O QUE PENSA A MÍDIA
EDITORIAIS DOS PRINCIPAIS JORNAIS DO BRASIL
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Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
segunda-feira, 7 de julho de 2008
SUCESSÃO DE SÃO PEDRO
Ascenso Ferreira
- Seu Vigário!
Está aqui esta galinha gorda
que eu trouxe pro mártir São Sebastião!
-Está falando com ele!
-Está falando com ele!
Quem é Ascenso Ferreira:
Poeta pernambucano, Ascenso Carneiro Gonçalves Ferreira nasceu na cidade de Palmares no ano de 1895. Dizem que começou a atividade literária enganado, compondo sonetos, baladas e madrigais. Depois da "Semana de Arte Moderna" e sob a influência de Guilherme de Almeida, Manuel Bandeira e de Mário de Andrade, tomou rumos novos e achou um caminho que o conduziria a uma situação de relevo nas letras pernambucanas e nacionais. Voltou-se para os temas regionais de sua terra que foram reunidos em seus livros "Catimbó" (1927), "Cana caiana" (1939), "Poemas 1922-1951" (1951), "Poemas 1922-1953" (1953), "Catimbó e outros poemas" (1963), "Poemas" (1981) e "Eu voltarei ao sol da primavera" (1985). Foram publicados postumamente, em 1986, "O Maracatu", "Presépios e Pastoris" e "O Bumba-Meu-Boi: Ensaios Folclóricos", em livro organizado por Roberto Benjamin. Distingue-se não pela quantidade, mas pela qualidade, atingindo não raro efeitos novos, originais, imprevistos, em matéria de humorismo e sátira. O poeta faleceu na cidade do Recife (PE), em 1965.
DEU NO JORNAL DO BRASIL
NASCE EM MINAS A ALIANÇA BRANCA
Wilson Figueiredo
Wilson Figueiredo
Com espírito pragmático e senso de oportunidade, o presidente Lula fez crítica de raspão aos dirigentes nacionais do PT numa solenidade em Itajubá (MG) e, a contrapelo do que se passou nos bastidores, providenciou o elogio rasgado da aliança branca entre o PT e o PSDB no caso do candidato comum a prefeito municipal de Belo Horizonte. Não perdeu oportunidade de fazer política como se fosse história viva.
O presidente perfilhou, soberano, o candidato emprestado pelo PSB sob a dupla custódia do governador Aécio Neves (PSDB) e do prefeito Fernando Pimentel (PT), e abençoou a escolha de Márcio Lacerda (PSDB), um socialista capaz de unir as duas variantes de uma esquerda mais nostálgica do que ideológica. E ainda comunicou que vai subir no palanque do candidato antes de pingar o ponto final. Quem não gostou pode se queixar ao bispo, como já foi de praxe.
"Vou participar pouco das eleições", ressalvou Lula aos matizes social-democrata e petista envolvidos na questão mineira, para deixar clara sua presença no episódio: "até porque é importante a continuidade do projeto". É aí o endereço do mistério. A equação que reúne o petismo e o social-democratismo praticados nas montanhas continua a ter uma única incógnita que vale por duas. Que produto substituirá, finalmente, o café-com-leite que sustentou a Primeira República interrompida em 1930 pelo advento do chimarrão?
Na avaliação presidencial, a aliança PT-PSDB em Minas "é plenamente aceitável, viável e importante". A frase teve a intenção de abrandar o sectarismo que trava o exercício da democracia no dia a dia. Quer dizer que Lula não pretende mais do que patrocinar o bom uso da oportunidade? Não arriscou fazer profecia, mas quis dar o toque de tolerância que falta à normalidade política brasileira. Avaliou que "o PAC está dando certo" como programa de obras para manter a coesão num governo de coalizão, embora com mais partidos do que o necessário para servir a uma democracia refém de contradições. E ainda mostrou disposição de ir a comícios da campanha porque – no caso de Belo Horizonte – a boa relação entre o governo municipal e o estadual tem sido benéfica até para ele, e a aliança em torno de um tertius não prejudica ninguém. Ao contrário, multiplica a credibilidade dos partidos.
Por motivo da inversão de rumo que as coisas iam tomando, as palavras de Lula não ganharam fora de Minas a repercussão que mereciam. Tiveram apenas sentido reparador das tensões de natureza ética na vida brasileira, seguida de acomodação política a práticas menos nobres, sempre em nome da democracia e a pretextos menores. "As divergências políticas têm de ser encaradas com certa naturalidade, porque é assim mesmo", explica o presidente bonachão, sem enrolar a língua com teoria política ou pretensas razões científicas. Política entre nós ainda não é isto que Lula se dispõe a patrocinar junto aos dois partidos de impreciso teor de esquerda.
O marco zero do novo estilo de Lula foi a contundente repulsa ao terceiro mandato que lhe quiseram impingir, embora insuficiente para dissolver a suspeita acumulada. A declaração oral de Itajubá inaugurou o novo percurso presidencial, mas há muito chão a ser percorrido depois da eleição dos prefeitos e antes da sucessão da República. Ele já percebeu, mais à frente, o esboço de alguma dificuldade suficiente para reativar divergências e instalar o impasse. Dificuldades decorrentes da eleição deste ano e expectativa econômica sombria, no encaminhamento da sucessão, poderiam levar o presidente a advertir que não contem com ele para qualquer solução que não seja estritamente constitucional.
No momento em que superou o risco da deposição, da qual já chegam pormenores à opinião pública, Lula se reconheceu nos fatos e encantou-se com o perfil de homem de Estado em que se sentiu nos momentos difíceis. As pesquisas fizeram a balança pender para o lado dele. O presidente situou-se acima da identidade petista e das deficiências políticas brasileiras, no que respeita à democracia, e repeliu a hipótese sem fundamento legal. É só, por enquanto.
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
MALES QUE VÊM PARA O BEM
Leôncio Martins Rodrigues
A discussão sobre os objetivos da luta armada e sua contribuição para o fim do autoritarismo militar voltou a freqüentar as páginas dos jornais. Para ganhar legitimidade e justificar pedidos de indenização de natureza variada, é importante que se consolide a versão de que a guerrilha era democrática e contribuiu de modo relevante para a derrota do autoritarismo militar. O historiador Marco Antonio Villa já demonstrou (*) a falácia dessa interpretação. Não teríamos nada a acrescentar ao seu texto, mas, para os fins de nosso raciocínio, necessitamos repisar certos pontos.
Não há como negar que o objetivo final de todos os grupos de luta armada era o socialismo. Não seria para defender a democracia "burguesa" e o pluralismo político que Marighella, "Toledo" e outros romperam (em 1966) com o reformista e legalista PCB, optaram pela via revolucionária e criaram a Ação Libertadora Nacional (ANL). A derrota do regime militar era apenas um meio a legitimar a ação armada que permitiria a implantação do socialismo. Embora os chefes guerrilheiros não fossem trotskistas, há nessa tática algo de parecido com a teoria da revolução permanente de Trotski: nos países subdesenvolvidos, a revolução começaria com metas democráticas e, no seu curso, terminaria socialista. Primeiro, a conquista militar do Estado; depois, a socialização da economia e o controle da vida social pelo partido único.
Mas não é preciso adentrar o campo da teoria sobre a melhor via para o socialismo para que a natureza programática e ideológica dos grupos da luta armada salte aos olhos. Basta um arrolamento onomástico: Ação Libertadora Nacional, Vanguarda Armada Revolucionária (VAR), Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), Ação Popular Marxista-Leninista (AP Marxista Leninista), Comando de Libertação Nacional (Colina), Movimento de Libertação Nacional (Molipo). Nenhum deles incluía o termo "democrático" em seu nome, mesmo que fosse para iludir os ingênuos.
Contudo, os grupos que se inspiravam no exemplo cubano do "socialismo pelo alto" foram derrotados com relativa rapidez. Em começos da década dos 70, seus principais chefes estavam mortos, como Marighella (1969), "Toledo" (1970) e Lamarca (1971). Outros dirigentes estavam exilados, encarcerados ou mortos. Mas, derrotada a "subversão interna", o poder dos generais, em vez de se reforçar, esvaiu-se. O Exército, vencedor da batalha das armas, perdeu a guerra ideológica e política. Aconteceu que, esmagada a guerrilha, ganhou força a oposição da sociedade civil ao autoritarismo militar. Outros atores que não usam metralhadoras entraram na arena política (movimento sindical, Igreja, estudantes, partidos "burgueses", etc.). No final, o regime autoritário deu lugar a uma democracia representativa e pluripartidária, ou seja, "burguesa".
Esse resultado não estava nos planos dos setores mais radicais da esquerda, e até mesmo do PT. Ainda em agosto de 1988, às vésperas da promulgação da Constituição, o Diretório Nacional emitiu a seguinte nota: "O PT, como partido que almeja o socialismo, é por natureza um partido contrário à ordem burguesa, sustentáculo do capitalismo. Disso decorre que o PT rejeita a Constituição burguesa que vier a ser promulgada (...); por extensão, o PT rejeita a imensa maioria das leis que constituem a institucionalidade (sic) que emana da ordem burguesa capitalista, ordem que o partido justamente procura destruir e, no seu lugar, construir uma sociedade socialista."
Vem daí outra ironia. Contrariando toda a teoria marxista-leninista, o Brasil se desenvolveu economicamente. A democracia possibilitou a ampliação da participação eleitoral e a ascensão ao sistema de poder de políticos originários das classes médias e populares. Um grande número de ex-integrantes da luta armada e da esquerda em geral voltou à vida pública. Ao longo dos anos da consolidação democrática, ascenderam financeira e socialmente por meio da atividade política.
Estariam em melhor situação se o projeto socialista tivesse dado certo? Para Lula e os ex-sindicalistas que passaram a integrar a elite do poder, com elevada probabilidade de acerto, pode-se responder negativamente. O sindicalismo só tem força sob o capitalismo. E quanto aos outros militantes da esquerda? Se raciocinarmos tendo por base o caso de outras revoluções socialistas vitoriosas, há boas razões para os ex-integrantes da luta armada aceitarem, sem muita lamentação, o malogro do projeto socialista.
Revoluções de tipo comunista vitoriosas são muito perigosas, inclusive para os que as comandam. Elas costumam devorar, primeiro, os membros da velha elite. Depois, como sobremesa, vêm os antigos companheiros, possíveis rivais do chefe único. Não há espaço para exemplos, mas gostaríamos de lembrar um: dos 1.966 delegados que compareceram ao XVII Congresso do PCUS, em 1936, já consolidado o poder de Stalin, 1.108 foram fuzilados nos cinco anos seguintes.
Que seria, por exemplo, dos trotskistas se a guerrilha stalinista do PCdoB triunfasse? Quem seria o grande chefe: Marighella, Lamarca? Poder-se-ia imaginar que as várias tendências revolucionárias se transformariam em partidos eleitorais para disputar o governo pelo voto popular?
Mas estamos no terreno das conjecturas. O fato é que, com as imperfeições que conhecemos, no final deu democracia. A via pacífica acabou por se revelar a mais lucrativa até mesmo para os que não a desejavam. Há males que vêm para o bem, como aprendeu a raposa de La Fontaine.
Leôncio Martins Rodrigues
A discussão sobre os objetivos da luta armada e sua contribuição para o fim do autoritarismo militar voltou a freqüentar as páginas dos jornais. Para ganhar legitimidade e justificar pedidos de indenização de natureza variada, é importante que se consolide a versão de que a guerrilha era democrática e contribuiu de modo relevante para a derrota do autoritarismo militar. O historiador Marco Antonio Villa já demonstrou (*) a falácia dessa interpretação. Não teríamos nada a acrescentar ao seu texto, mas, para os fins de nosso raciocínio, necessitamos repisar certos pontos.
Não há como negar que o objetivo final de todos os grupos de luta armada era o socialismo. Não seria para defender a democracia "burguesa" e o pluralismo político que Marighella, "Toledo" e outros romperam (em 1966) com o reformista e legalista PCB, optaram pela via revolucionária e criaram a Ação Libertadora Nacional (ANL). A derrota do regime militar era apenas um meio a legitimar a ação armada que permitiria a implantação do socialismo. Embora os chefes guerrilheiros não fossem trotskistas, há nessa tática algo de parecido com a teoria da revolução permanente de Trotski: nos países subdesenvolvidos, a revolução começaria com metas democráticas e, no seu curso, terminaria socialista. Primeiro, a conquista militar do Estado; depois, a socialização da economia e o controle da vida social pelo partido único.
Mas não é preciso adentrar o campo da teoria sobre a melhor via para o socialismo para que a natureza programática e ideológica dos grupos da luta armada salte aos olhos. Basta um arrolamento onomástico: Ação Libertadora Nacional, Vanguarda Armada Revolucionária (VAR), Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), Ação Popular Marxista-Leninista (AP Marxista Leninista), Comando de Libertação Nacional (Colina), Movimento de Libertação Nacional (Molipo). Nenhum deles incluía o termo "democrático" em seu nome, mesmo que fosse para iludir os ingênuos.
Contudo, os grupos que se inspiravam no exemplo cubano do "socialismo pelo alto" foram derrotados com relativa rapidez. Em começos da década dos 70, seus principais chefes estavam mortos, como Marighella (1969), "Toledo" (1970) e Lamarca (1971). Outros dirigentes estavam exilados, encarcerados ou mortos. Mas, derrotada a "subversão interna", o poder dos generais, em vez de se reforçar, esvaiu-se. O Exército, vencedor da batalha das armas, perdeu a guerra ideológica e política. Aconteceu que, esmagada a guerrilha, ganhou força a oposição da sociedade civil ao autoritarismo militar. Outros atores que não usam metralhadoras entraram na arena política (movimento sindical, Igreja, estudantes, partidos "burgueses", etc.). No final, o regime autoritário deu lugar a uma democracia representativa e pluripartidária, ou seja, "burguesa".
Esse resultado não estava nos planos dos setores mais radicais da esquerda, e até mesmo do PT. Ainda em agosto de 1988, às vésperas da promulgação da Constituição, o Diretório Nacional emitiu a seguinte nota: "O PT, como partido que almeja o socialismo, é por natureza um partido contrário à ordem burguesa, sustentáculo do capitalismo. Disso decorre que o PT rejeita a Constituição burguesa que vier a ser promulgada (...); por extensão, o PT rejeita a imensa maioria das leis que constituem a institucionalidade (sic) que emana da ordem burguesa capitalista, ordem que o partido justamente procura destruir e, no seu lugar, construir uma sociedade socialista."
Vem daí outra ironia. Contrariando toda a teoria marxista-leninista, o Brasil se desenvolveu economicamente. A democracia possibilitou a ampliação da participação eleitoral e a ascensão ao sistema de poder de políticos originários das classes médias e populares. Um grande número de ex-integrantes da luta armada e da esquerda em geral voltou à vida pública. Ao longo dos anos da consolidação democrática, ascenderam financeira e socialmente por meio da atividade política.
Estariam em melhor situação se o projeto socialista tivesse dado certo? Para Lula e os ex-sindicalistas que passaram a integrar a elite do poder, com elevada probabilidade de acerto, pode-se responder negativamente. O sindicalismo só tem força sob o capitalismo. E quanto aos outros militantes da esquerda? Se raciocinarmos tendo por base o caso de outras revoluções socialistas vitoriosas, há boas razões para os ex-integrantes da luta armada aceitarem, sem muita lamentação, o malogro do projeto socialista.
Revoluções de tipo comunista vitoriosas são muito perigosas, inclusive para os que as comandam. Elas costumam devorar, primeiro, os membros da velha elite. Depois, como sobremesa, vêm os antigos companheiros, possíveis rivais do chefe único. Não há espaço para exemplos, mas gostaríamos de lembrar um: dos 1.966 delegados que compareceram ao XVII Congresso do PCUS, em 1936, já consolidado o poder de Stalin, 1.108 foram fuzilados nos cinco anos seguintes.
Que seria, por exemplo, dos trotskistas se a guerrilha stalinista do PCdoB triunfasse? Quem seria o grande chefe: Marighella, Lamarca? Poder-se-ia imaginar que as várias tendências revolucionárias se transformariam em partidos eleitorais para disputar o governo pelo voto popular?
Mas estamos no terreno das conjecturas. O fato é que, com as imperfeições que conhecemos, no final deu democracia. A via pacífica acabou por se revelar a mais lucrativa até mesmo para os que não a desejavam. Há males que vêm para o bem, como aprendeu a raposa de La Fontaine.
(*) Falácias sobre a luta armada na ditadura, Folha de S.Paulo, 19/5/2008, pág.3.
Leôncio Martins Rodrigues é cientista político.
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
A RALÉ ETERNIZADA
Jessé Souza*
O erro histórico da sociedade brasileira é achar natural ter ?gente? de um lado e ?subgente? de outro
O debate sobre programas assistenciais à população mais pobre no Brasil se perde, muitas vezes, na miopia da conjuntura política e das querelas partidárias. É como se não existisse "política" fora dos partidos e de suas respectivas propagandas. Eu gostaria de mudar o foco de análise, dado que ele é falso e condenado a atacar espantalhos e nunca os problemas reais. Na verdade, é a "sociedade" e não o "Estado", ao contrário do que pensam o senso comum e as teorias "científicas" que apenas reproduzem o senso comum em linguagem erudita, o verdadeiro local da formação dos consensos, quase nunca articulados conscientemente, que monta todo o fundamento do horizonte do possível em todas as questões políticas fundamentais.
Jessé Souza*
O erro histórico da sociedade brasileira é achar natural ter ?gente? de um lado e ?subgente? de outro
O debate sobre programas assistenciais à população mais pobre no Brasil se perde, muitas vezes, na miopia da conjuntura política e das querelas partidárias. É como se não existisse "política" fora dos partidos e de suas respectivas propagandas. Eu gostaria de mudar o foco de análise, dado que ele é falso e condenado a atacar espantalhos e nunca os problemas reais. Na verdade, é a "sociedade" e não o "Estado", ao contrário do que pensam o senso comum e as teorias "científicas" que apenas reproduzem o senso comum em linguagem erudita, o verdadeiro local da formação dos consensos, quase nunca articulados conscientemente, que monta todo o fundamento do horizonte do possível em todas as questões políticas fundamentais.
Esses consensos sociais inarticulados são construídos a partir de idéias e concepções de mundo que logram se tornar hegemônicas em dado contexto histórico. A forma como a sociedade brasileira percebe, hoje em dia, sua abissal desigualdade social é "colonizada" por uma visão "economicista" da realidade social. O economicismo é, na realidade, um subproduto do liberalismo como visão de mundo hoje dominante em todo o planeta, a qual tende a reduzir todos os problemas sociais à lógica da acumulação econômica. Entre nós, no entanto, o economicismo, de tão hegemônico, transformou-se na única linguagem social compreensível por todos, de tal modo que nossos graves problemas sociais são todos superficialmente percebidos e amesquinhados a questões de "gestão de recursos". Com isso, cria-se a falsa impressão de que conhecemos os nossos problemas sociais e o que falta é apenas uma "gerência" eficiente - a crença fundamental de toda visão tecnocrática do mundo - quando, na verdade, nem sequer se sabe o que se está combatendo.
Senão, vejamos. A crença fundamental do economicismo é a percepção da sociedade como sendo composta por um conjunto de homo economicus, ou seja, agentes racionais que calculam suas chances relativas na luta social por recursos escassos com as mesmas disposições de comportamento e as mesmas capacidades de disciplina, autocontrole e auto-responsabilidade. Nessa visão distorcida do mundo, o marginalizado social é percebido como se fosse alguém com as mesmas capacidades e disposições de comportamento do indivíduo da classe média. Por conta disso, o miserável e sua miséria são sempre percebidos como contingentes e fortuitos, um mero acaso do destino, sendo sua situação de absoluta privação facilmente reversível, bastando para isso uma ajuda passageira e tópica do Estado para que ele possa "andar com as próprias pernas". Essa é a lógica de todas as políticas assistenciais entre nós.
É esse mesmo raciocínio economicista, que abstrai sistematicamente os indivíduos de seu contexto social, que transforma a escola, pensada abstratamente e fora de seu contexto, em remédio para todos os males de nossa desigualdade. Na realidade, a escola, pensada isoladamente e em abstrato, vai apenas legitimar, com o "carimbo do Estado" e anuência de toda a sociedade, todo o processo social opaco de produção de indivíduos "nascidos para o sucesso", de um lado, e dos indivíduos "nascidos para o fracasso", de outro. Afinal, o processo de competição social não começa na escola, como pensa o economicismo, mas já está, em grande parte, pré-decidido na socialização familiar pré-escolar produzido por "culturas de classe" distintas.
Como toda visão superficial e conservadora do mundo, a hegemonia do economicismo serve ao encobrimento dos conflitos sociais mais profundos e fundamentais da sociedade brasileira: sua nunca percebida e menos ainda discutida "divisão de classes". O economicismo liberal, assim como o marxismo tradicional, percebe a realidade das classes sociais apenas "economicamente", no primeiro caso como produto da "renda" diferencial dos indivíduos e no segundo caso como "lugar na produção". Isso equivale, na verdade, a esconder e tornar invisíveis todos os fatores e pré-condições sociais, emocionais, morais e culturais que constituem a renda diferencial. Esconder os fatores não econômicos da desigualdade é, na verdade, tornar invisível tanto a gênese quanto a reprodução da desigualdade no tempo.
Para se compreender como as classes sociais são diferencialmente produzidas é necessário perceber como os "capitais impessoais" que constituem a hierarquia social e permitem a reprodução da sociedade moderna - o capital cultural e o capital econômico - são também diferencialmente apropriados. O capital cultural, sob a forma de conhecimento técnico e escolar, é fundamental para a reprodução tanto do mercado quanto do Estado modernos. É essa circunstância que torna as "classes médias", que se constituem historicamente precisamente pela apropriação diferencial do capital cultural, uma das classes dominantes desse tipo de sociedade. A classe alta se caracteriza pela apropriação, em grande parte pela herança de sangue, de capital econômico, ainda que alguma porção de capital cultural esteja sempre presente.
O processo de modernização brasileiro constitui não apenas as novas classes sociais que se apropriam diferencialmente dos capitais cultural e econômico. Ele constitui também uma classe inteira de indivíduos não só sem capital cultural nem econômico, mas desprovida, esse é o aspecto fundamental, das pré-condições sociais, morais e culturais que permitem essa apropriação. É essa classe social que designo em meus trabalhos de "ralé" estrutural, não para "ofender" essas pessoas já tão sofridas e humilhadas, mas para chamar a atenção, provocativamente, para nosso maior conflito social: o abandono social e político, "consentido por toda a sociedade", de toda uma classe de indivíduos "precarizados" que se reproduz há gerações enquanto tal. Essa classe social, que é sempre esquecida enquanto uma classe com uma gênese e um destino comum, só é percebida no debate público como um conjunto de "indivíduos" carentes ou perigosos, tratados fragmentariamente por temas de discussão superficiais, dado que nunca chegam sequer a nomear o problema real, tais como "violência", "segurança pública", "combate à fome", etc.
Afinal, a produção de indivíduos "racionais" e "calculadores", os tais que poderiam com a ajuda passageira do Estado depois "caminhar com as próprias pernas", não é um dado "natural", "caído do céu", como pensa o economicismo dominante, o qual, aliás, não é "privilégio" de economistas. Ele é produto de capacidades e habilidades transmitidas de pais para filhos por mecanismos de identificação afetiva por meio de exemplos cotidianos assegurando a reprodução de privilégios de classe indefinidamente no tempo. Disciplina, capacidade de concentração, pensamento prospectivo (que enseja o cálculo e a percepção da vida como um afazer "racional") são capacidades e habilidades da classe média e alta que possibilitam primeiro o sucesso escolar de seus filhos e depois o sucesso no mercado de trabalho. O que vai ser chamado de "mérito individual" mais tarde e legitimar todo tipo de privilégio não é um milagre que "cai do céu", mas é produzido por heranças afetivas de "culturas de classe" distintas, passadas de pais para filhos. A ignorância, ingênua ou dolosa, desse fato fundamental é a causa de todas as ilusões do debate público brasileiro sobre a desigualdade e suas causas e as formas de combatê-la.
Na realidade, essa classe, que soma 1/3 da população brasileira, é produzida e reproduzida como classe precarizada, pela não-incorporação dos pressupostos indispensáveis à apropriação nem de capital cultural nem de capital econômico. Ela é literalmente reduzida a "corpo" e é explorada pelas classes média e alta como "corpo" vendido a baixo preço, seja no trabalho das empregadas domésticas, seja como dispêndio de energia muscular no trabalho masculino desqualificado, seja ainda na realização literal da metáfora do "corpo" à venda, como na prostituição. Os privilégios da classe média e alta advindos da exploração do trabalho desvalorizado dessa classe são insofismáveis. Se pensarmos apenas nas empregadas domésticas, temos uma idéia de como a classe média brasileira, por comparação com suas similares européias, por exemplo, tem o singular privilégio de poder poupar o tempo das repetitivas e cansativas tarefas domésticas que podem ser investidas em trabalho produtivo e reconhecido fora de casa.
Além de se reproduzir como mero "corpo", incapaz de atender às demandas de um mercado cada vez mais competitivo baseado no uso do conhecimento útil para o mercado, essa é a classe também da escola (pública) brasileira de segunda classe e do serviço de saúde (público) de segunda classe. Essa é também a classe que é transformada em delinqüente e perigosa e julgada por outra classe (cuja truculência e insensibilidade social podem ser perfeitamente percebidas no magistral filme Juízo, de Maria Augusta Ramos). Essa é a nossa "luta de classes" intestina, cotidiana, invisível e silenciosa que só ganha as manchetes sob a forma "novelizada" da violência transformada em espetáculo e alimentada pelos interesses comerciais da imprensa.
Que o leitor não me entenda mal. É muito melhor assistencialismo do que nada, até mesmo um assistencialismo de curto prazo e míope como é inevitável com os pressupostos do economicismo. Mas isso só vai conseguir melhorar as condições de reprodução da "ralé" enquanto "ralé". Só vai "empurrar com a barriga" o grande drama histórico da sociedade brasileira desde o início de seu processo de modernização: a continuação da reprodução de uma sociedade que "naturaliza" a desigualdade e aceita produzir "gente" de um lado e "subgente" de outro. Isso não é culpa de governos. São os consensos sociais vigentes que elegem os temas dignos de debate na esfera pública assim como elegem a forma de (não) compreendê-los. No nosso caso, "escolhemos" debatê-los superficialmente e torná-los invisíveis. Nossa ojeriza histórica de nunca perceber e admitir conflitos sociais já teve várias causas e vários nomes. Hoje em dia é o economicismo hegemônico que esconde sistematicamente, mesmo para os setores potencialmente mais críticos de nossa classe média e alta, nosso conflito social mais fundamental, que é também a fonte de todos os nossos reais desafios como sociedade.
*Jessé Souza, doutor em sociologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora, é autor de A Construção da Subcidadania (UFMG)
DEU NO JORNAL DO BRASIL
POLÍTICA, VIRTUDE E ARTE DO BEM COMUM
Marco Maciel
Senador e membro da Academia Brasileira de Letras
Marco Maciel
Senador e membro da Academia Brasileira de Letras
"O estilo é o homem", sentenciou Louis Buffon, em 1753, no chamado século das luzes. Mas, ainda que seja difícil fixar o território do intelectual e do político, quem leu Formas de vida, de Spranger, ali encontrou essa distinção fundamental, conforme observa Josué Montelo: enquanto ao intelectual compete a interpretação da sociedade, cabe ao político sua direção.
Ao homem público, contudo, deve ser imputado compromisso moral, posto que o exercício da política não pode ser um fim, antes o instrumento de transformações que a nação reclama. A política, antes de constituir-se uma profissão, é um dom a exigir ação missionária, que prescreve, inclusive, o ofício da paciência. Não por outra razão, o Tomismo sinteticamente a conceitua como "ciência, virtude e arte do bem comum".
O conformismo e a passividade são incompatíveis com a dinâmica de nossos dias. Assim, incumbe ao político – como aprendi com o padre Lebret – procurar andar mais depressa que os acontecimentos, ver com antecipação a realidade e agir prontamente sobre os problemas e suas causas. A ele também se impõe assumir ônus, desprezar bônus e consagrar-se à causa abraçada.
Ademais, é preciso ter presente que a divergência é prova de vitalidade da política e, por envolver idéias, provoca discussão apaixonada. Nesse contexto, a firmeza das convicções, ainda que não sejam as nossas, deve ser apreciada, pois não constitui empecilho para o entendimento e a transigência. Na ausência dessas condições, a prática da política se transforma no exercício estéril do confronto, da denúncia e do impasse.
Cabe, portanto, ao político buscar sempre, entre o que nos separa, aquilo que pode nos unir, porque, se queremos viver juntos na divergência, princípio vital da democracia, estamos condenados a nos entender. Afinal, o êxito pode residir, muitas das vezes, não no resultado final, mas no percurso.
Para o Jefferson Péres, homem público, a política era doar-se à nação. Antes de eleger-se senador da República, exerceu por dois mandatos as funções de vereador em Manaus, nos quais deixou desvelado seu amor à primeira instância da política – o município, onde a cidadania se efetiva em toda sua intensidade, por ser a primeira célula da organização política do país.
É certo que a federação foi um anseio que medrou cedo em nossa evolução histórica. Não exagero se asseverar que a busca de um Estado federal antecedeu à própria luta pela transformação do Império em República. Lembre-se, a propósito, que o Manifesto republicano começa reconhecendo: "No Brasil, antes da idéia democrática encarregou-se a natureza de estabelecer o princípio federativo".
Faço tais considerações, uma vez que o Estado unitário foi modelo adotado até a proclamação da República, para citar palavras de Jefferson Péres em prol da descentralização do ato de governar:
"Durante muitos e muitos anos, a tradição dominante na historiografia, nos estudos políticos e sociais brasileiros enfatizava a perspectiva do Estado nacional e do poder central. Era como se o município, a localidade, o bairro, a rua onde viviam e vivem os brasileiros de carne e osso não existissem – ou, então, existissem apenas como projeção da vontade e das atividades do centro onisciente, onipresente e onipotente. Raríssimos foram os autores, como o alagoano Tavares Bastos, que levantaram suas vozes para afirmar que essa maneira de encarar o Brasil estava errada e era altamente prejudicial aos interesses históricos do nosso povo. Isto porque, em livros tão importantes quanto pouco lidos, infelizmente, até hoje – tais como Os males do presente, As esperanças do futuro, Cartas do solitário e o seu grande clássico A província (1870) – ensina Tavares Bastos que as sociedades livres, criativas, bem estruturadas e, se posso usar uma metáfora biológica, saudáveis, são aquelas que crescem da base para o topo e não vice-versa".
Honrar a memória dos ilustres homens públicos, como foi o senador Jefferson Péres, constitui não somente um gesto de reconhecimento pelo exemplo de civismo que nos legou, serve, igualmente, de símbolo para as novas gerações tão carentes de atitudes inspiradas em virtudes republicanas. São lições de quem fez do ato político uma reflexão diária. A "res publica" – coisa pública – preconizada por Cícero quer enfatizar que apenas o interesse público governa.
PARTICIPAÇÃO POLÍTICA
Fábio Wanderley Reis
Mestre Alessandro Pizzorno é o autor de um ensaio clássico sobre a participação política, publicado na Itália em 1966 ("Introduzione allo studio della partecipazione politica"). Nele, a perspectiva dominante nos estudos acadêmicos estadunidenses sobre o tema, especialmente sobre a participação eleitoral, é contraposta a outra empenhada em recuperar os efeitos da experiência dos partidos de massa socialistas e sua gradual inserção no jogo eleitoral da democracia. Enquanto nos Estados Unidos predominava a chamada teoria da "centralidade", que mostrava a conexão da participação eleitoral com traços variados tomados como dimensões reveladoras de maior ou menor proximidade a um suposto "centro" da sociedade (posição socioeconômica, escolaridade, experiência urbana, rede de contatos sociais), Pizzorno invocava a idéia marxista do desenvolvimento da "consciência de classe" como referência de um modelo alternativo: com a inserção na dinâmica das disputas eleitorais minando aos poucos o compromisso "instrumental" com a idéia da revolução anticapitalista, a adesão retórica ao ideário revolucionário se acomodava à convivência pragmática com o sistema vigente (às vezes sob a forma peculiar de "subculturas" associadas ao controle partidário continuado de localidades ou regiões "vermelhas") e com o empenho de mudá-lo gradualmente na direção do que resultou corresponder à socialdemocracia do pós-guerra.
Uma forma talvez mais correta de apreender a dinâmica geral, que eu mesmo andei propondo, envolve a articulação das duas perspectivas. O ponto decisivo é que o próprio desenvolvimento ou afirmação da "consciência de classe" e seu impacto sobre a participação político-eleitoral, que a socialdemocracia torna menos dramático, dependem de fatores que não são outros, na verdade, senão os que aponta a teoria da centralidade. Como as elaborações do próprio Marx destacavam, tratar-se-ia, em particular, de que condições materiais apropriadas viessem a permitir o acesso aos recursos intelectuais (em contraposição, por exemplo, à fórmula famosa sobre a "idiotia da vida rural") necessários à busca política de objetivos de transformação.
Clientelismo como mais do que mero escambo
Transposta para o campo das disputas eleitorais num caso como o brasileiro, marcado por intensa desigualdade social, essa visão integrada permitiria, entre outras coisas, dar conta de algo que o senso comum e as pesquisas mostram com nitidez: o fato de que as camadas mais inclinadas a ver a arena política como propícia à busca de interesses e mais aptas a persegui-los nessa arena, incluída a dimensão eleitoral, são as camadas socioeconômicas mais favorecidas, de melhores níveis educacionais e maior informação - enquanto as camadas menos favorecidas se orientariam com freqüência antes por imagens toscas e se revelariam, em consequência, passíveis de manipulações de um tipo ou outro. Daí que a maneira realista de esperar que se possa avançar na construção partidária e de instituições político-eleitorais efetivas, em geral, exija que se conte com identificações populares que conterão fatalmente alguns ingredientes do que se costuma designar negativamente como "populismo" - e que se possa dispor de tipos de populismo de melhor potencial institucional. Como salientei aqui há algum tempo, no caso de Lula e em alguns outros casos atuais do que se andou chamando de "populismo carismático" na América Latina, há quando nada a peculiaridade, em confronto com nosso populismo tradicional, da extração social mais autenticamente popular dos líderes.
Em entrevista realizada no ano passado (e divulgada em "Partecipazione e Conflito", 2008, 1, 0), Pizzorno é incitado a refletir de novo sobre o tema de seu velho ensaio. Não supreendentemente, temos múltiplas referências a fenômenos que adquirem pelo menos feições mais nítidas nos quarenta anos transcorridos: a importância muito menor da participação de tipo "clássico" nos partidos de massa, em que tende a predominar a atividade dos "funcionários"; o surgimento de "canais paralelos de representação", em que o desenvolvimento dos "grupos de pressão" (onde se trata de "portadores de interesses" autônomos e dispersos e não de representantes ou mandatários de outros) coexiste com movimentos sociais em que os titulares dos interesses são imaginados ou "construídos" (os pobres do mundo, o planeta Terra...) e em que "o trabalho ideológico necessário consiste justamente em definir os interesses buscados"; a intensificação do caráter profissional da atividade política, em particular com o que P. Mair e R. S. Katz têm chamado "partidos-cartel", vistos como novo episódio da evolução geral dos partidos.
Há também, contudo, na volta ao tema, a insistência em aspectos que se mostram afins a alguns dos traços importantes da participação via partidos de massa e seu apelo à solidariedade: o componente "ritual" (e interpessoal, intersubjetivo) da participação político-eleitoral, contra a ênfase, que Pizzorno considera excessiva, na busca "racional" de objetivos ou interesses; a diversificação "ética" dos partidos, atentos para temas que outros designam como "não-materiais"; e, entre outras coisas, a ênfase em que o próprio clientelismo (em contraste com a pura e simples compra de votos) seria antes um fenômeno de "pertencimento" (identificação, embora Pizzorno rejeite o termo) do que de mero escambo ou troca de interesses.
Essa visão do clientelismo será talvez de relevância para o exame apropriado das potencialidades institucionais (e mesmo político-eleitorais mais imediatas) do lulismo, com o distributivismo que alguns caracterizam de populista. Quanto aos movimentos e seus titulares "construídos" de interesses, o melhor exemplo dos riscos da "imaginação ideológica" no mundo das duras réplicas ao socialismo é provavelmente dado pela loucura das Farc. Cujos reveses, menos mal, vêm se acumulando.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
Fábio Wanderley Reis
Mestre Alessandro Pizzorno é o autor de um ensaio clássico sobre a participação política, publicado na Itália em 1966 ("Introduzione allo studio della partecipazione politica"). Nele, a perspectiva dominante nos estudos acadêmicos estadunidenses sobre o tema, especialmente sobre a participação eleitoral, é contraposta a outra empenhada em recuperar os efeitos da experiência dos partidos de massa socialistas e sua gradual inserção no jogo eleitoral da democracia. Enquanto nos Estados Unidos predominava a chamada teoria da "centralidade", que mostrava a conexão da participação eleitoral com traços variados tomados como dimensões reveladoras de maior ou menor proximidade a um suposto "centro" da sociedade (posição socioeconômica, escolaridade, experiência urbana, rede de contatos sociais), Pizzorno invocava a idéia marxista do desenvolvimento da "consciência de classe" como referência de um modelo alternativo: com a inserção na dinâmica das disputas eleitorais minando aos poucos o compromisso "instrumental" com a idéia da revolução anticapitalista, a adesão retórica ao ideário revolucionário se acomodava à convivência pragmática com o sistema vigente (às vezes sob a forma peculiar de "subculturas" associadas ao controle partidário continuado de localidades ou regiões "vermelhas") e com o empenho de mudá-lo gradualmente na direção do que resultou corresponder à socialdemocracia do pós-guerra.
Uma forma talvez mais correta de apreender a dinâmica geral, que eu mesmo andei propondo, envolve a articulação das duas perspectivas. O ponto decisivo é que o próprio desenvolvimento ou afirmação da "consciência de classe" e seu impacto sobre a participação político-eleitoral, que a socialdemocracia torna menos dramático, dependem de fatores que não são outros, na verdade, senão os que aponta a teoria da centralidade. Como as elaborações do próprio Marx destacavam, tratar-se-ia, em particular, de que condições materiais apropriadas viessem a permitir o acesso aos recursos intelectuais (em contraposição, por exemplo, à fórmula famosa sobre a "idiotia da vida rural") necessários à busca política de objetivos de transformação.
Clientelismo como mais do que mero escambo
Transposta para o campo das disputas eleitorais num caso como o brasileiro, marcado por intensa desigualdade social, essa visão integrada permitiria, entre outras coisas, dar conta de algo que o senso comum e as pesquisas mostram com nitidez: o fato de que as camadas mais inclinadas a ver a arena política como propícia à busca de interesses e mais aptas a persegui-los nessa arena, incluída a dimensão eleitoral, são as camadas socioeconômicas mais favorecidas, de melhores níveis educacionais e maior informação - enquanto as camadas menos favorecidas se orientariam com freqüência antes por imagens toscas e se revelariam, em consequência, passíveis de manipulações de um tipo ou outro. Daí que a maneira realista de esperar que se possa avançar na construção partidária e de instituições político-eleitorais efetivas, em geral, exija que se conte com identificações populares que conterão fatalmente alguns ingredientes do que se costuma designar negativamente como "populismo" - e que se possa dispor de tipos de populismo de melhor potencial institucional. Como salientei aqui há algum tempo, no caso de Lula e em alguns outros casos atuais do que se andou chamando de "populismo carismático" na América Latina, há quando nada a peculiaridade, em confronto com nosso populismo tradicional, da extração social mais autenticamente popular dos líderes.
Em entrevista realizada no ano passado (e divulgada em "Partecipazione e Conflito", 2008, 1, 0), Pizzorno é incitado a refletir de novo sobre o tema de seu velho ensaio. Não supreendentemente, temos múltiplas referências a fenômenos que adquirem pelo menos feições mais nítidas nos quarenta anos transcorridos: a importância muito menor da participação de tipo "clássico" nos partidos de massa, em que tende a predominar a atividade dos "funcionários"; o surgimento de "canais paralelos de representação", em que o desenvolvimento dos "grupos de pressão" (onde se trata de "portadores de interesses" autônomos e dispersos e não de representantes ou mandatários de outros) coexiste com movimentos sociais em que os titulares dos interesses são imaginados ou "construídos" (os pobres do mundo, o planeta Terra...) e em que "o trabalho ideológico necessário consiste justamente em definir os interesses buscados"; a intensificação do caráter profissional da atividade política, em particular com o que P. Mair e R. S. Katz têm chamado "partidos-cartel", vistos como novo episódio da evolução geral dos partidos.
Há também, contudo, na volta ao tema, a insistência em aspectos que se mostram afins a alguns dos traços importantes da participação via partidos de massa e seu apelo à solidariedade: o componente "ritual" (e interpessoal, intersubjetivo) da participação político-eleitoral, contra a ênfase, que Pizzorno considera excessiva, na busca "racional" de objetivos ou interesses; a diversificação "ética" dos partidos, atentos para temas que outros designam como "não-materiais"; e, entre outras coisas, a ênfase em que o próprio clientelismo (em contraste com a pura e simples compra de votos) seria antes um fenômeno de "pertencimento" (identificação, embora Pizzorno rejeite o termo) do que de mero escambo ou troca de interesses.
Essa visão do clientelismo será talvez de relevância para o exame apropriado das potencialidades institucionais (e mesmo político-eleitorais mais imediatas) do lulismo, com o distributivismo que alguns caracterizam de populista. Quanto aos movimentos e seus titulares "construídos" de interesses, o melhor exemplo dos riscos da "imaginação ideológica" no mundo das duras réplicas ao socialismo é provavelmente dado pela loucura das Farc. Cujos reveses, menos mal, vêm se acumulando.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
DEU NA FOLHA DE S. PAULO
UM POUCO TARDE
Valdo Cruz
BRASÍLIA - Lula parece ter acordado para aquela que pode ser chamada de mãe de todas as reformas: a política. Decidiu que seu governo vai elaborar um projeto na área e trabalhar para aprová-lo.
Em conversa com assessores, o presidente afirmou que não deseja ser considerado "omisso" no debate sobre o funcionamento dos partidos políticos no Brasil.
Até aqui, foi, porque relutava em assumir uma proposta. Costumava dizer que era a favor de uma reforma política, mas considerava não caber ao Executivo encabeçar as discussões sobre o tema.
Mudou de idéia, segundo auxiliares, depois de alguns episódios recentes que afetam seu governo: a guerra do PSC por diretorias na Petrobras e o envolvimento de políticos em desvio de dinheiro público descoberto pela Polícia Federal na Operação João de Barro.Lula delegou aos ministros Tarso Genro (Justiça) e José Múcio (Relações Institucionais) a elaboração do projeto de reforma política do governo e pretende enviá-lo ao Congresso em agosto.
Será um projeto de lei, para facilitar sua aprovação, em vez de uma emenda constitucional. Vai propor financiamento público de campanha, fidelidade partidária e votação para deputados em lista elaborada pelos partidos.
Medidas que podem fortalecer os partidos políticos, hoje agrupamentos de interesses individuais e regionais, que levam o governo de plantão a negociar no varejo para aprovar projetos de sua autoria.
Resultado: o Palácio do Planalto tornou-se um balcão de negócios, com cargos e verbas na prateleira à espera de parlamentares dispostos a trocar esses mimos por votos no Congresso Nacional.
Por isso mesmo, os bons conselheiros sempre recomendaram que a primeira iniciativa de um presidente no Brasil deveria ser aprovar uma reforma política. Tudo ficaria mais fácil.Lula, como outros, não seguiu o conselho. Deu no que deu. Um escândalo político atrás do outro.
Valdo Cruz
BRASÍLIA - Lula parece ter acordado para aquela que pode ser chamada de mãe de todas as reformas: a política. Decidiu que seu governo vai elaborar um projeto na área e trabalhar para aprová-lo.
Em conversa com assessores, o presidente afirmou que não deseja ser considerado "omisso" no debate sobre o funcionamento dos partidos políticos no Brasil.
Até aqui, foi, porque relutava em assumir uma proposta. Costumava dizer que era a favor de uma reforma política, mas considerava não caber ao Executivo encabeçar as discussões sobre o tema.
Mudou de idéia, segundo auxiliares, depois de alguns episódios recentes que afetam seu governo: a guerra do PSC por diretorias na Petrobras e o envolvimento de políticos em desvio de dinheiro público descoberto pela Polícia Federal na Operação João de Barro.Lula delegou aos ministros Tarso Genro (Justiça) e José Múcio (Relações Institucionais) a elaboração do projeto de reforma política do governo e pretende enviá-lo ao Congresso em agosto.
Será um projeto de lei, para facilitar sua aprovação, em vez de uma emenda constitucional. Vai propor financiamento público de campanha, fidelidade partidária e votação para deputados em lista elaborada pelos partidos.
Medidas que podem fortalecer os partidos políticos, hoje agrupamentos de interesses individuais e regionais, que levam o governo de plantão a negociar no varejo para aprovar projetos de sua autoria.
Resultado: o Palácio do Planalto tornou-se um balcão de negócios, com cargos e verbas na prateleira à espera de parlamentares dispostos a trocar esses mimos por votos no Congresso Nacional.
Por isso mesmo, os bons conselheiros sempre recomendaram que a primeira iniciativa de um presidente no Brasil deveria ser aprovar uma reforma política. Tudo ficaria mais fácil.Lula, como outros, não seguiu o conselho. Deu no que deu. Um escândalo político atrás do outro.