terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Carlos Andreazza – Censura

- O Globo

A vida de um livro é a vida dos que o desejam ler

Governador Marcos Rocha,
Espero que o senhor já tenha demitido o secretário de Educação do Estado de Rondônia, assim como a diretora-geral de Educação. Nada pessoal, senão pelo fato de que — ao não o fazer — será somente do senhor a responsabilidade pela tentativa de censura contida no memorando 4/2020, aquele que propõe o Index Librorum Prohibitorum do século XXI, expedido por uma secretaria de seu governo e enviado às coordenadorias regionais.

Permita-me lembrá-lo de como a mensagem começa, desde já me desculpando por constrangê-lo com o uso do idioma por auxiliares que escolheu: “Solicitamos aos senhores que verifiquem nos kits de livros paradidáticos encaminhados às escolas para compor os acervos das bibliotecas, os livros relacionados no Adendo ID (10053329), e procedam com o recolhimento dos mesmos imediatamente, tendo em vista conterem conteúdos inadequados às crianças e adolescentes”.

Espero que já os tenha demitido também porque, de qualquer outra forma, recairá sobre o senhor a obrigação de explicar à sociedade o que seriam — nos livros que se pretendeu censurar —os tais “conteúdos inadequados”. O que seriam? Uma sugestão, governador: pergunte aos autores do memorando censor e então tenha — qualquer que seja a resposta — a justa causa para exonerá-los.

O outro caminho será o habitual, o da covardia, o que o senhor trilha até aqui: assumir, com o silêncio, a incompetência dos subordinados, passando-lhes a mão na cabeça, e, por omissão, plantar que desconhecia o ato, torcendo para o fervo baixar — combinação que intenta descaracterizar o propósito difundido pelo memorando, opção que reforça o propósito sem negar a incompetência.

Talvez o senhor diga que houve um mal-entendido e que, uma vez identificado o erro, o governo se mobilizou para repará-lo. Nesse caso, terá de explicar como se conserta um arreganho autoritário colocando o documento em questão sob sigilo. Precisará igualmente esclarecer que tipo de consciência — senão a do “a casa caiu” — vai expressa em comunicações oficiais como a que se segue: “Missão recolhimento dos livros abortada. Caso façam contato com vocês sobre o tema, por favor, peçam que entrem em contato com a C.R.E.”

Não é bonito o retrato. Bonito tampouco é o tuíte por meio do qual o seu governo buscou reagir após recuar: “A @seducro reforça o compromisso com a Educação e reconhece que os livros são obras de autores consagrados mundialmente e que cumprem um papel importante para uma construção social. Sendo assim, não há ordem de recolhimento dos mesmos”.

O reconhecimento da secretaria não interessa, governador. Tampouco interessa a avaliação sobre o papel de um escritor para “uma construção social”, seja lá o que isso for. O fato de serem livros de “autores consagrados” não importa. Não é critério — a condição de clássico — para não censurar. Ou seria diferente — a censura avançaria — fossem escritores desconhecidos?

Livro nenhum precisa ser lido. Todo livro precisa estar livre para a leitura. Sem exceção. Isso é um valor — valor que não vê capa. Só o tempo pode tornar degredado um livro. Só o desinteresse das gentes, no curso das décadas, elege os proscritos — exílio do qual sempre um novo olhar lhes poderá resgatar.

O que faz um livro clássico não é a imposição do gosto de alguém ou de algum grupo. A imposição do gosto de alguém ou de algum grupo faz a censura. Não foi a caneta de um burocrata que fez “Memórias póstumas de Brás Cubas” um clássico. Foi a força de permanência dessa obra — sua capacidade de se manter atraente para além dos séculos — o que a fez clássica.

A vida de um livro é a vida dos que o desejam ler. O livro envelhece, rejuvenesce ou encontra a maturidade, a estabilidade, em função do desejo soberano de leitura. Quando o Estado viola o fluxo dessa natureza e mobiliza suas estruturas para recolher obras — clássicas ou não — em decorrência do juízo de burocratas, o que temos nome tem: censura.

Foi o que tentou fazer o governo do senhor: censurar.

São homens de bem —certos de proporem o melhor para proteger a juventude —os que censuram; os que mais rapidamente materializam o espírito do tempo. Doutrinação esquerdista nos colégios, a onipresença do marxismo cultural nas salas de aula, o ensino como irradiador de perversões etc. Isso nunca tarda a resultar, na mão do guarda da esquina, em lista de leituras a serem trancadas; nunca demora a desaguar em um Machado de Assis proibido, autor também de “Dom Casmurro”, criador da personagem Capitu, Capitu que dá nome à cadela do ministro da Educação, de quem não se ouviu palavra em repúdio ao limite que o governo do senhor testou. O senhor, com a omissão que abona, é o guarda da esquina.

É onde estamos. A corda seguidamente esticada; sendo inegável que, nos 43 livros amaldiçoados, haja muita coisa escrita — e de impossível suavização. Quando afrouxa, nunca volta ao mesmo lugar.

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