diferente de pensar sobre o envelhecimento e o meio ambiente. Se uma força de trabalho que está encolhendo tiver alguma chance de sustentar uma população em envelhecimento, os investimentos necessários para aumentar a produtividade futura devem ser feitos agora. Enquanto isso, as populações envelhecidas podem ter que se comprometer a trabalhar mais - com a idade da aposentadoria atrelada à expectativa de vida - e exigir menos cuidados médicos no final da vida. Finalmente, os custos ambientais atuais e futuros precisarão ser incorporados às decisões econômicas.

Precisamos de investimentos maciços em tecnologias verdes para transformar cidades, transportes e sistemas de energia. Considerado em conjunto, esse novo contrato social tem o potencial de restaurar um senso de esperança e otimismo com relação ao futuro. (Tradução de Lilian Carmona)

*Minouche Shafik, ex-vice-governadora do Banco da Inglaterra e vice-diretora administrativa do Fundo Monetário Internacional (FMI), é diretora da London School of Economics.

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