segunda-feira, 14 de julho de 2008

DEU NO JORNAL DO BRASIL


ENTRADA E SAÍDA PELA PORTA DA FRENTE
Wilson Figueiredo


Para o presidente Lula, a eleição presidencial de 2010 precisa ser mais – muito mais – do que apenas o ano em que fez seu sucessor. Se tiver êxito na empreitada, claro. Do ponto de vista pessoal, na singularíssima primeira pessoa presidencial, a montagem de um programa para sair em apoteose pela porta da frente precisa ser providenciada desde já. Em fim de governo, a preferência é reservada ao governante que chega. O que sai geralmente gostaria de ser invisível. Evidente que Lula fará o possível para não desperdiçar o saldo das pesquisas que atestam merecimento histórico, se até lá não se comprometer com a insensatez. Na tradição republicana, apenas um presidente saiu lépido e fagueiro, em condições de voltar na eleição seguinte. Juscelino Kubitschek é o nome dele. Cinco anos antes, tentaram evitar a entrada de JK e, cinco anos depois, cassaram-lhe os direitos políticos e trataram de extinguir a eleição direta. Nunca se viu nada igual neste país.

Para reunir o útil ao agradável, se quiser sair pela porta da frente cinco anos depois, o presidente Lula terá de reforçar seu currículo democrático com obras políticas que sejam tão visíveis quanto as realizações de Kubitschek, que encheu os olhos incrédulos dos brasileiros que não tinham visto nada parecido nos 50 anos anteriores. Também como JK, em sinal de respeito pela democracia, Lula já repeliu com ênfase o terceiro mandato, não apenas porque não existe tal coisa, como pelo narcisismo de se admirar no espelho da opinião pública. O presidente fez muito bem em desautorizar a seqüência de mandatos nascidos de mandatos, com deploráveis resultados, como se pode verificar pelo estado lastimável em que se encontra o exercício da política entre nós. Parece ter esquecido que ele próprio era contra a reeleição e, ao aceitá-la, prometeu que iria se empenhar pela sua extinção. Nada feito.

Sem medo de parecer neoliberal, bastará a Lula perceber que a democracia lhe oferece mais possibilidades de ser lembrado do que uma aventura aparentemente de esquerda mas, pela sua natureza ambidestra, suscetível a uma guinada à direita. Golpe de mão, não. Dispõe das reformas que seu antecessor trocou pela reeleição e que ele, por culpa do segundo mandato, acabou manietado por uma coalizão rastaqüera. No acostamento da História, amontoam-se as melhores intenções e as piores ações. Como não se inventa nada em política, a solução passa pela convocação geral, inclusive da oposição, com a finalidade de atualizar o Brasil segundo a velha fórmula de reformar para que tudo venha a dar o mesmo resultado. O tempo não deixa a História mentir.

Lula sabe que reformas podem ser seu cartão de visitas à própria História do Brasil em 2014, se até lá não ocorrer contratempo (e, apesar do trocadilho, contra ele também) institucional, na linguagem cifrada dos políticos. Desde quando os mandatos de quatro anos dispensavam esse exame de segunda época chamado reeleição, a República se mantém sóbria e formal com os governantes que saem. A verdade é que todos os presidentes, desde o tempo da eleição a bico de pena, começavam melhor do que terminavam. E a culpa era debitada ao povo naquele falso epitáfio da democracia, segundo o qual o povo tem, pelo voto, os governantes que merece. Lula teve a vantagem de contar com uma negligenciada fatia da sociedade e corresponder, na medida do possível, ao que essa faixa social ascendente não mereceu de nenhum outro. Por enquanto, Luiz Inácio Lula da Silva fez uma política que os cientistas do ramo, com uma ponta de desprezo, classificam como paternalismo. E, se os novos consumistas não se tocarem, será porque já subiram realmente um degrau social e já estão raciocinando politicamente pela cabeça da classe média.

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


É FÁCIL ACUSAR OS ESPECULADORES
Carlos Alberto Sardenberg


O presidente Lula não foi o primeiro a culpar os especuladores financeiros internacionais pela alta do preço do petróleo.

Antes dele, e para citar apenas os mais recentes, fizeram a mesma acusação: o presidente da França, Nicolas Sarkozy, o direitista italiano Silvio Berlusconi e os governos da Áustria e da Espanha (este socialista). Há tempos os xeques da Arábia Saudita, a maior produtora e exportadora mundial de petróleo, repetem que a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) não tem nada que ver com a escalada de preços. Só no Congresso dos EUA há mais de dez projetos que tratam desse assunto (limites à especulação financeira), também na pauta da União Européia.

A denúncia, pois, cabe em muitos figurinos políticos, à direita e à esquerda. É que se trata de um tipo de populismo: os especuladores internacionais são “suspeitos habituais”. Atacá-los talvez não dê votos, mas dá uma imagem de luta contra os poderosos.

É acusação sem custo, mas também sem efeitos. O problema é que a acusação serve para deixar de lado questões essenciais sobre as quais os governos poderiam intervir. Por exemplo: governos que subsidiam a gasolina para impedir a alta de um preço politicamente relevante, simplesmente estimulam ainda mais o consumo de um bem escasso e caro. Ou seja, dão um sinal errado.

O governo brasileiro subsidia a gasolina, assim como muitos outros.

O fato é que nenhuma especulação poderia prosperar se houvesse sobra de petróleo no mundo.


Muitos concordam que há um tanto de especulação no preço de US$ 147 o barril. Quando os preços sobem e caem, sucessivamente, em poucos dias, é óbvio que não se trata de fundamentos do mercado físico, mas de instabilidade no mercado financeiro. E de muita insegurança dos investidores. Relatórios de fundos de investimentos projetam preços do petróleo acima dos US$ 150 no curto prazo, mas em torno dos US$ 75 no médio prazo.


De todo modo, por trás de tudo há um preço elevado por causa do aumento do consumo em ritmo não acompanhado pelo aumento da produção. Um exemplo: o segundo maior produtor e exportador é a Rússia, cuja produção caiu no primeiro semestre deste ano. Outro: a China, em poucos anos, passou de exportadora à segunda maior importadora de petróleo, atrás apenas dos EUA.

Como ficamos? Há muita gente prospectando petróleo mundo afora. Não é apenas o Brasil que faz descobertas no mar profundo. Isso também ocorre nas costas do México e dos EUA, para ficar aqui por perto. Esses preços animam os produtores e viabilizam a exploração de áreas de custo elevado. Nos anos 80, o preço do óleo despencou depois do pico de 1979.

Vai aparecer mais petróleo, mas demora. A Petrobrás, por exemplo, espera começar a tirar petróleo dos novos campos, em volumes comerciais, lá pelos anos 2015/2016. Nessa ocasião, é possível que a companhia coloque no mercado internacional mais de 1 milhão de barris ao dia. E, se for assim, a perspectiva é boa, mas demora para melhorar.

Entre o céu e o inferno - Alguns analistas sustentam que os preços altíssimos de petróleo e commodities formam uma bolha, que envolveu também produtos paralelos, como aço, este subindo na onda do minério de ferro. Essa bolha estaria prestes a furar, de modo que as cotações estariam à beira de uma queda vertiginosa e instantânea.


Se você pensa como investidor na Bolsa de Valores de São Paulo, por exemplo, isso significa que as ações da Petrobrás e da Vale (e mais as das siderúrgicas) vão desabar e levar junto o Ibovespa. Logo, quem acredita nisso deve vender aquelas ações. Mas, se os preços vão permanecer elevados por um bom tempo, puxados pelo consumo, o certo é comprar as ações.


Entre o céu e o inferno, o que parece mais razoável?

O seguinte: não é uma bolha, ou, mais exatamente, não é só uma bolha nem essencialmente uma bolha. O mundo desacelera, mas não quebra. Os preços de hoje estão “puxados”, mas, provavelmente, não vão desabar. Haja esperança!

Informação privilegiada e informação de mercado - Sobre a suspeita ou os indícios de que Naji Nahas teria informação privilegiada a respeito das decisões do Federal Reserve, Fed, o banco central dos EUA: relatório da Polícia Federal e do juiz cita conversa telefônica de Nahas com uma pessoa que estava em Nova York e diz que o Fed ia reduzir a taxa básica de juros em até 0,5 ponto porcentual, isso teria ocorrido pouco antes de 18 de setembro de 2007; nessa data, o Fed se reuniu e, de fato, reduziu a taxa de 5,25% para 4,75%;tratava-se, porém, de uma reunião regular do Fed, conforme o calendário divulgado um ano antes; nos dias anteriores à reunião, formou-se no mercado o consenso de que o Fed certamente reduziria os juros; não havia consenso exato sobre o tamanho da redução, mas se discutia abertamente entre a queda de 0,5 ponto ou 0,25 ponto porcentual;pode-se dizer que a maioria dos analistas e operadores apostava numa queda de 0,25;mas mesmo esses não descartavam a hipótese de uma redução de 0,5 ponto e muitos analistas de prestígio afirmavam que essa seria a decisão mais correta; portanto, nos meios econômicos globais, todo mundo acreditava que o Fed ia reduzir os juros em até 0,5 ponto; informação privilegiada mesmo seria sobre a reunião anterior do Fed, a de 17 de agosto de 2007, uma sexta-feira; não estava no calendário, foi convocada na véspera, os diretores do Fed se reuniram em teleconferência e decidiram por uma redução de 0,5 ponto porcentual na taxa de empréstimo aos bancos; ainda assim a surpresa foi o dia, pois muitos analistas sustentavam que o Fed precisava reduzir os juros rapidamente para combater a crise financeira, que, então, estava mostrando sua cara.


*Carlos Alberto Sardenberg é jornalista.

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

MOCINHOS E BANDIDOS
Fernando de Barros e Silva


SÃO PAULO - As operações da Polícia Federal ganharam corpo no governo Lula e logo se tornaram encenações midiáticas de justiçamento, uma espécie de teatro instantâneo para a TV cujo clímax reside na imagem da pessoa poderosa algemada e presa por algumas horas.

Esse ritual de humilhação e execração pública -pelo qual o acusado fica exposto como se lhe gravassem com ferro em brasa na testa LADRÃO!- tem sido a verdadeira condenação das vítimas endinheiradas da PF. Na Justiça e ao cabo, todos sabem que vão se safar.

A PF parece ter descoberto a fórmula mágica capaz de saciar o apetite das massas, fazendo do espetáculo das prisões uma compensação para a quase certeza da impunidade no final. E dá-lhe grampo! -como nunca antes neste país.

O delegado Protógenes Queiroz trouxe agora uma novidade à cultura policial da era Lula. As 245 páginas de seu inquérito são produto de uma cabeça messiânica em estado de êxtase. Além de grampear o idioma, o homem da lei se atribui a missão de salvar o país e combater obstinadamente os males do capitalismo. Protógenes é uma mistura de Eliot Ness com Sassá Mutema.

Esse contrabando místico-ideológico que contamina o inquérito serve, na prática, para justificar barbaridades, como o pedido de prisão da jornalista Andréa Michael. Lendo a peça do delegado entende-se por que sua equipe invadiu o consultório de um dentista acreditando prender um doleiro.

A inépcia, os atropelos e a megalomania da PF beneficiarão os culpados, a começar pelo "bad boy" das privatizações, o neomeliante que espelha a face delinqüente do moderno capitalismo brasileiro inaugurado com Fernando Collor.

Daniel Dantas é um vilão de novela, uma raposa de desenho animado. Todo mundo sabe que ele é o que é. Que "gênio do mal" é esse, tão transparente, tão trapalhão, sempre aprontando e sempre em apuros? Protógenes corre o risco de tê-lo transformado numa vítima de sua ambição insana de livrar o mundo de todos os seus pecados.

DEU NA FOLHA DE S. PAULO


RESPONSABILIDADE PELO AMBIENTE
Luiz Carlos Bresser-Pereira

OS GRANDES países do mundo estão avançando muito lentamente na definição de metas de redução da emissão de gases que causam o efeito estufa. Na última semana, reuniram-se o G8, formado pelos países mais ricos, o G5, formado pelos principais países em desenvolvimento, e o MEM (Major Economies Meeting), que reúne os 13 países do G8 e do G5 mais a Indonésia, a Austrália e a Coréia do Sul. Os resultados foram modestos.O G8 emitiu comunicado sobre "compartilhar" com todos os países a meta de reduzir pelo menos em 50%, até 2050, as emissões dos gases que causam o aquecimento global.

Entretanto, como a meta não é vinculante, isso significa uma reafirmação da tese dos países ricos e principalmente dos Estados Unidos de que seu comprometimento no esforço para controlar o aquecimento global depende da participação dos grandes países em desenvolvimento. Foi um pequeno avanço, já que até recentemente o presidente Bush se recusava a qualquer compromisso.

Entre os países em desenvolvimento, o avanço foi a China e a Índia, afinal, manifestarem disposição de colaborar, mas o G5 voltou a afirmar que a responsabilidade fundamental pelo aquecimento global é dos países ricos, que, desde o início do século 19, acumularam poluição atmosférica, para daí concluir que não deve ficar sujeito a metas. Para os cinco países, "não se deve responsabilizar os países em desenvolvimento pelo que é clara responsabilidade dos países desenvolvidos".

Foi essa a tese inovadora do Brasil nas discussões sobre o Protocolo de Kyoto, em 1997. E foi a tese que então prevaleceu, já que os países em desenvolvimento ficaram sem metas naquele tratado. Faz sentido, entretanto, continuar a defender a mesma tese 11 anos depois da sua aprovação? Não creio que faça. Naquela época, o problema do aquecimento global não estava tão claro; não estava tão comprovado cientificamente quanto está hoje; e não estava na agenda política global com o mesmo relevo que tem hoje. Por outro lado, também não estava claro naquele momento que um grande número de países em desenvolvimento, capitaneados por dois imensos -a China e a Índia-, já estavam crescendo a taxas superiores às dos países ricos e estavam se tornando cada vez mais co-responsáveis pelo aquecimento global.

No nosso caso, não sabíamos que o Brasil, por meio da progressiva e criminosa destruição da mata amazônica, estava se transformando também em um dos grandes responsáveis pelo aquecimento global. Era razoável, portanto, que usássemos o argumento histórico para não partilhar metas e responsabilidades. Hoje, isso não faz mais sentido. É legítimo afirmar que nossas metas sejam mais modestas que a dos países ricos, mas isso é tudo o que podemos, legitimamente, defender.

Se o Brasil aceitar metas, haverá uma repercussão na sua taxa de crescimento, mas pequena. Exageram-se os custos da proteção ao ambiente e subestimam-se os benefícios. Muito mais grave é a danosa política de juros e de câmbio que o Brasil vem adotando desde 1991 com o apoio entusiástico de nossos concorrentes do Norte. É essa política econômica -e não a defesa do ambiente- que impede nosso desenvolvimento econômico e, portanto, a melhoria sustentada dos padrões de vida dos brasileiros.


LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA , 73, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".

DEU NO VALOR ECONÔMICO


ESTRANGEIROS, POBRES E VALORES
Fábio Wanderley Reis


A União Européia vem de produzir duas notícias de importância. A primeira é o referendo realizado na Irlanda no dia 12 de junho, em que o país se negou a ratificar o Tratado de Lisboa, o que resulta em impedir que ele tenha efeito. A segunda é a aprovação no dia 7 de julho, em Cannes, do esboço do Pacto Europeu de Asilo e Imigração, que endurece a postura dos países do bloco perante os imigrantes e transforma em crime a imigração ilegal (apesar de terem sido suavizados certas propostas iniciais do governo francês tornando obrigatórios o aprendizado do idioma local e a adoção de "valores europeus"). Embora se trate de assuntos diversos, há conexões relevantes.

É claro que a segunda notícia tem ressonâncias muito mais dramáticas para nós, latino-americanos, dado que nossos viajantes, mesmo com os papéis em ordem, já vêm sendo com frequência recebidos como criminosos em aeroportos europeus diante da simples presunção, pelas autoridades responsáveis, de que se trata de imigrantes. Mesmo pobres, porém, os latino-americanos provêm, quando nada, de países amplamente constituídos pelo colonialismo europeu e portadores, portanto, em medida importante, de sua cultura (não obstante o empenho de certas análises em separar uma peculiar "civilização latino-americana" do "Ocidente" - análises que às vezes se mostram ambíguas quanto ao caráter "ocidental" até de Espanha e Portugal...). Mas a feição dramática dos problemas postos pela imigração se reforça pelo fato de que em muitos casos, com ligações coloniais prévias ou não, trata-se de imigrantes provenientes de culturas não só claramente diferentes das dos países receptores, mas que chegam até a hostilizá-las - e a serem percebidas como hostis pelas populações hospedeiras, o que favorece e intensifica os preconceitos e suspeitas.

As torturadas reflexões a respeito se ilustram com um pequeno volume de Giovanni Sartori, "A Sociedade Multiétnica", publicado em 2001. Sartori, postado firmemente numa tradição liberal e pluralista, enfrenta com ardor as distorções "multiculturalistas" dessa tradição. Tais distorções, que brotam nos Estados Unidos mas se fazem presentes também na Europa, representariam pontos de referência intelectuais para uma disposição empenhada no reconhecimento igualitário e na integração a todo custo das populações e etnias diversas, incluídas, naturalmente, as dos imigrantes.

Assimilação cultural e desigualdade regional

O referendo irlandês quanto ao Tratado de Lisboa (na esteira, aliás, do rechaço francês e holandês, em 2005, do Tratado Constitucional europeu) surge de imediato apenas como um tropeço adicional no esforço de fôlego e amplamente bem-sucedido de construção de uma Europa integrada. Mas a questão fundamental envolvida não deixa de ser afim aos problemas da imigração. Pois, referindo-se às relações entre as nações, de um lado, e uma comunidade multinacional, de outro, a questão é aqui também a do convívio entre culturas e identidades diversas e do equilíbrio entre identidade e diferença. E, num caso como no outro (embora, de novo, com graus diversos de dramaticidade), o tema de identidade e diferença, que as reflexões de ciência política tratam há tempos em termos de "assimilação" cultural, se combina com problemas de assimetria e estratificação. Não admira que Jürgen Habermas, em artigo há pouco reproduzido pela Folha de S.Paulo ("Europa com Medo do Povo", caderno Mais, 29 de junho), associe o resultado do referendo irlandês à necessidade de fazer política em nível europeu, de forma a recuperar a visão de uma "Europa social", dar credibilidade aos partidos socialdemocratas e evitar excluir, "de saída e por princípio, qualquer alternativa ao liberalismo de mercado".

A discussão de Sartori apresenta clara proximidade, às vezes, com as idéias de Samuel Huntington sobre a "latino-americanização" dos Estados Unidos em decorrência da onda atual de imigrantes latinos. Mas informadas discussões provocadas por Huntington mostram nada haver de peculiar, ao cabo, na onda atual com respeito às ondas anteriores de imigração irlandesa, judaica ou italiana, que resultaram em assimilação plena. Certamente os Estados Unidos como país têm se transformado com as mudanças demográficas de vários tipos. Mas os indícios são antes de fortalecimento da tradição de pluralismo democrático.

Esse é o ponto crucial. Não parece caber dúvida, na avaliação e no enfrentamento dos problemas gerais em questão, quanto ao papel orientador a esperar dos valores pluralistas e liberais de tolerância e individualismo e da neutralização da relevância de traços "adscritícios" impostos pelo nascimento, ou seja, os valores pelos quais Sartori se bate. E é difícil sustentar que a comunidade pluralista seja aberta aos que não se abram para ela.

Tudo somado, porém, a reiteração da importância dos valores pluralistas não pode levar a que se perca de vista o condicionamento material do êxito da eventual "assimilação" cultural. Afinal, há muito (muito antes de Disraeli quanto à Inglaterra) as diferenças de classe permitem que se fale de "duas nações", a dos ricos e a dos pobres, quase de todo apartadas culturalmente uma da outra. E a perspectiva que surge daí traz lições importantes para um Brasil em que integrantes destacados do Judiciário falam destemperadamente em defesa dos direitos civis de criminosos de colarinho branco e silenciam sobre a violência que a cada dia compromete radical e tragicamente os mais comezinhos direitos dos cidadãos de segunda classe. Com todo o importante papel de nossas cortes de Justiça, especialmente o STF, como revisoras e co-produtoras de políticas públicas em áreas diversas, muito de nosso futuro pode depender, como sugere estudo que Matthew M. Taylor acaba de publicar ("Judging Policy", 2008), do grau em que consigamos tornar efetivo o acesso igualitário à Justiça.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras