domingo, 13 de julho de 2008

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS


O MST DA ORDEM
José de Souza Martins*

O que parece confuso e anacrônico no ideário do movimento e da CPT é, na verdade, a economia moral que os rege

A reforma agrária que o MST e a Pastoral da Terra querem não é a reforma agrária que o Estado brasileiro quer e nem mesmo a reforma agrária que o presidente Lula e o PT podem e mesmo querem. Desencontros como esses, no passado recente, eram explicados, pelos mesmos protagonistas, como desencontros entre esquerda e direita. Diagnóstico fácil e superficial que embaralhava, ideologicamente, as causas dos problemas e a busca de soluções. O embaralhamento agora é maior: o MST e a CPT estão na base do apoio decisivo à ascensão política de Lula e do PT, que não obstante ainda os consideram seu partido e seu governo. Embora não o sejam e nunca tenham sido, porque filhos do contrato laboral moderno e não da posse familista e pré-moderna da terra, que são mundos opostos e inconciliáveis. MST e CPT não compreendem esse bloqueio histórico. Sua luta não é só pela terra. É, também, luta contra aquilo que consideram componentes do mesmo sistema econômico de que o latifúndio é o cerne, como a monocultura, o agronegócio, a globalização.

O que parece confuso e anacrônico no ideário do MST e da CPT constitui, na verdade, o sistema conceitual da economia moral que os rege e ordena sua crítica dos efeitos socialmente devastadores da economia moderna sobre populações que estão apenas no limiar da modernidade.

Demarcam, assim, o mundo de referência do seu clamor como território da sua legitimidade política, o que com freqüência os coloca em confronto com a legalidade e a conseqüente reação do Estado. Foi o que se viu nas últimas semanas, no Pará e no Rio Grande do Sul. No Pará, a condenação a 2 anos e 5 meses de prisão de um advogado da CPT e de um ex-coordenador da Federação dos Trabalhadores na Agricultura, pela invasão do Incra de Marabá, em 1999. No Rio Grande do Sul, o pedido do Ministério Público de desocupação de fazenda invadida, acompanhado de considerações sobre o caráter supostamente subversivo do MST (e do Via Campesina) por atos de desrespeito à lei e à ordem jurídica, até com o pedido de sua extinção.

Nos dois casos, as organizações gêmeas defrontam-se com a reação do aparelho de Estado à suposta ultrapassagem da linha de contraposição do legítimo ao legal. O documento do MP, aliás, assinala que a relação entre o MST e o presidente Lula não se sobrepõe à prevalência da lei e da Constituição, na qual o Ministério Público se apóia para definir sua denúncia. O Estado se funda na lei e a ela se sujeita. O limite do MST é a lei; mas a forma de sua demanda é o que a lei não contempla. Portanto, como inovar e transformar jurídica e politicamente? Pelos partidos, diz a lei; pela transgressão da lei, dizem as organizações e movimentos populares, enfraquecidos e abandonados por seu próprio partido, o PT, que de fato os tutela, mas não os representa.

Se o MST e a CPT têm seus equívocos, têm também suas razões. Por falta de apreço pelo estudo, pela leitura séria e pela teoria, da parte de seus líderes, claudicam e até falham na compreensão do que são e fazem e no convencimento da sociedade inteira quanto aos males sociais da monocultura e aos benefícios sociais da agricultura familiar. Essa é nossa alternativa keynesiana para o desemprego rural decorrente da modernização agrícola. Seria o meio de criar, nesta era de oportunidades agrícolas, uma economia mista de agricultura familiar moderna e agronegócio, uma economia abrangente e eficiente, que criaria renda e emprego e beneficiaria a economia inteira.

Contentam-se com inchaços estatísticos relativos às invasões de terra. Ainda agora o Nera - Núcleo de Estudos da Reforma Agrária, da Unesp, alinhado com o MST e a CPT, divulga relatório em que mostra que o número de invasões de terra no Brasil, nos últimos 19 anos, que foi de 7.500, mais de uma invasão por dia, é bem maior do que essas próprias organizações têm divulgado. Durante o regime militar, o crescente registro de conflitos fundiários, pela CPT, servia para mostrar o fracasso da reforma agrária decretada e descumprida pelo próprio governo. Naquela época, cada um dos conflitos ainda era propriamente um caso específico, a maioria dos quais não dizia respeito a invasões, mas à resistência na terra de trabalho contra a concentração fundiária, a grilagem e a expulsão dos trabalhadores rurais, sobretudo na região amazônica.

Agora já não se trata apenas de uma disputa pela terra, embora a ideologia do MST e da CPT ainda seja essa. Trata-se agora de encontrar alternativa para a marginalização que alcançou essas populações e seus descendentes. A concentração fundiária dos anos 60 e 70 e a correlata modernização agrícola criaram uma imensa massa de órfãos do crescimento econômico, sem a contrapartida, como ocorrera entre os anos 30 e 50, de uma indústria dinâmica capaz de absorver os excedentes populacionais oriundos do desenraizamento rural. As lutas dos trabalhadores rurais tentam criar o que o Estado não criou nem o governo do PT está criando, apesar de seus compromissos morais e políticos com o MST e a CPT.

As estatísticas recém-divulgadas pelo Nera não confirmam a ampliação do alcance da luta pela terra. Repetidas invasões de uma mesma fazenda, ao longo do tempo, são contadas como diferentes casos, embora sejam apenas episódios de conflitividade no interior de um único e mesmo conflito. Trata-se de um indicador de intensidade e não de quantidade. Portanto, de fato, o número de invasões é inferior ao anunciado. O problema político que se põe é outro: por que a conflitividade é maior em alguns casos, como o do Pontal do Paranapanema, e menor em outros? Porque ela foi transformada numa questão política e partidária, que se sobrepõe à questão social, na busca, no passado idílico, das raízes do futuro utópico. Apenas confirma que a luta se institucionalizou, tornou-se um rito da ordem, diversamente do que acusam o MP do Rio Grande do Sul e a Justiça do Pará. O conflito, na sociedade moderna, é constitutivo da mesma modernidade de que MP e Justiça são expressões.


*José de Souza Martins é professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP

DEU EM O GLOBO

O COMISSÁRIO FONTANA E O HABEAS CORPUS
Elio Gaspari

Veio da nação petista um sinal de que há comissários incomodados com o estado de direito. Depois que o ministro Gilmar Mendes mandou soltar o banqueiro Daniel Dantas, o líder do governo na Câmara, Henrique Fontana, disse o seguinte:

"Eu acho que o Congresso precisa examinar essa questão do habeas corpus para evitar novos casos como o do Cacciola. Do jeito que está formulada essa norma do habeas corpus, acaba favorecendo os ricos e prejudicando os pobres."

Ignorância de primeira associada a demagogia de segunda. O doutor começou sua atividade partidária em 1984, aos 24 anos. Não conviveu com os coronéis dos inquéritos da ditadura que seqüestraram o habeas corpus dos brasileiros por 20 anos.

O instituto do habeas corpus está formulado na Constituição sem qualquer "jeito" ou "recurso não contabilizado". O texto é claro. Ele se destina a proteger o cidadão que "sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder".

O habeas corpus não inocenta quem dele se beneficia. Era isso que não entrava na cabeça dos generais e parece não ter entrado direito na de Fontana. Trata-se de garantir ao cidadão o direito de não ser constrangido por "ilegalidade ou abuso de poder". Em 2000, o ministro Marco Aurélio Mello soltou Salvatore Cacciola porque entendeu que ele devia responder em liberdade ao processo em que era réu. (Cinco dias depois, o STF mandou prendê-lo de novo, e ele se escafedeu.) Mello não julgou Cacciola.

No caso de Daniel Dantas, Gilmar Mendes entende que o banqueiro esteve submetido a constrangimento ilegal. Se a sua primeira decisão ficava em pé, a segunda é mais difícil de ser entendida. Admitindo-se que esteja errado, depois do recesso, o Supremo Tribunal Federal poderá revogar a medida. De qualquer forma, é o ministro Gilmar Mendes quem está no pano verde, não "essa norma do habeas corpus".

O desconforto do deputado Henrique Fontana com o habeas corpus ecoa os coronéis da anarquia militar. Cabe-lhe uma lição, deixada pelo marechal Castello Branco diante das reclamações dos companheiros que não queriam cumprir o habeas corpus que mandava libertar Miguel Arraes. Ele escreveu: "Se não soltá-lo, será muito pior do que soltá-lo". O general Costa e Silva chamou de "homúnculo" o ministro Álvaro Ribeiro da Costa, presidente do STF. A mutilação do habeas corpus foi um dos itens da anarquia militar que desembocou na ditadura do Ato Institucional nº 5, em 1968.

Só em 1977 o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Raymundo Faoro, recolocou "essa norma do habeas corpus" no centro da discussão que levaria à restauração democrática. Seu trabalho foi essencialmente didático: "O habeas corpus não é só uma reclamação da sociedade civil, mas uma necessidade do próprio governo, pois a boa autoridade só pode vigiar a má autoridade pelo controle das prisões, proporcionado pelo habeas corpus."

O surto do comissário Fontana pode parecer um desabafo de cidadão contrariado. Tudo bem, mas os coronéis da ditadura também eram cidadãos e estavam claramente contrariados. Deu no que deu.

DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


O CAPITAL INICIAL
Luiz Carlos Azedo


O governo estimulou a volta do dinheiro brasileiro que havia sido aplicado no exterior, como uma forma, inclusive, de enfrentar a crise cambial que quase levou o país à breca


Não vou me estender sobre a crise instalada no Judiciário por causa da decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, que concedeu habeas corpus ao banqueiro Daniel Dantas. Quem pode mais, pode menos. Se depender da lei da gravidade, prevalecerá a mais alta Corte do país, apesar do esperneio de juízes federais, procuradores da República e delegados da Polícia Federal. Nesse imbróglio não pode prevalecer o “prendo e arrebento” como forma de purgar os males da sociedade, uma fórmula simpática à opinião pública farta de tanta corrupção e privilégios, mas que aponta na direção de práticas autoritárias e atitudes até fascistas. O que preocupa, nesse aspecto, é o desgaste do Poder Judiciário, que se soma ao do Congresso Nacional. O poder das duas instituições não emana da força econômica – nem da bruta –, mas do respeito das demais autoridades e da legitimidade perante a sociedade.

Acumulação

Audaciosos, o banqueiro Daniel Dantas e o empresário Eike Batista cavalgam contradições do nosso capitalismo tardio, como veremos a seguir. Adam Smith chamou o fenômeno de “acumulação prévia”, um eufemismo para classificar a forma como o capitalismo surgiu no mundo. Ninguém se torna capitalista sem capital inicial acumulado. Uma forma de acumulação, na gênese capitalista, foi a expropriação da produção familiar, artesanal, camponesa e corporativa, que apartou os trabalhadores da propriedade dos meios de produção e ampliou a divisão social do trabalho. Os grandes capitalistas, porém, surgiram no mercantilismo, com a violenta exploração colonial, por meio dos saques, do tráfico negreiro, da especulação comercial e do monopólio mercantil.

O Brasil não existiria fora desse contexto. Os Estados Unidos também. Mas há um ingrediente que nos diferencia muito: aqui não havia uma ética protestante balizando as relações da sociedade, para o surgimento de um Henry Ford, na segunda Revolução Industrial, ou de um Bill Gates, na moderna sociedade da informação. O que havia era o nosso velho patrimonialismo ibérico, ainda hoje redivivo, que nos legou um capitalismo marcado pelo favorecimento do Estado ao surgimento das fortunas familiares. É difícil encontrar uma empresa tradicional no Brasil, por mais moderna que seja, que em algum momento não tenha dependido da alavancagem política dos seus negócios. Nosso modelo de substituição das importações, fomentado pelo Estado, teve por base a articulação entre capital estrangeiro, empresariado nacional e investimentos governamentais.

Estabilização

Esse tripé do nosso desenvolvimento, porém, foi para o ralo com o choque do petróleo e a terceira Revolução Industrial. Recessão, crise de financiamento do Estado e hiperinflação. Na década de 1980, o país estava em estagnação econômica e à beira do colapso financeiro. Foi nesse contexto que a remessa ilegal de recursos para o exterior por pessoas físicas e jurídicas se generalizou. Foi uma espécie de autodefesa do capitalismo brasileiro contra a ameaça de bancarrota, num momento em que o modelo autárquico de substituição de importações havia se esgotado e a abertura da economia era um imperativo da globalização.

Quando houve o Plano Real, a política de estabilização da economia não teria sucesso sem o programa de privatizações, que uma década antes havia sido preconizado por Inácio Rangel, um economista do BNDES de formação muito heterodoxa. O Estado não tinha como financiar seu próprio funcionamento, e a retomada do desenvolvimento exigia a modernização dos serviços públicos e da infra-estrutura do país, mas não havia recursos públicos para isso, como aliás ainda não há. A quebra do monopólio do petróleo e da exploração mineral e a venda de estatais, como a Vale do Rio Doce, das siderúrgicas e das teles foram uma via de saneamento das finanças públicas e de captação de investimentos privados.

Nesse contexto, o governo estimulou a volta do dinheiro brasileiro que havia sido aplicado no exterior, como uma forma inclusive de enfrentar a crise cambial que quase levou o país à breca. É nessa ambígua e sinuosa fronteira de oportunidades que o empresário Eike Batista e o banqueiro Daniel Dantas amealharam agressivamente suas fortunas, um correndo os riscos do garimpo, da mineração e do mercado petrolífero, outro repatriando capitais e transformando-os em investimentos financeiros. A acumulação inicial de capital é sempre uma aventura, nem sempre bem-sucedida.

DEU NA FOLHA DE S. PAULO


DOIS HOMENS, UMA SENTENÇA
Eliane Cantanhêde


BRASÍLIA - Desde o regime militar não se ouvia falar tanto no "Estado democrático de Direito". Antes, clamando a sua volta. Hoje, usando seu santo nome em vão.

Ao conceder habeas corpus para o banqueiro Salvatore Cacciola, em 2000, o ministro do Supremo Marco Aurélio Mello disse que decidia "tecnicamente". Cacciola voou pela janela e foi curtir a vida na Itália. Se não fosse passear em Mônaco, estaria livre, leve e solto até hoje.

Agora, ao conceder habeas corpus duas vezes para o banqueiro e muitas outras coisas Daniel Dantas, o ministro Gilmar Mendes corre o risco de o novo pássaro, mesmo sem ter a cidadania italiana, também voar. Mais vale um pássaro na gaiola do que dois voando, especialmente em direções contrárias: um voltando, outro fugindo.


Nos dois casos, Mello-Cacciola e Mendes-Dantas, suas excelências sacaram erudição e conhecimento jurídico. O problema é que o povão está cansado de lero-lero e de ver os céus coalhados de gaviões e as gaiolas entupidas de pardais.

Daniel Dantas, Celso Pitta e Naji Nahas foram colocados atrás das grades sob euforia pública, mas três dias depois o foco já tinha se desviado deles, ou do que eles significam, para a guerra de guerrilhas entre Judiciário e Executivo, Supremo e Polícia Federal.

O curioso é que Marco Aurélio e Gilmar Mendes, ex e atual presidente do Supremo, são adversários viscerais há anos. Mas dão a mesma sentença e libertam personagens de currículos controversos, milionários e inimigos da opinião pública com a mesma justificativa: o fundamental é cumprir a lei. Se a lei não é boa, dizem, mude-se a lei.


Então, mude-se a lei! Porque há uma distância monumental entre as alegações jurídicas e o desejo sufocante da sociedade por justiça real, ética, igualdade.


Que vingue o Estado democrático de Direito, desde que... a lei valha para todos -os que têm banco e os que dormem embaixo do banco.

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS


ENTREVISTA

'ADMITAMOS: SOMOS CORRUPTOS'


O Brasil ganharia se assumisse a queda que tem para a transgressão e os ilícitos, afirma Bolívar


Pedro Doria


A história de Daniel Dantas se confunde com a do Brasil nos últimos 15 anos. Aluno dileto do economista Mário Henrique Simonsen, foi cogitado para o Ministério da Fazenda no governo Fernando Collor e teve atuação de destaque na venda de estatais. É também uma história passada na iniciativa privada, sempre sinuosamente entrelaçada com a política e o governo. Primeiro, pelas mãos de Antonio Carlos Magalhães, conterrâneo e protetor político. Então, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, nas estreitas relações com economistas ligados ao Plano Real, como Pérsio Arida e Elena Landau. Agora, no governo Lula, com petistas como Luiz Eduardo Greenhalgh e José Dirceu.


Dantas dominou manchetes e conflitos acionários, cultivou inimigos poderosos na iniciativa privada e no Planalto. Preso pela Polícia Federal, provocou uma briga jamais vista, com procuradores e juízes federais se levantando contra o Supremo Tribunal Federal. É uma história que insinua profundos veios de corrupção nas entranhas do Estado. “O Brasil é essencialmente corrupto e precisamos encarar isso”, diz o cientista político Bolívar Lamounier, autor, com outros estudiosos, de Cultura das Transgressões no Brasil (Ed. Saraiva). “Vivemos há cem anos a ilusão de que com o crescimento econômico e a melhoria educacional tudo vai melhorar. O País está mais rico e, ao que tudo indica, mais corrupto. Existem avanços. O Ministério Público, a Polícia Federal, a própria Justiça. Mas, na avaliação do professor, temos uma política pior.


Daniel Dantas tem demonstrado habilidade de criar uma teia de sustentação em todos os governos. O que isso diz a respeito do Brasil?

É o chamado capitalismo político. Ele faz crescer sua fortuna pelos contatos políticos e o recebimento de informação privilegiada. O Brasil tem uma formação patrimonialista, ou seja, o Estado é o verdadeiro detentor da riqueza. Seu poder é avassalador. O emaranhado jurídico é tal que se tornou impossível manter uma empresa sempre em ordem. Daí a capacidade de pressão do governo ser devastadora. A influência do Estado em setores por natureza oligopólicos como telecomunicações, energia ou aviação é ainda maior. Desse jeito, um sujeito que tenha capacitação técnica e audácia, como Daniel Dantas, precisa de contatos políticos para se sustentar empresarialmente. É evidente que o caso dele, que dizem ter recorrido até a empresas de espionagem, é extremado. Mas todo grande empresário brasileiro precisa de uma relação simbiótica com o governo. Porque a mão do governo está presente em tudo.


Essa é a origem da corrupção no Brasil?

O problema da corrupção é muito mais profundo. Hoje estamos muito desarmados intelectualmente para compreender suas origens. O que nos sobra são dois consensos. O primeiro é de que a corrupção é generalizada na sociedade e todos discordamos do comportamento de todo mundo. O segundo é que a impunidade é ampla. Há uma total incapacidade de aplicar as leis. Se fôssemos punir, segundo o que manda a lei, toda a corrupção que há no País teríamos que pôr na cadeia metade da população. O que está acontecendo, agora, é uma tentativa de sair dessa síndrome da impunidade. Por isso um juiz federal manda prender, no Supremo mandam soltar, o juiz pede novamente a prisão. Mas daí pode haver um excesso do juiz federal, uma arbitrariedade, criando um clima de insegurança jurídica.

Por que não debelamos a corrupção?

Porque a enxergamos por uma ótica otimista. Atribuímos tudo ao passado: à colonização, aos portugueses, à formação do País. É uma análise evolucionista. Temos a impressão de que vamos em direção a algo melhor. O que atrapalharia seriam os grilhões do passado. Isso não é necessariamente verdade. Essa leitura esconde outra premissa, o conceito do bom selvagem de Jean-Jacques Rousseau. O homem é bom, mas a sociedade o corrompe. No Brasil, a elite é ruim, mas o povo é essencialmente bom. Essa impressão é profundamente superficial. O Brasil é essencialmente corrupto. A verdade é a seguinte: nada indica que estamos a caminho de um mundo melhor. Corrupção e clientelismo não estão dando sinais de terem diminuído. Acho que estão aumentando. Quando o governo diz que temos mais informação sobre corrupção e só por isso ela aparece mais, isso soa como uma afirmação tão válida quanto qualquer outra. Só poderia aceitá-la se o governo tivesse uma lista com todos os corruptos e quanto desviaram ao longo dos tempos. No Brasil, a transgressão é generalizada e ocorre sempre por motivos econômicos. Há casos passionais, mas esses existem em qualquer sociedade e são a exceção. Estelionato, assalto, corrupção, o crime brasileiro tem causas econômicas.

Quais as causas da corrupção brasileira?

São três. A primeira é o crescimento econômico. Lá nos anos 50, desenvolvimentistas, acreditávamos que o enriquecimento do País levaria a uma população mais bem educada e enfim teríamos um Estado impessoal no qual todos que quebrassem a lei seriam punidos. O Brasil enriqueceu e nada disso aconteceu. Sempre que há um momento de crescimento econômico e modernização, surgem novas oportunidades de corrupção. É assim em todo lugar, não só nas nações pobres. Na França ou nos EUA, também. É quando aparece o conluio de grupos para fraudar licitações promovidas pelo Estado, por exemplo. Porque são oportunidades óbvias, envolvendo grandes quantias. Mesmo nas nações mais liberais, quando a economia cresce o Estado contrata muitos serviços envolvendo valores altos. Quando um país passa por uma grande transformação econômica, como é nosso caso, a tendência aumenta. No caso das privatizações, por exemplo, grandes somas passaram de uma mão para a outra e a corrupção foi inevitável, por mais que existissem controles. Na Rússia foi muito pior. O Japão tem uma corrupção monstro até hoje. A Coréia do Sul, também. São governos que concentram muito poder. A China se tornou capitalista faz quanto tempo? Vinte anos. E já ostenta um número grande de bilionários. Mesmo considerando o ritmo de crescimento chinês, essa riqueza veio como? Não pelo mérito.


E a segunda causa?

Mobilidade social. Nosso País tem 200 milhões de pessoas, metade delas muito carentes, a outra metade louca para melhorar de vida. Há muita mobilidade social. Quem diz que, no Brasil, o pobre nasce e morre pobre está no mundo da lua. Qualquer pequeno movimento da economia provoca mudanças imediatas, toda oportunidade aqui é aproveitada, pois o mercado é imenso e tem carências enormes. Nos últimos meses, por exemplo, quando o crédito para automóvel se estendeu, todo mundo comprou imediatamente sem se preocupar com quantas prestações ia pagar ou com o trânsito ruim. Automóvel facilita a vida e é um símbolo de status. O brasileiro tem uma vontade incrível de melhorar de vida, de ter melhor situação que a que seu pai teve. Junte as duas questões, oportunidades de corrupção e a vontade de melhorar de vida, e una isso à terceira causa: as normas brasileiras são frouxas.

É nossa herança portuguesa?


As normas morais, no Brasil, sempre foram fraquíssimas. Comparado à Europa, tivemos, por exemplo, uma Igreja muito fraca. O Direito, até há muito pouco tempo, não chegava a boa parte do País. As normas sociais são débeis e o Estado é incapaz de aplicá-las. A origem disso é o de menos. Nosso problema não é o passado, é o presente. Voltemos a Rousseau. Há algumas décadas, a Igreja no Brasil era fraca, mas muito reacionária. Defendia a propriedade, o latifúndio. Hoje, a Igreja é outra, acredita em Rousseau. Essa visão de que o povo é essencialmente bom, mas corrompido pelo ambiente, se espalhou por todos os setores da sociedade. É uma mentalidade que impede a aplicação da lei. Só a defesa do altruísmo é legítima. Um grupo que defenda seus interesses é considerado imoral. A palavra “interesse” soa suja, sugere um indivíduo calculista. Acreditamos em Papai Noel. Cremos que as pessoas são boas por princípio. Nos EUA, a cabeça deles não é Rousseau. É Thomas Hobbes. Para eles, as pessoas são más. É preciso vigiar o comportamento a toda hora. É preciso cumprir a lei, porque se não cumprir, a transgressão será generalizada. Polícia não tem que achar que as pessoas são boas ou são más. Tem é que olhar transgressão. A política tem que lidar com a probabilidade de certos comportamentos ocorrerem e se prevenir. Achamos que tudo que deu errado no Brasil tem uma origem social em algum ponto do latifúndio, da família patriarcal ou do que quer que seja. É ingenuidade. Nós somos uma sociedade de 200 milhões de pessoas, completamente urbana e pobre. É um País diferente.

Gilberto Freyre está obsoleto?

Completamente. No tempo dele, acreditava-se naquela idéia de que geração de riqueza levava a um mundo mais perfeito. Vinte anos atrás havia uma discussão entre a esquerda e o malufismo, em São Paulo, se a polícia devia atuar preventiva ou repressivamente. Que discussão é essa? A polícia tem que atuar, só isso. Tínhamos que estar muito mais preparados em termos jurídicos e policiais para atuar quando há transgressão. Não se combatem valores culturais ou a propensão a certos comportamentos. Você combate infrações graves da norma legal. Nós não entendemos a gravidade da situação que o Brasil enfrenta. O nível de corrupção pode aumentar. Veja o exemplo paralelo, a violência urbana. Muitos teóricos falam como se fosse uma coisa de momento que, mais à frente, vai desaparecer. Mas como vai desaparecer? O país é urbano, tem periferias imensas, o tráfico de drogas atua em larga escala, não há nenhuma medida para combater o mercado da droga, que é o consumidor, ou a entrada da droga, nas fronteiras. A violência não vai desaparecer espontaneamente. O Brasil não enfrenta a transgressão.


Ricos não iam para a cadeia antes.

É verdade. Antes havia uma diferença de classes muito grande,. Você prendia o pobre, mas não o rico. Não estou negando que a Polícia Federal esteja mais eficiente. A mudança começa com a Constituição de 1988. Antes dela, os procuradores eram subordinados aos juízes. Ela deu autonomia ao Ministério Público e uma geração nova de procuradores veio com vontade de investigar. Por sua vez, isso fez com que muitos juízes também se mexessem. O fim da ditadura despertou, dentro da Polícia Federal, um debate. Estavam acostumados a agir sob os generais, o que a democracia representaria para eles? Demoraram uma década até encontrar um rumo. Ajudados pelo Ministério Público, que começou a investigar problemas em tudo quanto é área, ela encontrou sua vocação. Não foi só isso que mudou. Inflação corrói a sociedade, força todos ao comportamento criminoso. No início dos anos 90, ninguém comprava um imóvel, em São Paulo, sem uma mala cheia de dólares. Isso criou um câmbio negro e um mercado de ilícitos do qual todos participavam. Não há mais aquela inflação. A perna que não andou, nesse processo, foi a da CPI. Ela acaba se politizando tanto que fica inócua na maioria das vezes. O caso do mensalão é uma exceção. Levou 40 nomes para o Supremo.


Qual o problema do Congresso?

Câmara e Senado estão numa mediocridade como nunca vi. Vivemos uma entressafra de líderes políticos. No tempo da Constituinte você, sem dificuldades, punha no papel 20 nomes de imensa importância no cenário político nacional. Hoje, não dá. Não há incentivo para ser político. Vão chamar você de ladrão, sua família vai ficar chateada. O indivíduo que tem uma boa formação ganhará o triplo em outra profissão e terá fim de semana. Quando o crédito do político cai para quase zero, nasce um círculo vicioso. Ou você atrai corruptos ou gente despreparada. O Executivo não tem projeto. E os partidos não têm projeto. O resultado é que, sem ter o que fazer, deputados e senadores partem para a investigação. O Executivo reage com acordos políticos. A política no Brasil se resume a isso. Só.

Antes da ditadura, partidos como UDN e PTB de fato representavam setores da sociedade. O senhor não acha que hoje isso deixou de acontecer?


A UDN era o partido da classe média urbana, aquela gente que ganhava a vida duramente e não esperava uma aposentadoria generosa. Ainda existe essa classe média urbana, muito maior hoje. É um contingente de pessoas que paga o serviço duas vezes: o imposto para a educação e a educação na escola particular. Era um partido liberal. O DEM, hoje, não é um partido liberal. Por isso mudou de nome. Um partido liberal, no Brasil, teria que vir de São Paulo ou das grandes capitais. Não é o caso. O PSDB. O que é? É o partido da reforma feita no governo Fernando Henrique. Mas não descobriu uma agenda própria depois disso. E o PT? Alguns dizem que é representativo. Não sei de quê. Qual a doutrina econômica do PT? Vimos que não tinha. O partido chegou ao poder e desdisse tudo. Não tinha projeto. E desconfia do capitalismo. Tem uma cabeça nacionalista dos anos 50, com preconceito contra o setor privado. Não é à toa que a doutora Dilma é o braço forte do governo. Os partidos, no Brasil, foram dissolvidos em 30, em 37 e em 64. Os militares acreditavam que as origens da corrupção estava neles. Dissolveram e tentaram impor um sistema bipartidário como o britânico. Quando a democracia voltou, o País era completamente diferente e os partidos de antes não queriam dizer mais nada. Ficou um vácuo. Em 1989, quando tivemos a primeira eleição presidencial, houve 22 candidatos. Eram 21 partidos de oposição. E nenhum dos partidos grandes se saiu bem. É sinal de que não representavam mais os anseios da população.

Qual a responsabilidade da ditadura pela atual corrupção?

Quando os militares instauraram o regime, diziam “nós vamos combater a corrupção”. Além de se intrometerem no sistema partidário que tinha seu valor, criaram um governo dez vezes mais concentrado. Na pressa de desenvolver o País, contrataram obras públicas faraônicas. Transformaram o País apoiados num crescimento de 8% a 10% ao ano. Posso bem imaginar quanto de superfaturamento houve naqueles 21 anos.

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)


NÃO É NA DINAMARCA, É AQUI
Alberto Dines


Agora é Eike Batista, o Midas que transforma em grandes negócios tudo o que toca. Nos últimos dias a cena esteve ocupada pela telenovela de fraudes e trambiques protagonizada por Daniel Dantas que já se arrasta há mais de uma década. Junto com ele a Polícia Federal prendeu o especulador Naji Nahas (que quebrou a Bolsa de Valores do Rio no fim dos anos 80) e levou junto o ex-prefeito Celso Pitta, filhote de Paulo Maluf, o mesmo que anda às voltas com a Justiça desde que experimentou os prazeres do poder.

O Estado brasileiro precisa de uma colonoscopia urgente para avaliar o calamitoso estado dos seus intestinos. Precisa de alguém apto a fazer a anamnese (histórico clínico) minimamente confiável. Acontece que o governo – administrador e defensor do Estado – é uma entidade inconfiável porque além de paciente é também agente. Enfermo e enfermidade: sente dores, sintomas, mas não tem condições de tratá-los.

A sucessão de conflitos e contenciosos que estouram a cada doze horas originam-se na própria incapacidade do Executivo de sobrepor-se aos litigantes simplesmente porque ele também litiga nos desvãos. É parte, portanto suspeito.

A pressa da Polícia Federal em colocar o "gênio" Daniel Dantas no xilindró tem a ver com a consumação dos acordos destinados a criar a super-tele, a operadora de telefonia resultante da fusão OI-Brt (Brasil Telecom), incentivada e empurrada pelo governo. Ou um segmento dele.

Diante de um Congresso esvaziado, uma oposição convertida em federação de candidaturas, um ministro da Justiça atropelado pelos fatos e um chefe de Estado empoleirado nos palanques, a crise ganha dimensões preocupantes porque ultrapassa a questão da "espetacularização das ações policiais".

Estamos diante de uma grave crise institucional e, como se não bastasse, com características surpreendentes, pois não se trata de poderes que colidem, mas de confrontos corporativos intestinos que extravasam, se contagiam e contaminam todo o ambiente.

Há pelo menos duas alas na Polícia Federal, uma delas muito aguerrida, acelerando o bulldozer e aliada ao Ministério Público. Um juiz de primeira instância próximo deste segmento se rebela abertamente contra decisão do presidente da suprema corte e, além disso, autoriza o "monitoramento" do seu gabinete.

Neste dramático pandemônio, lobistas e advogados agem nos corredores palacianos cuidando nas altas esferas dos interesses de clientes nem sempre coincidentes com os interesses do governo e do Estado. Chocante e doloroso, o caso do advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, campeão na luta dos direitos humanos, ex-deputado do PT e membro do seu Diretório Nacional que procura o chefe-de-gabinete da Presidência, Gilberto Carvalho, para livrar Daniel Dantas das pressões de um delegado "meio descontrolado" (Protógenes Queiroz, o encarregado da Operação Satiagraha que provocou o furacão jurídico-policial).

E como chegam à sociedade tais aberrações? Por vazamentos, dicas, meias informações e contra-informações sopradas para a imprensa pelas diferentes facções. O vazio de poder é físico e metafísico. Faltam referências, contestações, murros na mesa e, principalmente presenças. Autoridades evaporaram e a autoridade desapareceu.

O narrador viajou para os antípodas e como os fatos são confusos, sobraram delirantes versões. E os cheiros.

» Alberto Dines é jornalista.