terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Míriam Leitão - Risco da mudança da política externa

- O Globo

Irã é forte mercado do agronegócio e o Brasil trata como “terrorista” a Guarda Revolucionária que nem a ONU define assim

A Guarda Revolucionária do Irã não é considerada uma organização terrorista pela ONU. Apenas os Estados Unidos, Reino Unido e Israel a definem como terrorista. Nem mesmo pela União Europeia ela é vista assim. A posição tradicional do Brasil sempre foi a de seguir o que a ONU define. A nota brasileira, contudo, muda isso e trata a morte do general Qassem Soleimani como um ato da luta contra o “flagelo do terrorismo”. O Brasil exportou no ano passado US$ 2 bilhões para o Irã, e o país é considerado um mercado importante para o agronegócio brasileiro.

O que está acontecendo na escalada de tensão entre Estados Unidos e Irã afeta o Brasil. No comércio, nos preços internos e na definição da política brasileira em relação ao assunto. Os diplomatas estão acompanhando atentos as decisões da política externa, e a avaliação é que é arriscado mudar a nossa política em cima de um conflito de desdobramentos imprevisíveis.

A escalada da crise afeta diretamente os preços do petróleo, mas a lista dos produtores e dos importadores mudou muito nos últimos anos. Os especialistas no setor ainda não temem uma disparada dos preços. Porém, eles já subiram o suficiente para colocar em xeque a política do governo Bolsonaro. Na sexta-feira, o presidente indicou que tentará suavizar o repasse para os preços, reduzindo impostos, e ontem se reuniu com ministros para discutir o tema. Pode conversar com os estados para eles segurarem o ICMS. Não faz sentido algum. A presidente Dilma foi muito criticada pelos economistas exatamente por impedir que os combustíveis seguissem as oscilações do mercado internacional. Aquela política abriu um rombo na Petrobras e no caixa do governo.

Os analistas consideram que as palavras do governo Bolsonaro de alinhamento com Israel e agora essa posição do Itamaraty podem acabar afetando o comércio. Do que nós vendemos, 44% é milho, o principal produto da pauta de importação do Irã. Foram US$ 940 milhões de janeiro a novembro. O segundo, que representa 39%, é a soja, o terceiro item de importação do país. E 10% é carne bovina congelada. E depois é cana de açúcar.

No domingo, a chancelaria iraniana pediu esclarecimentos sobre o posicionamento do Brasil. Uma preocupação que comandantes militares e diplomatas brasileiros sempre tiveram é de jamais provocar a vinda desse tipo de conflito para o país. Porém, no terceiro parágrafo da nota, o Itamaraty diz que o “Brasil não pode ficar indiferente a essa ameaça (do terrorismo no Oriente Médio) que afeta inclusive a América do Sul”.

O espanto dos diplomatas é em relação a que eventos o Itamaraty está se referindo. “Eu me pergunto aonde e em quais fatos recentes?”, perguntou um embaixador. O último acontecimento foi na Argentina, em 1993, o atentado contra a Amia. Foi há 26 anos.

O alinhamento completo aos Estados Unidos numa área cheia de fios desencapados, e numa escalada do conflito provocada pela decisão pessoal do presidente Donald Trump, é temerário. Trump não ouviu o Congresso, ele se cercou apenas de um grupo mínimo de assessores diretos, e até integrantes do governo criticaram a decisão intempestiva.

O Irã passava por um momento difícil quando o míssil americano foi lançado pelos Estados Unidos sobre o general Soleimani no aeroporto do Iraque. O governo estava fraco, contestado pela alta do custo de vida e pela recessão. O atentado pode ter permitido o que o governo de Teerã não havia conseguido: unir o país.

O Irã não é árabe, como se sabe. É persa, de herança cultural milenar. Mas é um mosaico de etnias. Tem árabes, curdos, azerbaijanos, turcomenos. O governo de Teerã temia mais um levante de rua do que as sanções do Ocidente, avalia um diplomata brasileiro que acompanha o assunto. O regime estava com um sério problema de legitimidade. E todas as mudanças no país — da queda do Xá Pahlevi, em 1979, à derrubada de Ahmadinejad — foram após protestos de rua.

Soleimani comandava os Quds, a força da elite dentro de uma força de elite que é a Guarda Revolucionária. Mas elas não são apenas um poder militar. Têm poder econômico também. São donas de bancos, controlam empresa de comércio exterior, operam com câmbio. Tudo é complexo demais para se tomar decisões com base em ideologia ou alinhamento automático com os Estados Unidos no meio de uma escalada imprevisível. De novo, faltou cautela à política externa de Bolsonaro.

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