quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Um país inseguro


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO

NOVA YORK. As pesquisas eleitorais, que aqui nos Estados Unidos são realizadas às dezenas e praticamente todos os dias, geralmente por telefone, poderiam ser questionadas pelos padrões brasileiros, muito mais rigorosos, mas na verdade servem para indicar a tendência do eleitorado, mesmo que a margem de erro seja quase sempre maior que três pontos percentuais. Em uma eleição apertada como essa, em que as variações são mínimas, elas servem para medir a temperatura da campanha, mais do que para apontar um presumível vencedor.

É assim que ontem havia pesquisa mostrando Obama novamente na frente, com dois pontos percentuais sobre McCain, como havia outras mostrando o republicano na frente, também dentro da margem de erro. A conclusão é que não se pode dizer hoje quem vencerá a eleição, que promete ser tão apertada quanto a de 2000.

A eleição presidencial deste ano tem ingredientes únicos, que dão à campanha um toque dramático que há muito não se via. É a primeira vez que um candidato negro tem chances reais de chegar à Presidência da República, e a disputa eleitoral se dá em meio a uma crise econômica sem precedentes. Por isso, mais que as qualidades pessoais de cada candidato, está em disputa a capacidade de inspirar confiança no eleitorado assustado com o futuro.

Os "swing states", isto é, os estados que não são historicamente republicanos ou democratas e que podem mudar de voto a cada eleição, são, nesse clima de equilíbrio, os definidores da eleição.

Como no sistema eleitoral americano o candidato que vence no voto popular leva todos os votos dos delegados correspondentes àquele estado, já há indicações de que McCain lidera no voto popular, mas Obama tem mais delegados, justamente o contrário do que aconteceu na eleição polêmica de 2000, quando George W. Bush venceu com menos votos populares que Al Gore.

Há uma característica interessante na atual campanha: a maioria do eleitorado prefere o Partido Democrata, provavelmente repudiando os oito anos de governo republicano que levou o país à bancarrota econômica e à guerra.

Mas, o candidato republicano McCain conseguiu superar essa rejeição partidária, e surge como o preferido dos eleitores em diversos pontos, como o mais bem preparado para lidar com a crise econômica ou política externa, e o melhor "comandante-em-chefe" para o momento do país.

No início da campanha, o sentimento de que os democratas seriam a solução para o país estava combinado com a empolgação pelo que representava de novo a candidatura de Barack Obama.

Hoje, esse sentimento ainda existe, mas está bastante desgastado, enquanto McCain está conseguindo, mesmo à custa de uma campanha que pode ser considerada agressiva e muitas vezes distorce a verdade, distanciar-se do Partido Republicano e se colocar como um agente de mudanças mais confiável do que Obama.

Desde que se dispôs a assumir o papel de ser o candidato da mudança em Washington e agora em Wall Street, mesmo que esse papel não corresponda a seu histórico político, McCain tem conseguido apaziguar um eleitor que quer mudança, mas teme a inexperiência de Obama. Ou, por outra leitura, teme eleger um presidente negro. Ou acha que é muita novidade junta, o primeiro presidente afro-descendente e ainda por cima inexperiente.

O candidato democrata está trabalhando firme nos estados que podem mudar seus votos para reverter um quadro que, no momento, o favorece mais devido ao seu partido do que a seus predicados - ao contrário do que acontecia meses atrás.

Os quatro grandes estados considerados estratégicos para uma vitória são os alvos das duas campanhas. Ohio e Flórida, onde Bush venceu em 2004, e Pensilvânia e Michigan, onde venceu o candidato democrata John Kerry, são exemplos típicos de estados que têm que ser mantidos pelas duas candidaturas. Perder em um deles pode significar a derrota final.

Exemplos de estados importantes e a mudança de votos nos últimas eleições:

New Hampshire (Bush em 2000, Kerry em 2004 e até o momento Obama);

Colorado (Bush em 2000 e 2004 e até o momento Obama);

Novo México (empate em 2000, Bush em 2004 e até o momento Obama);

Ohio (Bush venceu por menos de 1% e hoje há pesquisas mostrando Obama liderando por dois pontos e outras colocando McCain à frente por 3 pontos);

Flórida, onde Bush venceu em 2004 e hoje o jogo está literalmente empatado, como em 2000, quando a eleição foi decidida pela recontagem de votos lá.

Em alguns estados, quando os candidatos "nanicos" são incluídos, a disputa apertada pode mudar o vencedor. O independente Ralph Nader, o libertário Bob Barr e a candidata verde Cynthia McKinney, juntos, têm um total de 7% dos votos em Indiana, 6% em Ohio e 5% na Carolina do Norte.

Pelas contas da CNN, Obama teria hoje 233 delegados e McCain teria 189, enquanto 116 votos ainda estariam em disputa.

Já o site Politico.com dá um resultado mais apertado, com Obama tendo 153 delegados e McCain, 139. Incluindo os votos indecisos, Obama acabaria sendo eleito com 273 votos, apenas três a mais do que o necessário, e McCain teria 265 delegados, cinco a menos.

A não ser que algum tropeço mude o ritmo da campanha, ou que alguma revelação faça os eleitores desacreditarem de um dos candidatos favoritos, os debates que começam na sexta-feira, dia 26, poderão definir a posição dos eleitores.

A última fronteira


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Até outro dia mesmo os suplentes ocupavam 13% das cadeiras do Senado. De repente já são mais de 20% os integrantes da bancada dos senadores sem-voto em uma das Casas do Poder da representação popular, conforme mostra levantamento publicado terça-feira no Estado.

Talvez suas excelências que engavetaram na Comissão de Constituição e Justiça proposta para a mudança nas regras da suplência - aprovada no ano passado - não tenham se dado conta, mas estamos perto de alcançar a marca dos senadores biônicos criados pelo general presidente Ernesto Geisel como uma das formas de conter o avanço da representação oposicionista ao regime militar.

Possivelmente também não tenham vislumbrado outro significado: o Congresso, que já entregou ao Executivo e ao Judiciário a tarefa de legislar e nos últimos tempos tratou de desmoralizar as comissões de inquérito abrindo mão da prerrogativa de fiscalização, agora vai aos poucos abandonando também sua função de representar.

Finge que não vê, e com isso alimenta o avanço gradativo dos suplentes mostrando-se indiferente à delegação recebida no voto. No caso dos senadores, majoritário.

O primeiro impulso é fazer uma comparação com os governadores imaginando como seria a reação se quase um quarto deles resolvesse transferir de uma só vez os cargos aos vices. Mas o exemplo não serve, porque os vices bem ou mal são eleitos.

Os suplentes chegam ao Senado por razões aleatórias e, no entanto, votam, dão opiniões, podem mudar o rumo de decisões, recebem todas as benesses destinadas ao senador sem precisar para isso de um só voto.

Se a prática é absurda mesmo como exceção, quando começa a virar norma configura-se uma deformação completa da razão de ser do Parlamento.

Segundo as regras do Pacote de Abril de Geisel, os biônicos - assim chamados por chegarem ao Senado por indicação, não por eleição - ficavam com um terço das cadeiras.

Hoje, dos 81 senadores, 19 são suplentes, não tiveram um voto, são indicados pelos motivos mais convenientes ao titular da chapa, ocupam 23% das cadeiras e, nesse ritmo, logo chegam ao terço preconizado pela concepção constitucional da ditadura.

Podendo ultrapassar a margem, chegar, por exemplo, à metade do colegiado, quem sabe até mais, porque não há impedimento legal. Basta o dono da cadeira apresentar uma desculpa qualquer para deixar alguém em seu lugar brincando de senador.

O caso do senador Fernando Collor é emblemático por recente e por mostrar que nem a passagem pela Presidência torna o político imune a ligeirezas institucionais.

Eleito em 2006, Collor tomou posse em 2007 e, de lá para cá, já tirou duas licenças. Na primeira, para “fazer palestras”, assumiu o primo, Euclides Mello. Agora, na segunda vez, outra prima, Ada Mello, brincará de senadora por 90 dias enquanto Collor trabalha como cabo eleitoral do filho no interior de Alagoas.

Como ele, muitos outros jogam os votos recebidos no lixo, dão de ombros à legitimidade invocando a escora da legalidade e deixam a democracia se estuporar.

Foice no escuro

O ministro da Justiça, Tarso Genro, achou “desnecessária” a prisão do delegado Romero Menezes, diretor-executivo da Polícia Federal, mas dirigiu a crítica só à decisão do Ministério Público.

Talvez porque o cargo o impeça, o ministro não apontou nada de anormal na maneira como a ordem de prisão foi executada. Esta sim, com um dispensável e inusitado quê de espetáculo. Peças bem menos importantes nas estruturas de poder recebem tratamento mais fidalgo na forma de um aviso para afastamento a pedido. Os procuradores não têm nada a ver com a produzida cena de valentia, fruto do embate interno na PF.

Mares navegados

Fora do páreo, Paulo Maluf se destaca na eleição paulistana no papel de renegado e virou, por si, uma “denúncia”. O PT explora suas antigas relações explícitas com os adversários, mas não está livre de algum deles, amanhã ou depois, resolver lembrar acordos eleitorais tácitos feitos no passado.

Em momentos, por motivos e de maneiras diferentes, todos eles fizeram o circuito do malufismo.

Gilberto Kassab foi secretário de Planejamento na gestão Celso Pitta, hoje faz de conta que não foi, mas, se a guerra enveredar por aí, o saldo mais alto na conta dos constrangimentos é do PSDB.

O partido, não o candidato Geraldo Alckmin, vice de Mário Covas quando uma decisão da cúpula nacional produziu a imagem mortal: o então presidente Fernando Henrique em outdoors espalhados por São Paulo inteira lado a lado com Maluf, oponente de Covas que suava para se reeleger governador.

Alckmin na época foi vítima, mas hoje seria complicado condenar a decisão partidária porque se apresenta ao eleitor como o legítimo portador do estandarte PSDB.

A AIG, o rolo e o Titanic


Clóvis Rossi
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

SÃO PAULO - Se Antonio Delfim Netto se anima a escrever, como o fez ontem, que "a situação da economia americana continua extremamente confusa", o que posso acrescentar?Poderia relembrar que faz alguns séculos que escrevo neste espaço que o cassino em que se transformou o capitalismo precisava de regulamentação. Agora, todo o mundo diz a mesma coisa, até os dois candidatos presidenciais nos Estados Unidos, país que tem horror coletivo à intervenções do governo.

John McCain, o republicano, chegou a dizer que foi forçado a aprovar a estatização da AIG porque, do contrário, "milhões de pessoas (...) teriam suas vidas destruídas por causa de ganância excessiva e corrupção [dos gestores]".

A continuar essa marcha batida de estatizações, Hugo Chávez ainda vai substituir o rótulo dado a George Walker Bush. Sai "demônio", entra "companheiro.

Ironias à parte, o tamanho do rolo armado no cassino foi detalhado justamente por Maurice Greenberg, que vem a ser o executivo-chefe da AIG, em entrevista para o "site" do Council on Foreign Relations de Nova York: contou que levaria aproximadamente dez anos para desembaralhar de maneira ordenada os contratos da empresa agora estatizada.

Na era dos contratos em papel, cópia em papel-carbono, até daria para entender. Não muito, mas daria. Com computadores, precisar de dez anos para desatar os nós é confessar um rolo realmente federal.

Resta rezar, como pede candidamente o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, para que não seja verdadeira a previsão do jornal britânico "The Daily Telegraph".Equiparou o que ocorreu nas últimas 48 horas ao momento seguinte à colisão do Titanic com o iceberg.

Os passageiros continuaram brincando no convés, inadvertidamente. Sobraram poucos para contar a história do que viria depois.

Lula vive tormentas em mar tranqüilo


Maria Inês Nassif
DEU NO VALOR ECONÔMICO


O governo Lula há seis anos sobrevive a tormentas nadando em mar tranqüilo. Embora a imagem possa parecer estranha, é a que mais expressa um período histórico em que as crises políticas rodopiam pela superestrutura da sociedade sem contaminar a base social do governo; e a bonança econômica não apenas mantém a base social como impermeabiliza o mercado financeiro, que desde o início do governo Lula não se deixa levar pelas ondas de pânico engendradas no meio político-institucional, nem as alimenta. Por certo, esse período histórico terá que ser estudado a fundo no futuro, pela interessante soma de fatores exógenos e das escolhas feitas pelos agentes políticos. A crise financeira que se abateu sobre os EUA e causa rebuliço em todo mundo pode alterar a equação, mas os seis anos em que ela funcionou não serão apagados facilmente da história.

As escolhas do primeiro governo Lula foram responsáveis em grande parte pela neutralização do mercado financeiro, que alimentou ondas de pânico durante a campanha eleitoral até quase quebrar o país. De início, na era Antonio Palocci, uma política monetária ortodoxa e uma política fiscal apertada conviveram com uma política social mais universalista. O Bolsa Família, pelas suas características, teve grande impacto econômico em comunidades mais pobres e foi um fator dinâmico numa economia contida pela ortodoxia; o mesmo papel desempenhou o crédito consignado. A recuperação econômica começou de baixo, na base da pirâmide. As escolhas feitas pelo governo foram a de manter o status quo do setor financeiro, proporcionando juros reais em altos patamares, e não travar um ciclo de crescimento que se iniciava agora nas camadas mais pobres da população beneficiadas por programas sociais. A era Guido Mantega foi marcada por uma outra solução de compromisso: a mesma política monetária ortodoxa, garantida pela presença de Henrique Meirelles no Banco Central, que convive, todavia, com uma política fiscal mais elástica, que deu um espaço maior para o crescimento econômico e democratizou, de alguma forma, os benefícios de uma economia que antes crescia pouco e beneficiava preferencialmente o mercado financeiro, com juros fartos, e a população de baixa renda. É certo, todas essas escolhas foram ajudadas por uma conjuntura externa benéfica - mas o cenário interno favorável certamente tem se prolongado por conta das decisões de política.

Essa solução de compromisso na economia, todavia, não livrou o governo Lula de uma alta pressão política. O presidente está ilhado na sua alta popularidade de 64% (soma das avaliações ótimo/bom governo), segundo pesquisa Datafolha do último dia 12. A elite política e o quadro burocrático dos poderes da República (que não deixa de fazer parte da elite política) atuam intensivamente como agenciadores de crise e de "explosões de pânico", que são sistematicamente amplificadas e alguns momentos dão a impressão de que têm força suficiente para derrubar a República, para depois sumirem no espaço como bolhas de sabão. Lula tem uma maioria na Câmara obtida com um bloco de partidos inorgânicos e heterogêneos; uma relação de amor e ódio com o seu partido, o PT, que perdeu substância orgânica no governo mas ainda tem força suficiente para não ser considerado imprescindível; é minoritário no Senado e lá lida com uma oposição mais raivosa, que ecoa e alimenta as explosões de pânico; tem no Supremo Tribunal Federal (STF) uma militância exagerada do seu presidente, Gilmar Mendes; lida com uma divisão permanente nos quadros da Polícia Federal (PF), cuja atuação tem ganhado cada vez mais importância institucional.

Ainda assim, não se pode dizer que Lula sobreviva exclusivamente dos bons ventos na economia. O presidente tem um patrimônio político próprio, consolidado nas faixas inferiores de renda. O avanço de Lula sobre esse eleitor se deu na proporção direta do afastamento dessa parcela da população dos chefes políticos locais, que tradicionalmente dependiam desse voto. Houve um descolamento na política tradicional que beneficiou o presidente. Como a luta política se deu intensamente nas instâncias institucionais - um tiroteio constante entre partidos, governo, STF, polícias e mídia - essa população, descolada do político que antes era o agente local da crise, ficou à margem das ondas de pânico geradas pelos atritos entre os poderes e entre os agentes políticos.

Um presidente sobreviver a sucessivas ondas de pânico e, ao final, ostentar 64% de popularidade, é razão suficiente para que se considere esse momento histórico como o mais rico do período pós-democratização. Governistas ou não, petistas ou antipetistas, as pessoas envolvidas na política devem ficar atentas para o fato de que se vive um momento onde as relações sociais com a política estão encontrando outros paradigmas. O país pode encontrar, nesse momento, a oportunidade histórica de romper com tradições políticas que são deletérias e definir outros parâmetros de relação do eleitor com a política. Isso significa que o poder tem que aprofundar o processo de mudança de suas relações com o cidadão; e a oposição, assumir uma relação mais orgânica com seu eleitor. Quando as explosões de pânico não causam pânico, o mais inteligente é privilegiar relações políticas mais racionais. E mais racional entrar na luta política para ganhar o poder pelo voto.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras

Crise pode estar no auge, diz economista

Vera Saavedra Durão, do Rio
DEU NO VALOR ECONÔMICO

O economista e professor do Instituto de Economia (IE) da UFRJ Fernando Cardim, especializado na área financeira, teme que a crise financeira internacional esteja vivendo hoje seu momento mais perigoso. "O risco de quebra da seguradora AIG, a maior do mundo, abre uma frente nova na crise", observa.

Em sua análise, a quebradeira dos bancos de investimento representa perdas para investidores, mas a falência de seguradoras - instituições financeiras que mais negociam os "Credit Default Swaps" (CDS), derivativos que dão proteção ao sistema bancário inadimplência de tomadores - pode deixar os bancos sem proteção.

Ao perceberem que seu hedge não existe mais, os bancos americanos, incluindo os principais - podem contrair violentamente o crédito, até mesmo o crédito ao consumidor que move a economia dos Estados Unidos, abrindo caminho para uma recessão brutal e até mesmo depressão nos moldes da de 1929. "Mas, este é o pior cenário, tudo vai depender da intervenção do governo americano na AIG", diz Cardim.

Para ele, o importante é que as conversas entre a seguradora e o governo já começaram. Mas, como Bush tem baixa popularidade e está em fim de governo, o economista teme que ele não tenha legitimidade para dar a ajuda necessária para socorrer o sistema. "O que seria o pior dos mundos".

O Brasil, no cenário desenhado por Cardim do ponto de vista financeiro, está por enquanto assistindo ao derretimento dos mercados de arquibancada, pois os bancos brasileiros são pouco ou nada expostos a derivativos vendidos no exterior, como títulos "subprimes" e CDS. "A dívida pública, via títulos do Tesouro, paga muito mais que os "subprimes". Afinal, os juros brasileiros são os mais altos do mundo e acabam, nessa hora, servindo de blindagem para a crise".

Para Cardim, o risco de o país ser contaminado pela crise está na área comercial, no déficit em conta corrente. "Se houver recessão lá fora as exportações brasileiras vão encolher. O que dificulta financiar o déficit. E o governo pode ser obrigado a apelar para as reservas num momento de iliquidez dos mercados. É hora do BC definir uma política cambial", diz o pós-keynesiano.

A seguir, os principais trechos da entrevista de Cardim ao Valor.

Valor: O sr. espera uma piora da crise financeira global?

Fernando Cardim: O que estamos assistindo agora no mercado financeiro dos EUA é altamente preocupante. Em menos de duas semanas, após o governo Bush injetar US$ 200 bilhões nas duas casas hipotecárias, quebra o Lehman Brothers, quarto maior banco de investimento local, é vendido preventivamente em apenas dois dias o Merrill Lynch, banco de investimento independente. E, de ontem para hoje, a maior seguradora do mundo, a AIG está ameaçada. Isto abre uma frente nova na crise. As seguradoras são grandes fornecedoras de CDS para os bancos comerciais. [O CDS é um derivativo de crédito que serve como seguro. Quando os bancos fazem empréstimos e o tomador não paga ele recorre à seguradora para recuperar o valor do empréstimo]. Uma quebradeira nas seguradoras pode significar que a segurança do sistema bancário está sem proteção, os bancos estão nus.

Valor: E o que pode acontecer?

Cardim: Se os bancos comerciais perceberem que não têm para onde apelar, que estão sem a proteção que imaginavam, podem partir para uma contração de crédito violenta nos EUA, afetando o crédito ao consumidor (que move a economia americana) e podendo levar a uma recessão brutal até mesmo a uma depressão nos moldes da crise de 1929.

Valor: Na sua avaliação, os Estados Unidos ainda não estão em recessão?

Cardim: Há uma desaceleração visível mas, se houver um choque de crédito duro, em vez de desacelerar, a atividade econômica cairá mesmo na recessão e forçaria uma intervenção do governo em escala maior, que pode não funcionar por conta da paralisia política de um fim de governo e véspera de eleições. A paralisia e falta de legitimidade do governo podem impedir a implantação de medidas mais amplas de sustentação da economia. Este seria o pior dos mundos.

Valor: Mas o Tesouro americano já não está conversando com a AIG?

Cardim: Ainda bem que isto já está acontecendo. O Tesouro sabe dos riscos que o mercado financeiro está correndo se a AIG for pelo ralo. Por isso acho que este é de longe o momento mais perigoso da crise.

Valor: Os grandes bancos brasileiros não trabalham com derivativos externos?

Cardim: Nos títulos "subprime" os bancos brasileiros não têm nada. Eles não compram estes ativos, pois a dívida pública, no caso os títulos do Tesouro (LTNs), paga mais que os "subprimes". A atividade principal dos nossos bancos no exterior é administrar fundos "off-shore" [recursos de terceiros] no Caribe, por exemplo. Os derivativos vendidos pelos bancos americanos atraem muito os bancos europeus, que os adquirirem para aumentar suas receitas, mas no Brasil os bancos não fazem este tipo de negócio porque os juros são tão altos que não precisam buscar investimentos lá fora. Por incrível que pareça, a combinação perversa de real valorizado e juro alto está protegendo o sistema bancário local da turbulência externa.

Valor: De onde pode vir algu- ma contaminação da turbulência global?

Cardim: O risco a que estamos mais sujeitos é o risco comercial. Uma contração mais grave da economia dos Estados Unidos pode levar nossas exportações a perder demanda (física). Já estamos com um déficit em conta corrente de US$ 17 bilhões no primeiro semestre. Ele está crescendo rapidamente. Quanto mais a economia crescer, mais este déficit vai crescer por conta das importações. O Brasil combate o déficit se endividando. Com contração de crédito externo fica difícil captar, vamos ter que apelar às reservas para reduzir o déficit, o que reduz nossa proteção. É hora de o BC definir uma política cambial como parte do nossa arsenal de defesa contra a crise. Se não temos esta política, o câmbio fica exposto às turbulências e pânico dos mercados. O risco do Brasil é por aí. Do lado financeiro em si a exposição dos bancos brasileiros é pequena e o peso dos bancos estrangeiros no país é muito reduzido. O mercado de capitais ainda é pouco expressivo e muito atrelado às bolsas externas, por isso sofre tanto. Mas não chega a ser dramático, as perdas das empresas podem ser compensadas pelo BNDES. Na hora em que tudo treme, como ocorre hoje nos EUA, o Estado é quem salva.

Lessa vê crise profunda e Brasil sem salvaguardas

Mair Pena Neto
DEU NA REUTERS


RIO DE JANEIRO - Ex-presidente do BNDES, o economista Carlos Lessa traça um perfil sombrio para os efeitos da crise financeira sobre o Brasil e acha que o país não tem instrumentos para se proteger.

"O Brasil vai entrar pelo cano porque não possuimos salvaguarda nenhuma. Os 200 bilhões de dólares (em reservas internacionais brasileiras) que o Meirelles (presidente do Banco Central) bate no peito são pó em relação ao tamanho da crise que está se avizinhando", disse Lessa à Reuters.

Para ele, o Brasil só conseguiria reter a parte de capitais de curto prazo elevando a taxa de juros, mas a situação externa vai puxá-los para fora do país.

Lessa acha que a atual crise reproduziu em escala mundial o que aconteceu no Japão nos anos de 1990, quando a acumulação financeira se baseou em valores inflacionados dos imóveis que não se sutentaram. "Isso gerou uma crise imobiliária de proporções colossais. Os imóveis mais caros do mundo viraram pó. Até hoje o Japão não se recuperou desse golpe", afirmou.

Segundo ele, o que aconteceu nos Estados Unidos foi parecido. O ganho financeiro se remunerou sem a correspondente geração de economia real, rompendo os limites do jogo econômico.

"Se a economia real caminha separada da acumulação financeira, como aconteceu lá e no Japão, você estabelece uma precariedade na construção e chega um momento em que ela cai."

BOLHINHA E BOLHONA

A extensão da atual crise é difícil de prever, na opinião de Lessa, mas sugere ser muito mais profunda do que se imaginava.

"De qualque maneira virá um novo período de estagnação mundial, o que para o Brasil é muito ruim", avaliou, apontando a falta de um projeto nacional de desenvolvimento para compensar a dificuldade externa.

Para Lessa, o mínimo que vai acontecer ao Brasil será a inflação, já que a taxa de câmbio foi o principal instrumento para combatê-la.

"Na hora em que o jogo financeiro começa a puxar os recursos para fora, a taxa de câmbio se desvaloriza. É o que está acontecendo, o real já está se desvalorizando ante o dólar", citou Lessa. Ele ressaltou a ironia de a moeda brasileira estar se desvalorizando perante o dólar, "que está à beira do crack", quando a economia norte-americana vai mal e a brasileira está indo bem.

O ex-presidente do BNDES no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva alertou para a criação de uma bolha de crédito no Brasil que pode estourar se a economia deixar de crescer.

"Um carro é financiado em 90 prestações baseado em que as pessoas pagarão se a economia crescer. Mas se não crescer e houver desemprego, não pagarão", advertiu.

O economista considera insustentável subordinar o crescimento econômico ao endividamento em massa das famílias. "A dívida das famílias só é um bom ativo para os bancos se elas continuarem a ter renda. A situação é similar à bolha de crédito imobiliário norte-americano. Só que a nossa é uma bolhinha e a deles é uma bolhona."


"O governo brasileiro precisa ser responsável" (FHC)

DEU NA GAZETA MERCANTIL

"Eu nunca vi nada igual". Os desdobramentos da crise econômica nos principais mercados do mundo, que a cada novo acontecimento evidenciam tons cada vez mais sombrios, mostram que o Brasil, como todo o resto do globo, não tem como passar incólume. Na avaliação do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o País está hoje em melhores condições do que nas crises anteriores, "mas não pode haver descuidos". E aproveitou para alfinetar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro da Fazenda, Guido Mantega, para quem a economia brasileira está blindada.

"É um momento delicado, o governo precisa ter responsabilidade e gastar menos, não dá para falar que não seremos afetados", disse, dando como exemplo a bolsa brasileira, que ontem voltou a registrar uma queda de 6,74%, acompanhando a tendência dos mercados mundiais. No ano, a Bovespa acumula queda de quase 30%.

Ainda na avaliação do ex-presidente, que participou ontem do Programa do Jô Soares, da Rede Globo, a falta de crédito internacional preocupa, principalmente por afetar os investimentos. "O BNDES está sobreemprestado, quem precisar de dinheiro agora terá dificuldades, ninguém está emprestando nada para ninguém."

Quanto sobre de quem é a culpa, FHC vai com a maioria: o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush e o ex-presidente do Federal Reserve, Allan Greenspan "e todos aqueles que deveriam fiscalizar e não fiscalizaram".

Segundo ele, o governo Bush foi fiscalmente irresponsável, elevando o total da dívida em 6% do PIB norte-americano. "A crise atual é resultado da exuberância irracional", disse. "Bush finge que não é com ele, aliás não é só ele que faz isso", ironizou, noutra alfinetada a Lula.

Ele destaca o fato de o governo norte-americano e os bancos centrais europeus estarem socorrendo instituições financeiras quebradas, diferença crucial em relação à crise de 1929. "Contando EUA e Europa, foram jogados nos mercados financeiros mais de US$ 1 trilhão, praticamente o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil".

FHC declara-se surpreso com o fato de o candidato democrata Barack Obama não estar disparando nas pesquisas de intenções de voto, diante da crise republicana.

"Acho que é por causa do racismo do norte-americano", disse, acrescentando, no entanto, que agora, com o arrefecimento da situação econômica, o debate em torno da sucessão nos EUA deverá ficar mais sério. "Vemos um governo republicano estatizando, acho até que ele não fez isso intencionalmente".

Para Conceição, Brasil tem "baixo risco real"

Catherine Vieira, do Rio
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Tentar crescer na defensiva será o desafio para os países a partir de agora, na visão da economista Maria da Conceição Tavares. Ela diz que embora exista um colapso do crédito externo, o Brasil está numa posição privilegiada e defende que há e continuará existindo recursos internos para financiar os investimentos, que podem chegar a uma taxa de 21% em 2010. "Nosso mercado não depende de dólar e isso é uma novidade. Não nos ocorreu nunca na história do Brasil. Hoje somos um país de baixo risco real, o que é raríssimo", disse.

Para Conceição, por ironia e porque o país está numa fase de "muita sorte", a política econômica dos ortodoxos acabou fazendo um favor ao país. "Foi por conta desses juros altos que nossos bancos não se aventuraram nessas trapalhadas todas nas quais os bancos estrangeiros embarcaram e que agora estão gerando esse colapso", afirmou.

Segundo a economista, os recursos públicos e da poupança forçada dos trabalhadores, que dão lastro aos financiamentos de bancos como o BNDES, Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil, são robustos. "O emprego e a formalização estão aumentando, então é provável que os fundos de pensão dos trabalhadores cresçam e nenhum deles se meteu nessas aventuras em que os americanos se meteram", disse. "Os recursos fiscais também crescem a medida que o país cresce e investe, o que eleva o autofinanciamento", completa.

Para ela, é provável que as proporções de origens dos recursos internos fiquem semelhantes, com o auto-financiamento em 50%, a poupança forçada dos trabalhadores em 30% e os recursos fiscais com o restante. "Tudo isso está aqui no mercado nosso", afirma.

Nesse cenário, Conceição, que participou do lançamento do segundo número da publicação "Memórias do Desenvolvimento", do Centro Internacional Celso Furtado, concordou com a projeção feita pelo superintendente do BNDES, Ernani Torres, de que a taxa de investimento vá chegar a 21% do PIB em 2010. "Mas não é para passar muito disso não, não me venham com essa taxa de investimento chinesa", ponderou. Para ela, "taxas muito altas acabam mal, como ocorreu na Rússia".

De bom humor e "em casa", ela fez a alegria da platéia que a assistia ontem, num auditório do BNDES, com suas análises e tiradas. Para Conceição a crise atual nasce da excessiva falta de regulamentação do mercado dos EUA, que ganhou força a partir da década de 90 e avalia que, no cenário atual, os Estados Unidos não são mais o país hegemônico.

"Pode ser ainda dominante, o dólar ainda pode ser a referência, mas a hegemonia acabou, eles dizem "A", os chineses dizem "B" e outros dizem "C". Eles não exportam mais seu modelo de mercado para o mundo como ocorreu antes", disse, notando que, apesar das ações do Fed, a crise segue seu caminho. "O mundo vai ter agora uma multipolaridade e não é uma novidade, o capitalismo já viveu muito tempo sem hegemônicos".

Ela defende que os liberais continuarão existindo, mas não ditarão as regras absolutas. "Vamos voltar a ter uma etapa mercantilista, para mim está claro. A etapa liberal já estourou, acabamos de chegar ao fim da dita", afirmou. "A idéia da ordem mundial, era bom vocês esquecerem. Vamos viver um belíssimo período de uma grande desordem."

'Brasil viveu bolha que agora se esvazia' (Juan Pablo Fuentes)

Juliana Rangel
DEU EM O GLOBO

Responsável pela cobertura da América Latina no site Economy.com, braço de análise da agência classificadora de risco Moody"s, o economista Juan Pablo Fuentes diz que o "Brasil viveu uma pequena bolha, na época de bonança, que agora se esvazia". Ele prevê um 2009 mais difícil, mas nada como uma crise.

Como o senhor avalia a intervenção do Federal Reserve (Fed, o BC dos EUA) na AIG? Os mercados reagiram mal...

JUAN PABLO FUENTES: Sem nenhuma empresa privada disposta a ajudar, o Fed não tinha saída a não ser resgatar a AIG. O problema é que essa ação ressaltou a gravidade da crise.

A Bolsa, no Brasil, já caiu 28% no ano, mais que Dow Jones, Nasdaq e outros mercados americanos e da América Latina. Por quê?

FUENTES: Não há nada de errado com o Brasil. Este movimento de venda a que estamos assistindo é global. A única razão para a Bovespa estar caindo mais rápido é que, no período de bonança, também subiu mais. A Bovespa ainda tem ganhos de 44% (em dólar) na comparação com o fim de 2005, e o Dow tem alta de apenas 1%. A Bovespa viveu um pequeno período de bolha, agora está se esvaziando.

Em quanto tempo a Bolsa se recupera?

FUENTES: Não esperamos uma correção muito severa, apesar de acharmos que os mercados não chegaram às suas mínimas. Assim que as coisas se estabilizarem, as ações no Brasil irão subir aos poucos, mas não antes de 2009.

Qual é a melhor forma de os brasileiros lidarem com a crise?

FUENTES: Com a alta dos juros no Brasil, os títulos do governo parecem uma boa opção para investidores locais. Eles devem ter em mente que o movimento de venda na Bovespa é causado por investidores estrangeiros que estão fugindo de ativos mais arriscados. Eles não distinguem o Brasil do Chile ou do México. Para eles, todos são emergentes e, conseqüentemente, oferecem maior risco. Já os brasileiros devem lidar com isso de forma diferente, pois entendem melhor a economia do país.

O diretor do FMI Dominique Strauss-Kahn disse que esta crise não tem precedentes...

FUENTES: Essa realmente é uma crise sem precedentes. Em 2001, o que aconteceu, foi uma leve recessão. A crise atual tem características similares à de 1929, mas não deverá provocar uma depressão como a de 1929.

O crescimento dos países da América Latina ficará comprometido?

FUENTES: A região continua com força, em sua maior parte. O crescimento de países como Brasil, Chile e Peru continua surpreendentemente robusto. As más notícias: o cenário externo está se deteriorando muito rápido. Isso vai pôr muita pressão sobre a América Latina, já que os preços das commodities vai cair e a demanda externa também. Adicionalmente, o custo de financiamento para a região vai subir. 2008 será ainda bom ano para a região e para o Brasil, em particular. O de 2009 será mais difícil. Mas não estamos prevendo uma crise.
O ministro Mantega disse que, se fosse alguns anos atrás, o Brasil agora estaria de quatro. O senhor concorda?

FUENTES: Absolutamente. O Brasil está em excelente forma para encarar a turbulência atual dos mercados. Mas o desafio será muito maior nos próximos meses.