sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Pedro Doria - Ouvir, o verbo do ano novo

- O Globo

Se a regra de ouvir atento e com dedicada empatia for obedecida, vocês vão adorar a conversa

Chegou o ano novo. Posso compartilhar uma aflição? Perguntem e ouçam as respostas. A palavra chave é ouçam.

Sabe aquele seu tio bolsonarista? Por que ele acha que o país está melhor? A resposta será algo de óbvio — petralhas, corrupção, comunismo. Pergunte o mesmo doutra forma. Dificilmente haverá algo novo. Pergunte, pois, uma terceira vez. Os cacoetes, as respostas pré-fabricadas vão embora. Virão suas aflições, valores, preocupações.

Talvez você descubra, na terceira, que há pontos de encontro. Se não nas soluções, talvez no diagnóstico.

Sabe aquele amigo querido Lula livre? De cara falará sobre golpe, fascismo. A segunda resposta vai melhorar um pouco, mas resvalando na repetição fácil. Na terceira, o que causa angústia começará a aparecer. E você concordará em alguns pontos, sabe?

Se a regra de ouvir atento e com dedicada empatia for obedecida, vocês vão adorar a conversa. É seu tio, é seu amigo. O afeto já está lá, basta reencontrar. Somos as mesmas pessoas que éramos dez anos atrás. Perdemos foi a capacidade de tolerar o diferente.

Há razões.

Passam por uma profunda transformação de ordem econômica, que tornou a vida mais difícil. Vai se estabilizar de novo — mas o processo não é rápido. A economia industrial está morrendo, e a digital, nascendo. O impacto no cotidiano é imediato e só vai assentar em uma ou duas décadas.

Não tem jeito de ganhar a vida que não passou ou passará por mudança. Vivemos isso, pessoalmente, na falta de grana, na de emprego, nas empresas que demitem, na descoberta de ganhar dinheiro de formas diferentes. Sobreviveremos. Nenhuma transformação desse nível deixa a vida fácil.

O sentido mais imediato da transformação está nas redes sociais. Conversávamos com aqueles de quem gostamos cara a cara. Nuns casos todo dia, noutros a cada dois meses. Mas uma declaração que causasse desconforto esbarrava logo numa reação — mesmo que só um franzir de sobrancelhas. Ao vivo, chegávamos logo a um acordo de paz.

Pessoalmente a gente se ajeita. O post que será lido dois dias depois não tem esse ajeitamento. Causa o choque sem oferecer espaço para negociar a paz.

Aí entram no jogo os algoritmos. Eles dão mais destaque para aquilo que causa indignação. Não foi de propósito. A inteligência artificial das redes foi programada para encontrar o que deixa as pessoas por mais tempo grudadas no sistema. Descobriu a natureza humana: raiva liga a gente. Agora, as empresas precisarão abrir mão de ter nossa atenção o tempo todo. Vivem de lucro, não têm regulação, para consertar o mundo precisam abdicar de dinheiro. Não o fazem.

Enquanto os governos não se movem, as empresas tampouco, restamos nós. O que é mais importante?

A pergunta é séria.

Se o mais importante for uma afirmação de pureza ideológica — quero impor minha verdade ao mundo — a democracia não sobreviverá. Se for a busca pelo encontro de quem gostamos, aí a democracia tem chances.

Este é o pacto democrático. Topar a discordância e se dedicar à busca do meio termo. A alternativa é dizer que o outro é errado. Atende pelo nome de autoritarismo, a antessala da ditadura.

Não importa se de direita ou de esquerda, o autoritarismo vai sempre querer calar. Quando vira ditadura, termina até calando à força quem meio concordava.

Democracia é a conversa contínua. Democracia é o reconhecimento de que vamos discordar. Porque pensamos diferente — e tudo bem. Às vezes um grupo está no poder, às vezes outro.

Quando um está no poder, o Legislativo tem espaço para o outro, e nunca, jamais, alguém é absoluto. Às vezes perdemos, às vezes ganhamos. No Executivo, todos cometerão excessos. O Executivo seguinte corrige. Todos que chegam ao Executivo vão querer ficar vinte anos — e nenhum ficará.

Todo Executivo vai deixar a população com enfado. Cansada. Querendo mudança. Que bom.

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