sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Eliane Cantanhêde - A retroescavadeira

- O Estado de S.Paulo

Senador faz política, não guerra. E PM não faz greve, faz motim, um crime militar

Policiais militares, armados e encapuzados, fazem greve ilegal, aquartelam-se e usam mulheres e filhos como escudo. Um senador, exibindo-se pateticamente heroico, aboleta-se numa retroescavadeira, ameaça lançá-la contra o quartel, os policiais e suas famílias e leva dois tiros. Tiros para matar. Típica história em que não há mocinhos e ninguém tem razão.

Todo o enredo ganha ainda mais dramaticidade pelo momento e pela simbologia: policial versus político, justamente no mesmo dia em que emergiu a fala do general Augusto Heleno (GSI) atacando os parlamentares como “chantagistas” e dedicando-lhes um sonoro palavrão.

Como tudo, o conflito no Ceará foi para as redes sociais como Fla-Flu, com a torcida vermelha aplaudindo o senador Cid Gomes (PDT-CE), que é oposição ao governo federal e situação no seu Estado e apresentou-se ensandecido, autoritário e ridículo, dando cinco minutos para os policiais, ou jogaria a escavadeira em cima de todos.

Alguém entre os policiais grita uma pergunta pertinente: “Qual a sua autoridade para exigir isso?” E outro alguém dispara uma, duas vezes, mirando o coração. Não foi para dar susto.

Já para a torcida verde, ou verde-oliva, o único culpado, o único alvo, é o senador cearense, irmão do também destemperado Ciro Gomes (PDT), um dos adversários do presidente Jair Bolsonaro em 2018. Quem atirou agiu em “legítima defesa, para salvar vidas”. Um tiro perfurou o pulmão e o outro, a clavícula, mas o time acha pouco. “Tinha de ser no meio da testa”, diz um torcedor.

De cabeça fria, olhando a Constituição, ninguém ali merece torcida nem perdão. Não existe greve de categoria armada. É motim, não greve; questão militar, não sindical. Como, aliás, destacaram as Forças Armadas quando o então presidente Lula insistia em tratar a rebelião dos sargentos controladores de voo como greve de sindicalistas, não como motim que era. Só quando a coisa fugiu totalmente ao controle Lula autorizou e o comandante da Aeronáutica, brigadeiro Juniti Saito, fez o que tinha de ser feito: enquadrou todos eles e botou ordem na bagunça.

Do outro lado, o que dizer de um senador que não tem cargo executivo nem autoridade para gerenciar greve, muito menos motim, e assume uma retroescavadeira para jogar em cima de pessoas, ou melhor, famílias? Seria cômico, não fosse trágico. Seria surpreendente, não fossem os irmãos Gomes, os valentões de Sobral.

Toda essa história vem num contexto de radicalização política, com o presidente da República jogando sua retroescavadeira verbal contra tudo e todos, enaltecendo armas e empoderando as polícias – que, aliás, conquistaram assentos no Congresso e acabam de receber um aumento de 41% em Minas Gerais, um Estado quebrado.

Aguarda-se agora o efeito, tanto do aumento em Minas quanto dos tiros no Ceará, em outras unidades da Federação, como Paraíba, já em crise, e o Espírito Santo, que já passou por isso em 2017, quando PMs jogaram suas mulheres no teatro de operações para exigir aumentos e vantagens. Sem segurança, o Estado viveu o caos, com centenas de mortes.

A expectativa, porém, é de que se repita no Ceará o que ocorre em geral nesses casos, inclusive no Espírito Santo: julga-se daqui, julga-se dali e nunca dá em nada, com as assembleias também dando cobertura aos crimes e aos criminosos.

Em resumo: policiais cometeram crime, um insano ameaçou jogar uma retroescavadeira sobre pessoas, um senador foi atingido por dois tiros. E o que vai acontecer? Nada. A boa notícia é que o governo Bolsonaro e o governo do PT do Ceará acertaram o uso da GLO, mas tem risco: o confronto do Exército e Força Nacional com PMs amotinados, inconsequentes e perigosos.

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