segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Ricardo Noblat - No Sambódromo e nas ruas, o carnaval do “cala a boca já morreu”

- Blog do Noblat / Veja

Censura nunca mais

Melhor que os seguidores fieis da família Bolsonaro deixem para lá, não estrilem e nada comentem. Melhor já irem se acostumando. Porque nem na ditadura militar os governantes conseguiram tapar a boca dos que gritavam nas ruas durante o carnaval.

O medo em diversas fases da ditadura inibiu o que muitos brasileiros pareciam dispostos a expressar – e por medo não o fizeram. Mas a crônica da época não guarda lembrança de censura bem-sucedida, ou de prisões, ou de cancelamentos.

“Abra a porta desse armário
Que não tem censura pra me segurar
Abra a porta desse armário
Que alegria cura, venha me beijar” (Daniela Mercury)

Os episódios mais notáveis de tentativa malsucedida de intervenção no carnaval aconteceram no final do século XIX e no início do seguinte. Em 1892, por causa de um surto de febre amarela, o carnaval foi proibido. Aconteceu assim mesmo.

Em 1912, um gênio do governo teve a ideia de adiar o carnaval devido à morte do Barão do Rio Branco, o papa da diplomacia brasileira. Os cariocas pularam o carnaval na data prevista e, meses depois, também na data marcada pelo governo.

Carnaval é irreverência, anarquia, liberdade. E tais coisas nunca são a favor de tudo o que está aí. Sempre foi assim e assim será. Tanto mais quando o país atravessa “tempos estranhos”, segundo o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo.

“Cala a boca já morreu”, decretou a ministra Cármen Lúcia, também ministra do Supremo, no julgamento da ação sobre a inconstitucionalidade de autorização prévia para biografias. Morreu, embora muitos não se conformem com isso.

Outra vez morreu quando as escolas de samba abriram, ontem à noite, o desfile na Marques de Sapucaí, no Rio. A primeira, a Estácio de Sá, criticou a destruição do meio ambiente para extrair minérios, tema sensível ao governo.

Favela, pega a visão
Não tem futuro sem partilha
Nem Messias de arma na mão
Favela, pega a visão
Eu faço fé na minha gente
Que é semente do seu chão” (Samba da Mangueira)

A segunda, Unidos do Viradouro, empolgou as arquibancadas ao exaltar o empoderamento feminino e homenagear as mulheres que lutaram para construir o Brasil. Seu samba enredo foi o mais bonito e o mais cantado nas arquibancadas.

A Mangueira, a terceira a desfilar, apresentou o enredo mais politizado até aqui. Pode ter feito pensar. Pelos critérios do politicamente correto, até seria capaz de ter deixado a Sapucaí aos gritos de “campeã”, como ocorreu no ano passado.

Mas foram poucos os gritos. O samba-enredo contou a história de Jesus, ora homem, ora mulher, ora branco, ora negro, ora menino de rua vítima de muitos tiros, o Jesus que ressuscitaria depois na favela que cobre o morro da Mangueira.

A foto da menina Ágatha Félix, de 8 anos, morta no ano passado durante uma ação policial no Complexo do Alemão, estampou o manto do Dom Sebastião dos Pobres do figurinista Leonardo Diniz levado à avenida para Paraíso do Tuiuti.

O último carro da escola homenageou vítimas da violência e do descaso do governo do Rio com a segurança pública. A Acadêmicos da Grande Rio cantou: “Pelo amor de Deus, pelo amor que há na fé, eu respeito seu amém, você o meu axé”.

A União da Ilha do Governador foi no mesmo embalo: “A voz do rancor não cala meu povo, não! Sou mãe! Dignidade é meu destino”. E a Portela, a maior colecionadora de títulos, amanheceu advertindo:

Índio pede paz mas é de guerra
Nossa aldeia é sem partido ou facção
Não tem “bispo”, nem se curva a “capitão”
Quando a vida nos ensina
Não devemos mais errar
Com a ira de Monã
Aprendi a respeitar a natureza, o bem viver
Pro imenso azul do céu
Nunca mais escurecer”.

Hoje tem mais.

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