terça-feira, 21 de outubro de 2008

Homenagem ao ex-líder comunista Hércules Corrêa

Aos 78 anos, morreu na noite de quinta feira (16/10/2008) em conseqüência de um acidente vascular cerebral (AVC), o líder comunista e sindicalista Hércules Corrêa dos Reis.

Ex-deputado estadual do PTB cassado no golpe militar de 1964, Hércules Corrêa foi fundador e dirigente do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) entre 1961 e 1964, além de membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro até l989. Viveu clandestinamente, com o codinome de "Macedo", até 1975, quando foi obrigado a fugir do país e se exilou em Moscou.

Voltou ao Brasil com a anistia de 1979. Polêmico, escreveu vários livros, entre eles, A Classe Operária e seu Partido, Programa Comum, O ABC de 1980, Crise do socialismo, Memórias de um stalinista e Passaporte para o futuro.

Hércules sofria de diabetes e estava internado no Hospital Quinta D'Or, no Rio.

Este blog presta-lhe uma homenagem postando sua entrevista publicada no “Caderno Especial” do Jornal do Brasil no dia 29/7/1979, sob o titulo “O PCB ENCARA A DEMOCRACIA”. Era a visão de um operário sobre a democracia e a recordação que os cariocas tem dele.

Leiam a seguir o texto completo:


HERCULES CORRIEA:

O Partido não é instrumento para vingança


“Muita gente chegou e continua chegando ao Partido com várias nuanças de uma mentalidade sectária, dogmática, esquerdista. Sem se dar conta de que tudo isso foi derrotado e recusado a partir de 1958, pelo próprio Partido. Particularmente os que são de origem pequeno-burguesa, ou de camada média urbana, trazem ou tentarão trazer uma compreensão que não é a correta sobre o nosso Partido. Costumo dizer que esses chegam, aderem a ele, não porque querem transformar revolucionariamente a sociedade, mas por que querem se vingar da sociedade. Toda essa gente precisa convencer-se de que o PCB não é um partido de vingança. Não é um instrumento para alguns da pequena-burguesia que tentaram ser burgueses e não conseguiram, porque a “concorrência” não lhes permitiu. É preciso ficar bem entendido que não queremos vingar-nos da sociedade. Mas. transformá-la revolucio nariamente, como um ato de vontade e decisão das grandes massas”.

E Hércules Correa, mais um dos 18 do Comitê Central do PC.B, um dos mais notórios dirigentes do CGT antes de 1964, quem fala, O “gordo “, como todos o chamam, um dos homens mais procurados pela polícia em todo o Brasil, em 1964, cuja prisão e morte foram anunciadas (e até fotografadas) várias vezes, logo depois da queda de Goulart. Tem 50 anos, dois filhos, três netos que não conhece e a mulher no Bra sil. Para ele o tempo não parece ter passado. Continua com a mesma aparência que ostentava quando foi eleito, inclusive com os votos da UDN de Carlos Lacerda, primeiro-secretário da Assembléia Legislativa da Guanabara, de quem dizia o também udenista Alio- mar Baleeiro: “Está vendo aquele caboclo? É uma força da natureza. Não sei como aprendeu a falar, mas a verdade é que nunca abre a boca para dizer bobagem.”

Como foi sua morte em 1964?

Tudo isso foi obra de vocês, da imprensa, do rádio e da televisão do Rio. E parece que chegou até a outros Estados, porque muito tempo depois disseram-me que em Alagoas, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Bahia, essa história também foi contada. O que houve é que alguém da polícia do antigo Governo da Guanabara decidiu criar e espalhar o boato. Talvez para justificar um assassinato, se me prendessem. O fato é que até o dia 7 de abril de 1964 andei e fui visto por muitos nas ruas do Rio. Só quando percebi que a caça se intensificava é que me recolhi... Do que lembro, essa história durou até 1966. Um telejornal chegou a exibir meu corpo boiando no rio, ali no limite da Guanabara com Caxias. Num programa de notícias do Heron Domingues, disseram também que tinha sido cercado numa fazenda no Paraná por tropas do Exército, mas que conseguira fugir milagrosa- mente. Nunca estive no Paraná, embora tivesse viajado muito pelo Brasil — de onde só sai em junho de 1974. Dez anos depois do golpe, da noticia da minha morte, e de ter cumprido — na clandestinidade — uma intensa atividade política.

Esses dez anos teriam sido os mais difíceis e movimentados de sua história de agitador comunista?

Talvez não. Porque o que trabalhei politicamente de 1960 a 1963 foi uma enormidade. Nesse período tive que combinar, inventar tempo para ser presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Fiação e Tecelagem do Rio de Janeiro, presidente da Comissão Permanente das Organizações Sindicais da Guanabara, Deputado à Constituinte (eleito com 10 mil votos) e, mais tarde (1962), deputado estadual (14 mil votos), sob a legenda do PTB, primeiro secretário da Assembléia Legislativa e dirigente do CGT.

Foram anos em que conheceu muita gente importante, daquela que vocês, comunistas, consideram representantes da “classe dominante”. Como foi seu relacionamento com eles?

De um modo geral, em quase todos os casos, foi sempre cordial e respeitoso. Muitos deles, mais tarde, depois do golpe, deram-me demonstração de amizade. Houve até quem me oferecesse casas e sítios para que não caísse nas mão da polícia e do Exército. Como membro da comissão constitucional, trabalhei e conheci bem Temístocles Cavalcanti, Aliomar Baleeiro, Roland Corbisier, Paulo Alberto, Sandra Cavalcanti. Mui tas vezes tratei com Ministros e com três Presidentes da República: Juscelino, Jânio e Jango. A norma dominante foi sempre a do tratamento respeitoso. Talvez o único Ministro de Estado com quem tive um desacordo foi o da Justiça do Governo Juscelino Kubitschek. Ele já se chamava Armando Falcão. Foi durante a greve da paridade. Dr. Falcão quis me prender em seu gabinete, e reprimir violentamente a greve. Disse-lhe que aquilo não ia dar certo, não resolveria coisa alguma, ao contrário. Felizmente estava presente também o Tenório Cavalcanti, que gritou mais do que o Ministro, e tudo acabou mais ou menos bem.

Que gênero de participação, com que experiência e visão vocês pretendem voltar ao Brasil?

Não devemos em hipótese alguma nem praticar nem permitir, nesse processo político brasileiro, o que nós chamamos de radicalização. Nem quando ela pa reça motivada por muito boa intenção. Radicalização, em política, sempre houve e haverá. Mas só se justi ficou e justifica como uma ato de vontade e de estado de consciência das massas. Jamais de alguns indivíduos. Esse é o ensinamento que tivemos antes de 1964, e foi também a causa da derrota de 1964. Não que nós, comunistas, tenhamos sido os únicos responsáveis por aquela radicalização, mas porque fomos bastantes responsáveis, na medida em que dela participamos e a estimulamos. Tínhamos, por exemplo, um Governo como o de João Goulart, com seus defeitos, suas debilidades, mas sempre um Governo que se esforçava para manter o funcionamento das liberdades democráticas no país. Em certo momento não demos muita importância a essas suas características, passamos a achá-lo um Governo de conciliação. E passamos a combatê-lo. No terreno do movimento sindical, em vez de ter em conta que havia um aprofundamento das contradições na sociedade brasileira, que era importante que tudo isso se desenvolvesse, em favor da classe operária e dos trabalhadores, e que era importante seguir, levar adiante o processo democrático - o. qüe fizemos? Optamos exclusivamente pela greve. Deixamos de . solucionar uma série de questões, como a dos salários, usando outras formas de luta, outros mecanismos. Uma forma de paralisar a produção, que nem sempre ajudava a encontrar a solução justa para nossos problemas. Só deu pretexto à burguesia para descarregar sobre a classe trabalhadora o ônus da inflação. Com isso não digo que todas as greves foram erradas. Digo que não esgotamos, em cada momento, toda uma linha de negociação, antes de recorrer à instância da greve. Geralmente nosso posicionamento era:primeiro a greve para depois negociar. Um posiciona mento que se transformou em elemento de radicalização. Outro exemplo, outro elemento de radicalização?. O nosso engajamento com a palavra de ordem de “reforma agrária na lei ou na marra”. Não havia força acumulada para esse tipo de palavra de ordem e muito menos para a ação que ela devia desencadear.

Então a linha do retorno de vocês é de prudência e cautela, talvez até de preservação do status quo?

“Vamos seguir com posição contrária a qualquer ação que não corresponda a um nível de consciência e a uma participação das massas. Sem esse nível de consciência e participação, nossa posição é pela busca de caminhos, meios e formas para a conscientização e para a integração das massas. Portanto não ficaremos naquela de defender o status quo. Lutamos pela transformação da sociedade, logo não faz sentido optar pelo status quo. A questão é de forma, é do modo de realização. Na busca de tudo isso, praticaremos, como estamos praticando, uma posição de prudência, de equilíbrio, de uma orientação de bom senso.”

A hipótese da legalidade do PCB não implicária fatalmente no esfacelamento da frente oposicionistã, que até aqui se reuniu no MDB?

“Se os políticos das outras organizaçõës tiverem bom senso, não acredito nesse esfacelamento. O que pode haver, de fato deve concretizar-se, é uma separação no plano orgânico. Mas não acredito que todos aqueles que sofreram esses 15 anos de repressão, de dificuldades, e que estiveram empenhados na luta pa ra aglutinar uma frente única ou uma confederação de oposições, vão perder a cabeça. Que queiram avançar além da separação orgânica, para uma divisão política diante das questões que estão colocadas na ordem-do-dia. Nossa posição é para manter um entendimento com todas essas forças. Porque só foi com essa unidade que se conseguiu este resultado, isto que está acontecendo hoje no Brasil. Nós acreditamos que é possível manter essa unidade mesmo no momento da separação orgânica. É possível e vamos batalhar por isso”.

Acredita que se fala seriamente em democracia, no Brasil?

Quero crer que sim, pelo menos da parte daqueles que se bateram contra o regime. Por parte do regime, se alguém, dentro do Governo, está falando honestamente, vai ter que dar prova. Vai ter que provar com atos. E a primeira delas seria por-se ao lado da Constituinte.

Não admite que o empenho e as identificações da Igreja com as lutas sociais, pela redemocratização do país, possam ter se esgotado com a Anistia?

Em defesa das liberdades, em defesa dos direi tos humanos, da democracia, quero crer que não. Mesmo porque se a Igreja tentar abandonar essa bandeira, novamente terá dificuldades no relacionamento com os católicos com a grande massa que vai à Igreja. É muito difícil aceitar que a Igreja involua tanto. Até porque a posição da Igreja brasileira, na Conferência de Puebla, foi conseqüente, confirmou sua posição. Na América Latina, a Igreja brasileira, em Puebla, foi aquela que mais contribuiu para uma tomada de posição, digamos, democrática, equilibrada. Pela própria experiência que cumpriu nos últimos 15 anos, a Igreja brasileira não vai abandonar essa luta, não vai deixar esse campo. As diferenças entre as posições da Igreja e as nossas vão surgir de modo acentuado. Não tenho dúvida de que será assim. Mas isso é normal: democracia é assim mesmo”.

Em 1945, depois de nove anos de prisão numa cadeia da ditadura Vargas, Luiz Carlos Prestes surpreendeu o país apresentando-se ao lado do ditador no célebre comício do Estádio do Pacaembu, em São Paulo. Hoje seria possível a repetição de um reencontro desse tipo, do PGB com representantes dos governos militares?

Não acredito nessa repetição. Mesmo porque as épocas, os homens, as forças políticas são distintas, com histórias e objetivos diferentes. O Getúlio que saia do Estado Novo deu uma guinada na direção de posições nacionalistas. Deu uma demonstração de querer atender certas reclamações populares, inclusive dos operários. Ainda agora discute-se muito essa posição do Getúlio. Os articuladores do golpe de 29 de outu bro de 1945 disseram que tudo foi demagogia, feita com a esperança de manter o Estado Novo. É possível que tenham razão. Mas o fato concreto, objetivo, é que Getúlio Vargas caiu, foi deposto, mais por isso do que por outra coisa. Outro fato indiscutível é o de que ele foi eleito em 1950 reafirmando a posição que começou a assumir em 1945. E o resultado é que desencadearam contra ele - as mesmas forças que o depuseram - uma grande campanha que o levou ao suicídio. É possível, pode-se até aceitar como provável a tese de que em 1945 Getúlio fazia demagogia. Getúlio era muito esperto, conquistou a fama de político sagaz. Mas, na época, nós não podíamos trabalhar à base dessa indagação: se se tratava ou não de sagacidade ou demagogia de Getúlio. O que funcionava era um outro dado, um outro elemento: por uma série de circunstâncias, Getúlio adotou medidas que, se não tivessem sido contidas, se prosseguissem, conduziriam o país a um processo democrático mais profundo. Naquela época havia, era visível, uma grande presença das massas nas ruas. Não é possível - para os que viveram aqueles dias - esquecer as manifestações e as campanhas populares de 1945 e 1946. O Governo de hoje, ao contrário, comporta-se de modo inteiramente diverso: há quase dois anos apresenta-se todo empenhado em absorver as reivindicações democráticas.


Tenta preservar toda uma legislação repressiva, resguardar todo o aparelho do Estado montado sobre a repressão. Quando as forças populares, de oposição, começavam a transformar o AI-5 em alvo de um amplo movimento de massas, o regime fez uma flexão tática, absorveu essa campanha, transferiu uma boa parte do AI-5 para a Lei de Segurança. Cedeu em alguma coisa, mas salvou o que, para ele, era o mais importante. As salvaguardas, por exemplo, foram introduzidas na Constituição. Mais recentemente, tive mos a campanha pela anistia. Quando começou a se transformar numa grande campanha de massa, o Governo procura esvaziá-la.


Introduz discriminações graves no projeto de anistia. Tudo isso torna evidente demais o fato de o Governo e o regime encontrarem-se numa situação de dificuldade. Mas, ao mesmo tempo, significa que eles têm reservas, capacidade de manobra, força. Dispõem-se a enfrentar todo o avanço do movimento democrático. E é por isso que o caso Figueiredo nada tem a ver com o caso Getúlio. O que o General Figueiredo procura é uma fórmula para manter esse modelo econômico que eles montaram no Brasil, baseado na superexploração das forças trabalhadoras, que justificou a aplicação de uma terrível, aperfeiçoada repressão.”

A distância, como julga a importância e a força das oposições a regime atual?

“Digo como Gregório Bezerra: nós não somos pessimistas, somos otimistas”. Mas nosso otimismo não é. gratuito, ou ‘exagerado. Justifica-se porque o avanço do movimento democrático no ‘Brasil é patente. Facilmente verificável. A sociedade brasileira sempre rejeitou o regime, em diferentes momentos, por diferentes formas. Resistiu. O regime não conseguiu impor a sua ideologia. Tentou fabricar, produziu, mas o “ame-o ou deixe-o” não pegou.

Mas a marcha com “Deus pela família” pegou?

Mas isso foi para dar o golpe. Num momento de mobilização, de transição, em que as pessoas não sabiam bem quem era quem e o que era quê. Na hora em que o processo da grande repressão teve início, foi- se tendo uma resistência crescente. A maior manifestação disso foi dada pelo papel da Igreja católica, que participou do golpe, mas que opôs uma resistência de terminante ao processo de repressão - e hoje ocupa a posição que ocupa. É por tudo isso que somos otimistas. E que vemos também nossas responsabilidades acrescidas: com o dever de oferecer a melhor contribuição nossa para combater a ideologia fascista, que causou um grande prejuízo ao desenvolvimento espiritual do povo brasileiro.

Essa resistência que você observa não pode estimular, ou dar novo ânimo a outra tentativa de luta armada?

Os pescadores de águas turvas não faltam, e com certeza vão tentar trabalhar ao seu modo. Minha impressão é a de que .o período e as experiências de 1968/73 mostraram que esse não é o caminho. ‘ O processo brasileiro, hoje, não permite qualquer visualização, qualquer tentativa para resolver nossos problema no plano da luta . armada. Isto seria uma invencionice, miragem ‘construída pelos grupos de ultra esquerda que já foram derrotados, ou de focos de fascistas.


Esses dois extremos nunca perderam o hábito ou mania de cutucar o’ diabo com vara curta. Essa não é a posição do nosso Partido, não é a posição da Igreja, não é à posição dos intelectuais, nem do PTB que tenta reorganizar-se. No caso de nosso Partido, vamos lutar e estamos lutando pela sua legalidade, porque queremos, através do debate aberto, franco, concorrer às eleições, disputar os pleitos nos sindica tos, nas sociedades de amigos de bairros, enfim, onde houver uma batalha. Quer dizer que queremos e aceitamos o embate político dentro da convivência democrática, para que nosso povo possa evoluir politicamente. A experiência e o conhecimento que tenho do PCB me dão a certeza de que ele jamais colocará a questão da luta armada. Inclusive’ porque ela não é do interes se da classe operária, O operário não está interessado em mortandade. Conheço-o bem para fazer essa afirmação com tranqüilidade e segurança absolutas. Vivi com ele, trabalhei com ele, fui e continuarei a ser um deles. Minha classe não joga nessa solução.”

A experiência do exílio, a ‘convivência e o conhecimento direto de tantas fórmulas ou práticas de socia lismo, serviram para definir o modelo que vocês pretendem para o Brasil?

Tudo isso nos enriqueceu e estou convencido de que vai nos ajudar a formular uma orientação mais abrangente, mais consentânea com a .realidade brasileira. Hoje temos melhores condições para levar ‘em consideração a experiência de vários países. Mas só isso: levar em consideração.. Friso bem essa coisa, porque um dos erros que cometemos na vida e na prática de nosso Partido foi esse, foi o chamado erro da cópia de modelos. Mas felizmente hoje, todos, qualquer um de nossos dirigentes, tem a consciência de que nenhuma cópia nos serve.

A curto prazo, que remédios o PCB recomenda ria para os males da economia brasileira? Um incremento da estatização poderia ser um deles?

A curto prazo, não se deve colocar essa questão da estatização. Mesmo porque, para o caso brasileiro, esta não é a melhor palavra. Melhor seria falar-se em nacionalização. Além de defender as liberdades democráticas, as forças políticas de oposição deveriam unir-se em torno dessa necessidade de formular uma alternativa para o modelo econômico posto em prática nos últimos 15 anos. Esse deveria ser outro fator de unidade, e de mais um esforço comum. A meu ver qualquer alternativa ao modelo econômico deve partir de uma restrição ao poder dos monopólios.


Por exemplo, no problema dos salários: praticar uma política salarial antimonopolista. Criando-se um fundo salarial com base no superlucro dos monopólios multinacionais. Um fundo que cobriria pelo menos parte das despesas com salários das pequenas e médias empresas nacionais. De modo a permitir aumentos salariais em todas as faixas, e de certo modo aumentando o poder de compra, o poder de consumo do mercado interno.

E isso não seria urna nova e curiosa forma de participação dos lucros?

Não. Seria simplesmente a criação de mais um fundo, num Brasil que tem uma grande tradição e uma grande imaginação para criar fundos. Com ele, o pequeno e médio empresários poderiam recorrer com menor insistência ao Banco Central, ao Banco do Brasil, atrás do capital de giro. Os grandes grupos monopolistas, dando uma outra função aos seus grandes lucros, beneficiariam o fortalecimento e a expansão de um mercado interno (para eles cada dia mais essencial, num mundo que cada dia quer importar menos). E o trabalhador da pequena ou média empresas teria novas condições para manter seu salário atualizado com os aumentos do custo de vida.

Paes, em desespero, sobe o tom nos ataques a Gabeira


Verde diz que é ciúme e evita polemizar; desde sábado ele decidiu andar com escolta

Gabeira preferiu não polemizar e usou de ironia para dizer que Paes está com ciúmes.

- Isso é um pouco de ciúmes porque os artistas se concentraram muito na minha candidatura. Ele (Paes) só conseguiu, em um determinado momento, um conjunto de sambistas que foram atraídos para uma feijoada.

Para Gabeira, o peemedebista deveria se preocupar mais com o seu própio programa. Sobre os ataques de Paes, que o chamou de comentarista de propostas, Gabeira disse que tem o apoio de toda família de João Saldanha.

- Continuarei respeitando o programa e a campanha dele. Vou deixar que me ataque porque é possível que, nessa reta final, a única esperança dele seja o ataque.

Gabeira também se defendeu sobre os projetos de tráfico de mulheres e corrupção de menores:

- É uma tentativa de deformar os meus projetos e de me comprometer com o eleitorado mais conservador - disse Gabeira, que citou uma frase do personagem Sancho Pança, de "Dom Quixote": - "Olha mestre, olha bem o que você está falando".

Desde sábado, Gabeira passou a ser acompanhado por dois seguranças. Segundo o candidato, eles são policiais ou ex-policiais e trabalham voluntariamente. A coordenação da campanha decidiu adotar a escolta por causa do temor de que hajam armações contra o candidato nesta última semana.

- É uma semana delicada, reta final. Não queremos que aconteça algo por descuido. É só uma preocupação. Nunca recebemos nenhuma ameaça, mas um pouco de precaução é bom - disse ele.

Dois "Obamas": Gabeira e Kassab


Arnaldo Jabor
DEU EM O GLOBO


A vitória desses homens moderniza a política


Nos velhos tempos do Partidão, o PCB, havia o conceito de "massa atrasada". Assim eram chamados os militantes que ainda não eram batizados pelas luzes salvadoras de Lenin ou Stalin, para fazer com fé e preparo a "revolução brasileira", esse milagre que nunca chegou. Hoje, a "massa atrasada" continua sendo o alvo da velha política brasileira e une tanto o populismo de direita do Rio como o populismo de esquerda de São Paulo.

No entanto, as eleições para a prefeitura de São Paulo e a do Rio talvez inaugurem uma nova lucidez política pelas "massas atrasadas" ou massas iludidas ou massas do "chopinho" ou massas de manobra de supermercados evangélicos.

É uma ilação arriscada, mas o fenômeno Barack Obama com seu bordão de "mudança" pode ter uma sutil influência nas prováveis vitórias de Gabeira e Kassab.

Há algo novo nesta disputa: estamos entendendo que a competência de uma administração pública é mais importante que ideologias, que a eficiência presente conta mais do que o velho conto-do-vigário do "futuro"; gestão, em vez de revolução.

Bush sujou o nome da América, e Obama nasce desse vexame de oito anos.

Gabeira e Kassab podem ser dois "Obamas".
Este artigo é uma adesão explícita aos dois candidatos, não porque prefiro branco ou preto, "fla ou flu", fulano ou sicrano, mas porque sou um cidadão preocupado com o delicadíssimo momento da vida brasileira, em que práticas maléficas por roubalheiras cariocas e utopias virtuais paulistanas têm de ser apontadas.

Há semelhanças entre Gabeira e Kassab. Gabeira pode desconstruir uma velha mentira carioca, e Kassab, uma recente mentira paulista. Gabeira será uma interrupção nas décadas da sordidez populista que rege o Rio, será um break nos resquícios de chaguismo, de moreirismo, de brizolismo, de garotismos e da grande anomalia que foi Cesar Maia, o prefeito que virou blog. Além da política, Gabeira é uma mudança cultural.

Em São Paulo o perigo era outro (creio que afastado): se Marta fosse eleita, a cidade congestionada de problemas urgentes seria apenas um trampolim ideológico para fortalecer o PT nas eleições de 2010, para o que restou da gangue bolchevista que o salvador Jefferson devastou. Os petistas sempre desconfiaram da democracia "burguesa", usando-a como um "meio" para chegarem a um poder enfeitado pelas jóias falsas de um socialismo imaginário. E pior: como se acham "acima" do mundo "burguês", podem cometer todas as sacanagens, justificadas pelo "ideal": acham que o mensalão foi necessário, pois assim funciona o sistema burguês, que as alianças mais sujas são inevitáveis, e têm até uma visível volúpia "revolucionária" (quase sexual) em se aliar com o mal em nome do bem.

Fingem ignorar crimes políticos, como vimos nos últimos anos. Sindicatos acabam de provocar quase uma invasão do Palácio do Governo de São Paulo, sob o comando de Paulinho da Força, usando a Polícia Civil para dissolver as acusações que pendem sobre si; Lula pode defender Marta, depois de sua gafe contra Kassab, dizendo que ela é que é vítima de preconceito, como ele foi por não ter diploma, tática tradicional do PT desde que entrou no poder: a vítima é o réu ou vice-versa.


Kassab é a vitória do útil, do concreto sobre o abstrato, porque, se o Rio foi corroído por décadas de corrupção, moleza e burrice, São Paulo é visto pelo PT como um "meio" para algo mais que não está ali. Para eles, a democracia não é um fim em si mesma. E as prefeituras também não.


Vêem com desprezo o conceito de "administração", que acham algo "menor", até meio reacionário, pois administrar é manter, preservar, em suma, "coisa de capitalistas". Kassab pensa no presente. Sua ideologia vem das coisas, das ruas, dos meios-fios, dos centros degradados pelo crack, vem dos imundos outdoors que enfeavam a cidade, veio da clareza de que São Paulo precisava ser limpo, que recapear 1.300km de estradas é mais importante que bravatas ideológicas, que pavimentar periferias é mais "de esquerda" que chorar pela sorte dos miseráveis, que subprefeitos têm de ser técnicos e competentes, em vez de "comissários do povo" pelegos enfurnados em "boquinhas" do estado.


Gabeira, eu conheço há 40 anos. E não é por isso que voto nele, pois também conheci muito vagabundo nesse tempo.

Gabeira vai além de partidos ou ideologias fixas. É uma pessoa em transe. Houve vários "gabeiras". Na ditadura, sua passagem pela luta armada teve a marca da imaginação - o caso do embaixador americano inovou métodos em toda a esquerda mundial.


Exilado, atualizou-se no exterior, percebendo outros níveis de luta política que agregavam comportamentos sociais, sexuais, ecologia, direitos humanos e a realidade do mercado. Em suma, ele entendeu que o pensamento político "dedutivo", genérico, não levava a nada, que ideologias têm de surgir dos fatos a resolver e não o contrário. Sempre teve uma visão quase "artística" da política, até o dia em que botou o dedo na cara do Severino Cavalcanti, aquele que levava bola dos garçons do restaurante da Câmara e que Lula não teve vergonha de apoiar agora.

No Brasil de hoje, pós-ideológico, emergente, as prefeituras têm um papel purificador. Podem ser as células-tronco de um país infeccionado pelo clientelismo e pelo aliancismo torpe. As prefeituras são laboratórios de democracia e imaginação criadora. Artistas e intelectuais cariocas têm de se mexer agora, botar a boca nas ruas, pois a vitória de Gabeira ainda não é certa.


Gabeira e Kassab têm de ser eleitos... Não apenas para melhorar as cidades a que presidirão, mas para haver um sopro de oxigênio na velha esquerda ou na velha direita, que, como escreveu Norberto Bobbio, se igualam pelo ódio à democracia.

Nunca antes neste País


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

No próximo domingo, as urnas do segundo turno das eleições municipais em cidades com mais de 200 mil eleitores produzirão mais que uma lista de vencedores e perdedores.

Delas certamente resultarão alterações profundas em biografias, teorias, estratégias, correlação de forças e mudanças significativas no comportamento de políticos, partidos, alianças.

É um dado novo em matéria de eleições municipais, sempre criticadas por excessivamente mornas desde a retomada do voto direto para prefeito, em 1985.

Nesse período, uma ou outra provocou impacto. Seja pela novidade, como a eleição da petista Maria Luiza Fontenelle, em Fortaleza, ou pela mudança de expectativa na última hora, como a vitória de Luiza Erundina sobre Paulo Maluf e a derrota de Fernando Henrique Cardoso para Jânio Quadros, em São Paulo.

Casos isolados, nenhuma delas teve significado conjunto, repercutiu de maneira acentuada no cenário nacional ou fez revelações capazes de reorientar condutas para embates futuros.

Tanto que a oposição apegou-se ao dogma segundo o qual eleição de prefeito não ultrapassa os limites do município e sublimou antecipadamente o “passeio” dos partidos aliados ao governo federal que, por isso mesmo, tentou dar às disputas um caráter de plebiscito nacional em torno da popular figura do presidente Luiz Inácio da Silva.

Não aconteceu o passeio, não ocorreu o plebiscito, não houve julgamento contra ou a favor. Em compensação, sobraram confrontos eletrizantes, resultados surpreendentes, políticos saíram bem menores, outros ficaram enormes, teorias foram fulminadas, conceitos revistos, gente que era coadjuvante passou a figurar como protagonista e vice-versa.

Nada se passou de acordo com as regras preestabelecidas, o inesperado continua a produzir surpresas todos os dias e no domingo, com viradas ou sem elas, haverá prefeitos eleitos politicamente perdedores bem como candidatos derrotados com a aura de vencedores.

Isso sem contar os políticos que passam definitivamente da segunda para a primeira divisão dos produtores de votos e aqueles que conseguiram bom desempenho contrariando o manual do político tradicional.

Caso típico de Fernando Gabeira, no Rio. Entrou na disputa e passou para o segundo turno com o mesmo jeito de “outsider” de sempre. Nos debates jogou na inteligência deixando de lado as normas de marketing, enquanto o adversário, Eduardo Paes, se ocupava em dar repetidos nós na própria trajetória.

Se ganhar, Paes terá assumido a marca do político disposto a “tudo” pela cidade, inclusive se humilhar em público, manipular preconceitos e alimentar na população a idéia de que é dever do bom governante manter relação de camaradagem e subserviência com o poder central.

Em São Paulo, Marta Suplicy consolidou a imagem de candidata de fôlego limitado que em algum momento - a exemplo de Ciro Gomes - pode falar ou fazer algo contra si. Seu grupo planejava sair da eleição com uma candidatura presidencial para confrontar a opção Dilma Rousseff e acabou com uma hipótese de candidata ao governo do Estado a mercê dos adversários internos.

Em Belo Horizonte, fracassaram a certeza da transposição de uma relação administrativa entre PT e PSDB para a política e a tentativa de imprimir um caráter de experimento nacional à união dos dois partidos.

Em Salvador, a luta da fase final entre PT e PMDB simboliza o que poderá vir a ser a conseqüência mais séria em termos da base de apoio do presidente Lula: a perda do principal parceiro para a oposição e, de imediato, o empenho do Planalto para evitá-la.

O PMDB passará a dar as cartas com muito mais peso e isso, evidente, altera a correlação de forças dentro do governo e, depois, para a sucessão em 2010. Baiano, o ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, entrou para o rol de primeira grandeza e será personagem essencial dessa articulação.

Uma eleição municipal peculiar, cujas peculiaridades completas só serão visíveis a partir de domingo. Apenas uma tese permaneceu intocada: a de que o confronto com o presidente Lula faz perder votos.

Ninguém se arriscou a fazer o teste. Lula não foi posto em xeque. Ao contrário, todos os políticos mostraram-se amenos com ele. Ficou acima dos conflitos, desviou-se de quase todos os terrenos minados, preservou-se, foi preservado e, por isso, não se sabe se seus pés são mesmo de aço ou se são feitos de barro.

Bela viola

Examinadas com lupa as pesquisas em Belo Horizonte, a campanha de Márcio Lacerda verificou que nas classes D e E o adversário Leonardo Quintão saiu-se bem na estratégia de posar como aliado de Aécio Neves, porque o eleitor acreditou que havia dois candidatos “amigos” do governador: um simpático (Quintão) e outro carrancudo (Lacerda).

E se a origem do produto era a mesma, sentiram-se à vontade para escolher aquele com a melhor embalagem.

A sucessão de ponta-cabeça


Raymundo Costa
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Lula adiou a reunião de ontem da coordenação política do governo, mas entre os partidos da base aliada, especialmente entre aqueles situados mais à esquerda do espectro político, já se dispõem de avaliações bem acabadas dos resultados eleitorais. E elas não são favoráveis ao governo, muito menos à candidata do peito do presidente, a ministra Dilma Rousseff (Casa Civil). O segundo turno dará os contornos definitivos, mas o quadro riscado até ontem parece pouco suscetível a mudanças, até domingo.

Há uma certa excitação entre os padrinhos da candidatura do PSB à Prefeitura de Belo Horizonte, Márcio Lacerda, que estaria em processo de franca recuperação. Algo raro, porque o adversário abrira 18 pontos de vantagem e estava em curva geométrica ascendente.

Aparentemente a mudança se deve ao fato de o governador Aécio Neves e o prefeito Fernando Pimentel terem tirado de cena "o poste" Márcio - que os dois praticamente haviam nomeado prefeito - e em seu lugar colocado Márcio Lacerda, do PSB. Deram identidade própria ao candidato. Se a virada de fato ocorrer, Aécio voltará a ser um "player" importante na sucessão.

Na prática, os resultados do primeiro turno, segundo partidos aliados ao Planalto, indicam até agora dois grandes vencedores: politicamente, o governador de São Paulo, José Serra; partidariamente, o PMDB, que chegará à próxima segunda-feira com um crescimento "extraordinário".

O presidente Lula não aumentou nem diminuiu. Ele continua popular. Mas acabou a mística de que o carisma do presidente é bastante para eleger um "poste". Independentemente de todas as qualidades que Dilma possa ter, ela não dispõe de votos.

O crescimento "extraordinário" do PMDB é o que mais chama a atenção dos partidos que integram a coalizão governista, inicialmente 11, mas que hoje já beiram os 14. É certo que os pemedebistas já dispunham do maior número de prefeituras do país, mas a curva da legenda era descendente, a cada eleição.

Em 2008, essa curva voltou a apontar para cima com a eleição de mais de 1,2 mil prefeitos. Mais que isso, pode vir a se transformar de um partido dos grotões - que ainda detém - em uma sigla urbana. Pode deixar de ser coadjuvante para se tornar protagonista. Mas não tem um nome.

No primeiro turno, o PMDB manteve fincada sua bandeira em duas capitais: Campo Grande (MS) e Goiânia (GO). No próximo domingo, é favorito em Porto Alegre (RS), Florianópolis (SC) e, pelo que indicavam as pesquisas do último fim de semana, Belo Horizonte.

A avaliação dos aliados do governo contabiliza também, entre os favoritos, a candidata a vice-prefeito de Gilberto Kassab, que é do PMDB. Além dessas capitais, os pemedebistas disputam em pé de igualdade no Rio de Janeiro, Salvador e Belém.

Some-se a isso o que o PMDB já tem: as duas maiores bancadas do Congresso, cinco ministérios e, a partir de fevereiro, por um acordo com o PT, o presidente da Câmara, provavelmente o deputado Michel Temer, atual presidente da sigla.

"Isso tudo tem um preço dentro do governo para 2010", reflete, não sem algum desalento, um dirigente de esquerda da base de sustentação política do governo Lula. Por enquanto, os pemedebistas mantêm o discurso tradicional do partido empenhado em assegurar "a governabilidade".

O outro vencedor apontado na avaliação dos aliados é José Serra. O governador de São Paulo fez a aposta certa ao optar pela candidatura Gilberto Kassab (o tucano Geraldo Alckmin nem sequer foi ao segundo turno) e o DEM é favorito para ganhar a eleição na cidade de São Paulo, no domingo.

Serra também estabeleceu cabeças-de-ponte em outras cidades e partidos. No Rio, por exemplo, desde a primeira hora esteve ao lado de Fernando Gabeira (PV). Em São Paulo, amarrou o PMDB com a aliança firmada com o ex-governador Orestes Quércia.

Para os partidos aliados de Lula, além da voracidade natural do PMDB por espaços de poder, preocupa a opção que o partido fará na sucessão presidencial, entre o PSDB e o PT. Principalmente porque Lula não será mais candidato, e a conversa dos pemedebistas com o presidente é uma, e outra com os petistas.

Na análise dos aliados, a sucessão ganhou ainda outro ingrediente novo, além dos resultados eleitorais: a incerteza na economia. Enfim, o jogo que era armado antes da eleição virou de ponta-cabeça e recomeça na segunda- feira em outras bases.

Raymundo Costa é repórter especial de Política, em Brasília. Escreve às terças-feiras

O efeito Powell


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. O apoio do ex-secretário de Estado Colin Powell à candidatura de Barack Obama não é uma peça política importante apenas por se tratar de um republicano de alta estirpe apoiando o candidato democrata à Presidência da República. Ex-membro do Conselho de Segurança Nacional no governo Reagan, e chefe das Forças Armadas Conjuntas no governo Bush pai, a declaração de Powell sem dúvida tem o peso de seu prestígio pessoal. Mas, a análise que fez ao justificar sua decisão vai além, na direção de um governo acima das divisões partidárias, das diferenças de raça, religião e gênero, que é o núcleo da campanha de Obama desde quando, nas primárias, disputava a indicação do seu partido.

Colin Powell soube dar a seu apoio uma dimensão política que inviabiliza a tentativa de se limitar a adesão ao fato de ele também ser negro. O general poderia ter sido, aliás, o primeiro afro descendente a disputar - e talvez vencer - uma eleição presidencial nos Estados Unidos, antecipando em mais de dez anos a meta histórica prestes a ser alcançada por Obama.

Talvez em 1995 os Estados Unidos não estivessem preparados para eleger um negro e o apelo da mulher de Powell para que não concorresse, por receio de um atentado, pode ter lhe poupado a vida e dado espaço para que viesse a ocupar um dos cargos mais altos já exercidos por um negro nos Estados Unidos, a secretaria de Estado no primeiro governo de George W. Bush.

Mas, ter que desistir de um projeto dessa envergadura, quando estavam colocadas condições objetivas que permitiam antever a possibilidade de sucesso, por ser negro, certamente deve ter deixado em Colin Powell um sentimento de frustração que ele pretende superar com sua adesão a Obama.

A maneira elegante, mas firme, com que rejeitou a escolha da governadora Sarah Palin como companheira de chapa de McCain, fazendo a análise de que ela é um indicativo de que o Partido Republicano havia caminhado para a direita política mais do que ele gostaria, foi a crítica severa de um republicano desiludido com os caminhos que o partido, e especialmente McCain, escolheram para tentar ganhar a Presidência.

Como não é possível acusar-se o General Colin Powell de ter-se bandeado para a esquerda, ou de que seja antipatriota, suas críticas aos ataques que o candidato democrata Barack Obama tem sofrido por parte da campanha republicana têm a marca de um soldado que desde a Guerra do Iraque vem discordando do rumo que o partido vem tomando, especialmente pela predominância dos neoconservadores que dominaram as decisões da Casa Branca sob o comando do vice-presidente Dick Cheney.

Na sexta-feira anterior ao anúncio de Powell de apoio a Obama, aliás, estreou no circuito nacional de cinema americano "W", o novo filme de Oliver Stone sobre a trajetória política do presidente George W. Bush, que mostra bem as divergências sobre a invasão do Iraque e o papel do então secretário de Estado, em permanente disputa com Cheney e o secretário de Defesa Donald Rumsfeld. O que deve melhorar a imagem pública de Colin Powell.

Atribui-se a amigos de Powell a informação de que sua defesa da invasão do Iraque no Conselho de Segurança da ONU, baseado em supostas evidências levantadas pela CIA de que Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa - que acabaram se provando falsas -, fez com que se desiludisse com o governo Bush, do qual se afastou paulatinamente.

O fato de que o candidato republicano John McCain conta em sua assessoria internacional com a colaboração de vários especialistas ligados aos neoconservadores do governo Bush ajuda a entender a escolha de Colin Powell, que tem uma visão sobre a guerra do Iraque mais próxima da defendida por Barack Obama.

Mas, o ex-secretário de Estado não se limitou a apoiar Obama em questões militares, e entrou na grande questão dos impostos, que hoje centraliza a campanha presidencial.

McCain descobriu no bombeiro hidráulico José (Joe, the plumber) uma maneira de levar aos trabalhadores americanos sua advertência de que o candidato democrata tem um projeto "socialista" de distribuição de renda através dos impostos. Colin Powell rejeitou também essa tentativa de ligar Barack Obama ao socialismo.

A diferença de seis pontos, embora esteja acima da margem de erro das pesquisas, está dentro do "fator Bradley", que leva em conta o racismo intrínseco do americano médio. Por essa teoria, o prefeito Tom Bradley, de Los Angeles, apontado como o vencedor da disputa pelo governo da Califórnia em 1982, acabou perdendo porque as pesquisas não revelam a tendência do eleitor médio de não votar em negros.

Um artigo de um antigo assessor de Bradley, publicado ontem no "New York Times", no entanto, renega essa versão. Blair Levin, atualmente dirigindo uma financeira, diz que Bradley era um político que não trabalhava com as diferenças, mas sim com o que unia as pessoas, e não gostaria de ser lembrado por um suposto efeito de exclusão.

Segundo Levin, ele não perdeu devido ao racismo, mas a uma lei impopular sobre controle de armas e porque o partido republicano fez um trabalho muito bom de arregimentar eleitores que as pesquisas não detectaram.

É um trabalho desse tipo que a campanha de Barack Obama vem fazendo desde o início, estimulando o comparecimento às urnas e filiando novos eleitores. Em busca do "efeito Bradley" ao contrário.

Crise financeira: hora de mudar a política monetária e cambial


Yoshiaki Nakano
DEU NO VALOR ECONÔMICO


A crise financeira parece ter ultrapassado o seu momento mais crítico. As intervenções decididas e abrangentes do governo inglês, com a nacionalização e recapitalização dos bancos problemáticos, gerou um modelo de intervenção e uma ação coordenada dos governos europeus, asiático e americano. Isto parece ter afastado a catástrofe que poderia ser causada por uma corrida bancária generalizada e falências em massa dos bancos. O próprio governo dos Estados Unidos mudou a sua estratégia, passando a seguir o modelo estabelecido por Gordon Brown. A garantia de liquidez e injeção de novos capitais do Estado parece ter afastado o pânico extremo. Agora os efeitos da crise financeira sobre a economia real começam a aparecer. A recessão nas economias desenvolvidas deverá ser profunda e duradoura.

Um estudo de três economistas do FMI (Claessens, Kose e Perrones, 2008) nos dá algumas referências empíricas sobre a profundidade e duração das crises financeiras. Episódios de colapso do sistema de crédito duram, em média, dois anos e meio e provocam uma contração real no volume de crédito de cerca de 20%. Crises imobiliárias duram em média quatro anos e meio e provocam uma queda no preço real dos imóveis de 30%. E a quebra das bolsas de ações dura cerca de três anos e o valor real cai para metade. As recessões associadas às crises financeiras podem ocorrer com lags e têm duração média de um ano a um ano e meio e resultam em perdas de 4% a 6% de PIB entre o pico e o fundo do poço.

Entretanto, é bom lembrar que a recessão que aí vem resulta de uma crise rara, uma combinação de colapso da bolha imobiliária, quebra das bolsas e crise bancária que resultam em bancarrota do sistema de crédito. Não foi uma recessão cíclica que desencadeou a crise, mas a crise foi engendrada dentro do próprio setor financeiro pelas inovações financeiras, com a utilização indiscriminada e não supervisionada de derivativos e a securitização.

No momento, a crise atingiu um ponto em que um novo círculo vicioso foi acionado: o feed back entre crise financeira e recessão e desta para novas perdas financeiras. A última rodada de queda nas bolsas de valores do mundo inteiro começou a captar este processo. Daí a reação coordenada dos bancos centrais dos Estados Unidos, Europa e da Ásia reduzindo a taxa de juros. Com a forte queda nos preços das principais commodities e do petróleo, o controle da inflação saiu do cenário.

Isto coloca não só a política monetária brasileira em xeque, como trouxe mudanças extraordinárias no cenário econômico brasileiro para os próximos anos. Não se trata de desaparecimento passageiro das linhas de crédito do exterior ou para os exportadores, como nas crises recentes causadas pelas paradas súbitas no fluxo de capitais do exterior. A contração de crédito vem de uma crise estrutural e representa claramente o fim de um longo ciclo de forte expansão no crédito com baixas taxas reais de juros de longo prazo e o fim de um modelo de negócios bancários que se desenvolveu a partir da década de 80. Os governos, tanto dos EUA como da Europa, vão ter que redesenhar um novo sistema financeiro, o que deverá levar anos.

Em épocas de crise financeira como a que estamos vivendo, os mecanismos normais de mercado deixam de funcionar, convenções são quebradas, as visões sofrem transfigurações e comportamentos sofrem mudanças. Surgem descontinuidades que demandam mudanças nas instituições e nas regras de operação. É por isso que o próprio Banco Central do Brasil foi obrigado a rapidamente mudar as regras de depósito compulsório, uma anomalia herdada da época de hiperinflação que havia se transformado numa convenção imutável, para evitar contração maior de crédito. É hora de deixar de lado as convenções do período de normalidade e aprender as novas lições que o novo mundo nos oferece. Com a crise, num piscar de olhos, as prioridades mudaram, colocando em xeque a própria política monetária do BC. A redução das exigências de depósito compulsório significa aumentar a oferta de crédito, portanto a liquidez no mercado monetário, o que equivale rigorosamente a uma redução nos juros. De fato, o BC está disponibilizando recursos adicionais aos bancos a custo zero dos depósitos à vista e reduzindo o custo de captação dos depósitos a prazo e de poupança. Desta forma, a não ser que o Banco Central do Brasil seja esquizofrênico, a Selic deveria ser reduzida, como tem feito a quase totalidade dos bancos centrais em todo o mundo, para dar certo alívio na contração de crédito e encorajar o nível de atividade em 2009.

Da mesma forma, a dramática redução nos movimentos de capitais em todo mundo, que deverá perdurar até que a crise financeira se resolva e se construa um "novo Bretton Woods", exige uma nova taxa de câmbio, menos apreciada e mais competitiva. O mercado já fez a "maxidepreciação", mas riscos de aceleração persistente na inflação estão afastadas. A queda nos preços das commodities, a recessão nos Estados Unidos e Europa, a desaceleração econômica na Ásia e a contração global de crédito criaram, subitamente, um cenário deflacionário mundial, pelo menos no curto prazo. Assim, é preciso administrar a flutuação da taxa de câmbio num novo patamar para retirar do horizonte a nuvem negra que estava se formando com o explosivo crescimento do déficit em transações correntes do país.

Para concluir, a crise nos oferece uma oportunidade única para fazer as mudanças que, em épocas de normalidade, seriam muito difíceis. De um lado, consolidar um novo modelo de crescimento revelado pela recuperação recente da economia brasileira, baseado na inclusão de novos segmentos da população ao mercado de consumo, com geração de novos empregos, aumento de produtividade e dos salários. O mercado doméstico dinâmico passa a ser o pólo de crescimento. De outro, consolidar um real forte e estável com uma taxa de câmbio competitiva que equilibre ao longo do tempo o saldo nas transações correntes do país com resto do mundo e retire definitivamente as possibilidade de crise de balanço de pagamentos e ataques especulativos contra o real. Momentos de crise revelam a oportunidade de criar convergências na questão fiscal, estabelecendo metas de redução gradual e relativa das despesas de consumo do governo e a carga tributária, estabelecendo meta de déficit nominal num horizonte temporal não muito longo. Com isso, o Brasil poderia entrar para o grupo de países sérios, com moedas sólidas e confiáveis, com crescimento acelerado e sustentado por longos anos.

Yoshiaki Nakano , ex-secretário da Fazenda do governo Mário Covas (SP), professor e diretor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas - FGV/EESP, escreve mensalmente às terças-feiras.