sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Míriam Leitão - Na balança os números e os fatos

- Globo

Guerra comercial entre EUA e China foi ruim, mas a paz pode também trazer perdas para o Brasil, com efeitos sobre o agronegócio

O comércio exterior é aquele ponto no qual a ideologia se dissolve, e o pragmatismo é meio inevitável. A balança comercial do ano passado foi ruim porque a Argentina entrou em crise, a China e os Estados Unidos passaram o ano em guerra comercial, e o Brasil cresceu menos do que se esperava. Uma Argentina em crise é um mau negócio para o Brasil, seja de que tendência for o seu governo. A guerra entre Estados Unidos e China foi ruim, mas a paz pode trazer também perda para o Brasil porque um dos compromissos que os chineses assumirão no próximo dia 15 será comprar mais dos agricultores americanos, e isso pode significar menos exportações brasileiras.

O Brasil teve um grande saldo, de US$ 46 bilhões, mas foi o menor desde 2015. Ser menor não significa em si uma má notícia. O problema é que a corrente de comércio caiu também 5,7%. Ou seja, o Brasil vendeu menos e comprou menos. Só a crise argentina tirou do saldo brasileiro US$ 5,2 bilhões.

Enquanto o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, continua no seu delírio, a vida real exige atenção. Ele escreveu na mensagem de fim de ano que é preciso em 2020 “continuar lutando contra o mecanismo esquerdista” e alertou: “não basta fazê-lo dentro do Brasil.” Explicou que “a esquerda é sempre transnacional” e por isso “há que combater na frente externa”.

O mundo cada vez mais complexo, e o Brasil com um chanceler caça-fantasmas. “O lulopetismo+isentoleft são expressão de um projeto de poder global e globalista”, diz Araújo. A Argentina, como se sabe, recolocou a esquerda no poder. Se o novo governo conseguir atenuar a crise, ou superá-la, será uma excelente notícia para a indústria brasileira, até porque ela não tem mercados alternativos. A baixa competitividade dos manufaturados brasileiros faz com que o mercado argentino seja muito importante.

A China, que também deve ser parte desse “mecanismo esquerdista” que o ministro acha que tem que combater, no ano passado comprou US$ 65,4 bilhões do Brasil, mais do que o dobro dos US$ 29,5 bi dos Estados Unidos.

A análise da balança comercial precisa ir além do olhar sobre o saldo comercial e até das exportações. As importações, por exemplo, revelam bastante sobre o nível de atividade e a recuperação da economia. Nesse ponto, há números que chamam atenção sobre o mês de dezembro. As importações caíram 7,4% sobre o mesmo mês de 2018, com queda dos bens de capital e forte aumento, de 12%, dos bens de consumo. Ou seja, por um lado, há menos gastos para investimentos e, por outro, consumo maior de bens que poderiam estar sendo vendidos pela indústria brasileira. No acumulado de janeiro a dezembro, as importações recuaram 3,3%.

Outro dado que chama atenção é o peso da importação de combustíveis e lubrificantes. Embora tenha ocorrido queda de 7,3% em 2019 com a compra desses produtos, o país ainda gastou US$ 20 bilhões nesses itens, o que significa 11% de tudo o que importamos. Em dezembro, os combustíveis foram o principal item da pauta importadora, acima dos eletrônicos e dos equipamentos mecânicos.

As exportações de carne bovina in natura aumentaram 48% em dezembro, sobre o mesmo mês de 2018, enquanto as vendas de carne suína subiram 72% e as de frango, 6,3%. São os efeitos da peste suína na China, que matou 40% da população de porcos do país. As empresas brasileiras do complexo de carne estão direcionando as vendas para a China e isso explica por que o preço da carne subiu tanto no país nos últimos meses. Por outro lado, com a devastação do rebanho suíno chinês, houve menor importação de soja. O Brasil vendeu mais carne e menos soja.

Na guerra comercial dos Estados Unidos e China no ano passado houve um impacto forte no comércio mundial, que afetou o mundo inteiro e alimentou o temor de uma recessão global. As negociações terminaram num acordo cuja primeira fase será assinada no dia 15 de janeiro, e a segunda fase, se tudo der certo, em março. O problema é que a paz entre eles está sendo selada com o compromisso de a China comprar mais grãos e cereais dos produtores americanos. O aliado preferencial escolhido pelo governo Bolsonaro é também um competidor nosso. Pobre Brasil que num mundo cheio de complexidades tem no comando da diplomacia alguém que acha que sua missão é combater “a esquerda na frente externa”.

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