quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Rennan Setti* - Piketty em almanaque

- O Globo

Mais amplo que o best-seller anterior, “Capital e ideologia” oferece uma espécie de anatomia histórica da desigualdade

Lançado recentemente na França, o novo livro do economista Thomas Piketty ganhará versões em português e inglês em 2020. O momento é oportuno, já que a discussão sobre a guinada da desigualdade deve protagonizar as eleições americanas deste ano e tomar ainda mais corpo em um Brasil cujo governo parece não estar muito preocupado com isso.

Mais amplo que o best-seller que o antecede, “Capital e ideologia” oferece uma espécie de anatomia histórica da desigualdade tanto em países avançados como emergentes, tanto em termos de riqueza como em poder político. Mas o livro funciona também como um anedotário do injustificável, um almanaque da selvageria através dos séculos.

Piketty conta que, em 1833, quando os britânicos aboliram a escravidão, acharam por bem, é claro, indenizar os escravocratas, em vez dos escravizados.

Versaram 20 milhões de libras esterlinas a 4 mil donos de escravos, ou 5% da renda nacional. Isso em um país que investia apenas 0,5% da renda em educação. Em valores atuais, o montante pagaria o Bolsa Família por mais de 20 anos.

O precedente de indenizar “proprietários” foi seguido por outros, mas a França inovou. No fim do século XVIII, o país que decapitava seu monarca prometendo liberdade, igualdade e fraternidade explorava aquele que é provavelmente o território mais desigual que já houve na História. No Haiti de 1780, 90% da população eram escravos, proporção recorde em qualquer outro país escravagista. No Brasil, à mesma época, a fatia era de já elevados 50%.

Quando as vítimas se insurgiram, em 1804, a França resistiu com violência. Só concordou com a independência em 1825, mas com uma condição: para que a transição fosse “justa”, o novo país deveria indenizar a França em 150 milhões de francos-ouro, ou mais de 300% da renda nacional do Haiti naquele ano. Sem alternativas, os haitianos pagaram as parcelas dessa “dívida” ao longo de inacreditáveis 125 anos.

Piketty demole, aliás, o mito igualitário da Revolução Francesa e qualquer nostalgia da Belle Epoque que seduza incautos. O fim do Ancien Régime, em vez de tornar a sociedade mais justa em termos de repartição de riquezas, sacralizou a propriedade privada e permitiu uma acumulação sem precedente nas mãos de poucos. Paris encapsulou essa dinâmica.

Enquanto a Bastilha caía, o 1% mais rico da capital detinha 55% da riqueza da cidade; às vésperas da Primeira Guerra, esse percentual era de 65%. Paris tornou-se tão desigual após a Revolução que, no século XIX, houve momentos em que 74% dos que morriam não tinham qualquer patrimônio.

O Código Tributário em vigor, aliás, sequer previa a cobrança de impostos de apartamentos, já que desconsiderava a hipótese de o contribuinte não ser dono de todo o prédio. O regime “proprietarista” era tão zeloso dos seus que, como se sabe, calculava impostos a partir do número de portas e janelas dos edifícios, de modo a não violar a privacidade do andar de cima. Não à toa, há tantas “janelas falsas” na arquitetura parisiense: os proprietários preferiam fechar o buraco a pagar mais.

Outra curiosidade do livro é a desigualdade extrema que vigorava até o começo do século XX na Suécia. Um dos lugares mais igualitários do mundo há décadas, no reino nórdico daquele tempo o sufrágio era censitário, proporcionando maior poder de voto aos mais ricos. Os mais abastados chegavam a ter 54 vezes mais peso.

Piketty escreve menos do que gostaríamos sobre o Brasil, mas trata em detalhes de lugares como a Rússia. A ex-União Soviética, em sua traumática transição do comunismo rumo ao hipercapitalismo, transformou-se em paraíso para bilionários de fortuna duvidosa, ele conta. Lá, isentam-se os ricaços de qualquer imposto sobre herança e tributa-se a renda da forma mais regressiva possível. A alíquota é de 13% para todos, dos miseráveis aos amigos de Putin. O regime tolera que algo entre 70% e 110% da renda nacional estejam em paraísos fiscais.

Tamanha opacidade se aproxima daquela de monarquias do Oriente Médio, paroxismo da desigualdade contemporânea. No Qatar e nos Emirados Árabes do século XXI, os 10% mais ricos capturam até 90% da renda, como ocorria nas sociedades escravagistas mais injustas que já houve.

No Brasil, “Capital e ideologia” chega em abril pela Intrínseca.

*Rennan Setti é jornalista

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