domingo, 26 de outubro de 2008

Da ficha suja ao jogo sujo: milicianos e panfletos apócrifos

Flávio Tabak
DEU EM O GLOBO

Justiça não puniu propaganda negativa, que se acirrou no segundo turno

O que era para ser exemplo de limpeza começou e terminou com sujeira. A eleição deste ano no Rio teve o debate sobre a candidatura de políticos com ficha suja no início - liberada em agosto pelo Supremo Tribunal Federal -, e, no fim, a enxurrada de panfletos e cartazes apócrifos com acusações de baixo nível.

O tom conciliador do primeiro turno definhou à medida que o dia da votação se aproximava. Eduardo Paes (PMDB) sofreu ataques de representantes do transporte alternativo. No dia 1º de outubro, um protesto contra o candidato espalhava que ele iria "varrer as vans do mapa". No mesmo dia, o candidato derrotado do PRB, Marcelo Crivella, divulgou carta apócrifa na qual criticava o "candidato dos bacanas, dos ricos e da Zona Sul".

O segundo turno trouxe mais sujeira. Num cenário com candidatos a vereador eleitos, mesmo suspeitos de envolvimento com milícias, a polarização entre Paes e Fernando Gabeira (PV) mostrou que a guerra é feita por baixo dos panos. Só para coibir propaganda negativa e apócrifa, a equipe de fiscalização do Tribunal Regional Eleitoral fez oito operações. Todas contra ataques entre candidaturas. Mesmo assim, nenhuma multa foi aplicada na fase final.

TRE apreendeu 37 toneladas de material ilegal

A burocracia e a legislação eleitoral dão a sensação de impunidade. São cinco passos para aplicar uma multa: ao receber denúncias, fiscais vão ao local apurar; comprovada a irregularidade, enviam um relatório para o juiz de fiscalização; ele decide se há crime e notifica a candidatura para retirar o material em 48 horas; se a propaganda permanecer, cabe ao Ministério Público representar ou não contra o candidato. A partir daí, outro juiz, o da representação, decide se multa a campanha, que pode recorrer da decisão.

- O problema é descobrir a origem dos panfletos e da gráfica - disse o juiz da fiscalização do município, Fábio Uchôa.

O chefe de fiscalização do TRE, Luiz Fernando Santa Brígida, disse que nunca viu tanto jogo sujo em campanhas:

- Apreendemos mais de 37 toneladas de material ilegal, principalmente depois da atuação das tropas do Exército nas favelas. Por causa dos panfletos apócrifos, mudamos do jogo bruto e ostensivo, no primeiro turno, para o jogo da inteligência e discrição, no segundo. Agora usamos fiscais à paisana.

Na primeira semana do segundo turno, Paes se reuniu com militantes e fez discurso agressivo, diferente do tom comedido adotado no primeiro. Partidários de Paes disseram que jogariam ovos em Gabeira, caso ele decidisse visitar a Zona Oeste, e o chamaram de "macaco Tião da classe média".

A ofensiva foi reflexo das declarações de Gabeira na semana anterior, quando disse que a vereadora Lucinha (PSDB) tinha "visão suburbana" sobre a instalação do aterro sanitário de Paciência e era analfabeta política. Dois dias depois, houve uma passeata na Zona Oeste contra Gabeira e um militante do PV foi agredido por cabos eleitorais do PMDB.

Gabeira foi o principal alvo do jogo sujo. Equipes do TRE apreenderam 12 mil panfletos pagos pelo PT com imagens do candidato a de Cesar juntos. Uma kombi com seis mil panfletos contra Gabeira foi encontrada na Av. Brasil. Os envolvidos no transporte do material admitiram ser da campanha de Paes.

Paes disse que um projeto de Gabeira apresentado no Congresso legalizava a profissão de cafetão. Dias antes, havia panfletagem em frente a templos da Igreja Universal. O texto do material afirmava que Gabeira seria contra a criminalização da prostituição infantil. Paes, por sua vez, reclama de jogo sujo pela internet. O candidato insinuou que Gabeira seria o responsável por correntes na web. O peemedebista também apresentou ao TRE panfletos apócrifos contra sua candidatura.

- O jogo sujo aparece no desespero. Isso ocorre desde a República Velha. Cartas falsas eram enviadas a jornais contra políticos - diz Eurico Figueiredo, cientista político da UFF.

Rápidas e rasteiras


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Sejamos francos, aqui bem entre nós: quando aparece um político querendo debater propostas, desprovido de qualquer peculiaridade, sem representação simbólica e armado numa campanha apenas com suas idéias, é logo identificado como um sério aspirante à derrota eleitoral.

Junto com todas as homenagens e reconhecimento à sua beleza interior, recebe também a marca do candidato algo aborrecido, de discurso entediante, não obstante a robustez do conteúdo.

Exemplo? O senador Cristovam Buarque. Apresentou-se na disputa presidencial de 2006 para discutir detalhada e profundamente a educação no Brasil. No oficial foi largamente reverenciado, no paralelo era chamado de "candidato de uma nota só" e, no fim, teve pouco mais de 2% dos votos.

Isso num País em que o setor, além de um desastre, está no topo da lista das preocupações do cidadão consultado por pesquisas de opinião. Em tese, a julgar pelo recorrente clamor por "debate de propostas", Cristovam tinha tudo para dar certo.

Na prática, as coisas não funcionam assim. Simplesmente porque o método do embate e o modelo eleitoral não deixam espaço para outro tipo de agenda que não a destinada a produzir votos, seja de que maneira for.

Naquele segundo turno de 2006 a campanha da reeleição do presidente Luiz Inácio da Silva ressuscitou as privatizações em feitio de assombração, conseguiu renovar o caráter pejorativo do termo neoliberal e, logo depois, quando o reeleito privatizou estradas federais ninguém mais se lembrava de nada.

O embate era falso. Não passava de um bem montado jogo de palavras para induzir o voto especialmente no eleitorado mais bem informado, sempre ávido de justificativas doutrinárias (mesmo ocas) para fundamentar suas escolhas.

Em 2006, em todas as anteriores, na eleição que hoje termina e muito provavelmente na próxima cujo processo entra amanhã mesmo em andamento, a pauta de problemas objetivos a serem resolvidos é o de menos.

Vai se esforçar de forma inútil quem tentar se lembrar de uma só campanha em que a elaboração verbal dos candidatos tenha ultrapassado a profundidade das frases feitas ou ido além da manipulação de conceitos previamente consolidados.

Simplificações são muito bem recebidas, principalmente quando elegantemente denominadas de "idéias-força". Sob esse apelido se vende qualquer coisa. "Mudança", por exemplo, não quer dizer nada em circunstâncias normais, mas numa campanha eleitoral pode significar tudo, principalmente a vitória.

E a eleição de 1994, não seria uma exceção, não se deu em torno do apoio do eleitorado ao plano de estabilidade monetária? Justamente. O eleitor ali se manifestou favorável a um projeto posto em prática no ano anterior. Decidiu diante dos resultados, da queda da inflação e não de uma proposta a ser executada depois da eleição.

Se o processo tivesse sido invertido muito provavelmente o Plano Real não teria resistido à ligeireza dos truques de propaganda, à velocidade crescente dos meios de comunicação, ao raciocínio rasteiro inerente à necessidade de facilitar o entendimento da mensagem pretendida.

A eleição municipal acaba hoje também sem que se possa dizer qual foi a sua agenda, digamos, de vida real. Sabemos quais foram os ensinamentos políticos, podemos presumir as repercussões futuras das vitórias e derrotas, são perfeitamente visíveis os mitos derrubados, qualquer um consegue citar os vexames mais notórios, mas, sobre as tão celebradas "propostas", não sobrou nem sequer o rastro.

Isso não acontece por atributos negativos da democracia brasileira. Ocorre porque eleição não é seminário acadêmico, é momento que passa rápido e requer que concorrentes sejam algo rasteiros em suas ações e pensamentos porque não há tempo para mais nada além de correr atrás da maior quantidade possível de votos.

Trata-se de uma constatação que, uma vez admitida com tranqüilidade, nos livraria de uma boa carga de culpa e da obrigação de buscar conteúdo em ambiente meramente teatral.

Para todos

Na mira de todos os concorrentes a presidente, o PMDB é alvo de 11 entre dez especulações sobre alianças partidárias para 2010. Uns dizem que fica com Lula, outros que caminhará com o PSDB, alguns apostam que o partido espera para ver qual a direção mais segura, de acordo com as pesquisas.

Os mais realistas argumentam com os fatos: da redemocratização em diante, não houve uma eleição em que os pemedebistas marchassem unidos.

Em 1989 deixaram Ulysses Guimarães pelo caminho; em 1994 o abandonado foi Orestes Quércia; em 1998 não deixaram Itamar Franco sair candidato; em 2002 parte ficou com José Serra, parte aderiu ao PT; em 2006, só uns poucos resistiram com Geraldo Alckmin.

Moral da história, a expectativa de governo e oposição é a de que em 2010 haja PMDB suficiente para atender à demanda de todo o mercado.

Me dá um dinheiro aí!


Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE

A acumulação de dívidas é um tiro no pé. Qualquer dona-de-casa sabe disso. Mas nem sempre os governos e banqueiros levam o assunto a sério. Agem como consumidores compulsivos e perdulários


O governo resolveu meter a mão peluda no mercado financeiro, que segundo o Banco Central parecia ir muito bem, obrigado, mas está com problemas que ninguém sabe aonde vão parar. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, às vésperas do segundo turno das eleições municipais, interveio no sistema de crédito para evitar que alguns bancos, montadoras e construtoras fossem à breca. Agiu à inglesa, como o primeiro-ministro britânico Gordon Brown. Decidiu autorizar o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal a comprarem a participação em instituições financeiras públicas ou privadas, com ou sem participação acionária, que estejam em dificuldades. E deixou o BNDES de prontidão para socorrer exportadores, montadoras e construtoras com problemas.


Blindagem

O que está acontecendo nos bastidores do mercado, a rigor, ninguém sabe. No começo, a versão oficial era de que tudo não passaria de uma “marolinha”, que atingiu apenas algumas empresas exportadoras que haviam apostado na valorização do real. Agora, mais gente não consegue nadar. A decisão de intervir no mercado financeiro foi tomada pelo governo na surdina. Gerou polêmica por causa da falta de transparência e de salvaguardas para que os prejuízos não sejam “socializados”. Pegou muito mal, por exemplo, o fato de o ministro da Fazenda, Guido Mantega, e o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, terem ocultado a decisão durante audiência pública no Congresso.

Além de despertar as suspeitas da oposição, a decisão surpreendeu e inquietou o mercado financeiro. Por que a criação da Caixa-Banco de Investimentos S. A.? Quais são os bancos que estão quebrados? Que montadoras estão à beira do colapso? Por que o governo socorrerá as construtoras que especularam com terrenos e alavancaram o valor dos imóveis? Não há respostas claras. Resultado: com tantas incertezas, a Bovespa despencou, o dólar subiu e o senso-comum de que a crise chegou para valer à nossa economia real se consolidou. É um nevoeiro.

Créditos

A acumulação de dívidas é um tiro no pé. Qualquer dona-de-casa sabe disso. Mas nem sempre os governos e banqueiros levam o assunto a sério. Agem como consumidores compulsivos e perdulários. Nos períodos de expansão econômica, o endividamento aumenta. Quanto mais alguém se endivida, mais consegue crédito. Desde que a economia cresça, os bancos liberam o dinheiro. Nos Estados Unidos, bastava um emprego para o sujeito conseguir o empréstimo e comprar uma casa nova.

Há empréstimos e empréstimos. Um é aquele que o tomador cobre o risco e quita a dívida com o fluxo de caixa. É o caso do agricultor que compra sementes para o ano seguinte. Ele paga o produto com a colheita. Outro é o empréstimo rolado, em que só se pode pagar os juros da dívida. O subprime norte-americano era isso. O sujeito acreditava que, em caso de necessidade, poderia vender a moradia acima do valor de compra e liquidar o empréstimo, mas quebrou a cara. O pior é aquele no qual não se dispõe de recursos para pagar juros e capital e se aposta nos ganhos com a especulação financeira. É a valorização dos bens adquiridos ao se endividar que financia a dívida. As corretoras americanas compravam pacotes acionários graças às linhas de crédito dos bancos e, toda vez que o valor das ações subia, contraíam novas dívidas para comprar mais. O Lehman Brothers quebrou porque o valor dos empréstimos em carteira entrou em colapso e o banco se viu com uma dívida 22 vezes maior do que o capital social.

A tese oficial de que nossos problemas serão resolvidos garantindo o crédito a qualquer preço é perigosa. Existe dívida boa e dívida ruim. A dívida contraída com investimentos em infra-estrutura, bens de capital e bens duráveis em tese é boa, desde que respeitada a capacidade de pagamento. A dívida decorrente de despesas de custeio, de financiamento do consumo imediato e rolagem de outras dívidas é sempre ruim. Numa situação de retração econômica, é a forca. Por isso, alguém vai pagar a conta das empresas que estão em dificuldades no Brasil. Afinal, como dizia o finado neoliberalismo, não existe almoço grátis. Se for o governo, seremos todos nós.

Em busca do mercado


Merval Pereira
DEU EM O GLBO


NOVA YORK. Tanto no etanol quanto nos produtos agrícolas, o maior interesse para o Brasil deveria ser o acesso aos mercados, e não o fim dos subsídios, é o que mostra um estudo do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) da Fundação Getulio Vargas, no Rio de Janeiro. Em linha com esse pensamento, o empresário e diplomata Jório Dauster, presidente da Brasil Ecodiesel, produtora de mais da metade do biodiesel do país, diz que "embora possa parecer estranho não advogar a imediata cessação de medida tão claramente protecionista", ele acha que uma cota de importação livre de taxas seria melhor para os produtores brasileiros do que o fim dos subsídios para a produção do etanol do milho nos Estados Unidos.

Dauster admite que "o Brasil não tem condições de elevar substancialmente suas vendas de etanol aos Estados Unidos nos próximos anos sem gerar um perigosíssimo desabastecimento do mercado interno".

Por isso, ele acha que ""o ideal é que os Estados Unidos concedam ao Brasil uma cota de importação livre de taxas que, não sendo de início muito grande, cresça automaticamente nos anos seguintes, dando assim tempo e segurança aos fabricantes nacionais para realizarem os vultosos investimentos exigidos pelo aumento do plantio de cana e pela construção de novas usinas".

Um trabalho de Mauro de Rezende Lopes, do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Economia, (IBRE) da FGV do Rio, mostra que os ganhos para o Brasil com a eliminação dos subsídios internos e subsídios às exportações "são pífios, próximo de zero".

O interesse do Brasil, a julgar pelos resultados, diz ele, está no acesso a mercados - redução de tarifas para a entrada de nossos produtos em mercados dos países desenvolvidos, que protegem suas agriculturas com tarifas elevadíssimas.

"Se houver uma redução de tarifas, os subsídios caem por si só, como mostra o estudo. A queda de tarifas desarma todo o sistema de proteção - tarifária e com subsídios. Atacar subsídios, sem atacar a proteção tarifária, vai facilitar a vida dos países desenvolvidos nas negociações de Doha".

O embaixador Jório Dauster lembra que o projeto de cooperação com os Estados Unidos tem como objetivo básico definir padrões técnicos comuns para o etanol, "providência essencial para que o produto se torne efetivamente uma commodity capaz de ocupar um espaço relevante no mercado internacional".

Embora na época de seu lançamento tenha servido também para amenizar as queixas do presidente Lula contra o protecionismo norte-americano, esse acordo, lembra Dauster, "só indiretamente poderá conduzir à abertura de mercado que almejamos a médio prazo".

Tanto McCain quanto Obama, que tem um programa de investir US$150 bilhões para nos próximos dez anos tornar os Estados Unidos independentes com energias alternativas, citaram os árabes ou a Venezuela como países que deveriam ser evitados no fornecimento de energia no futuro.

Não é à toa, portanto, que no acordo entre Brasil e os Estados Unidos está dito que a América Central e o Caribe são as regiões-chave escolhidas para um trabalho conjunto para levar os benefícios dos biocombustíveis, regiões de influência geopolítica claramente norte-americana.

O que os produtores americanos temem é que este acordo permita que produtores brasileiros se utilizem dos acordos de livre comércio entre os estados Unidos e a América Central e o Caribe, para usá-los como plataforma de exportação sem pagar tarifas.

No memorando de entendimentos, está definido que a expansão do mercado de biocombustíveis será feita por meio da cooperação para o estabelecimento de padrões uniformes e normas.

O Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial ( Inmetro) e o Instituto Norte-Americano de Padrões e Tecnologia (Nist) serão os órgãos responsáveis pela definição dos padrões e eles já têm um programa de cooperação em Metrologia e Padrões para Biocombustíveis, para ampliar o conhecimento científico e tecnológico dos biocombustíveis, especialmente sobre seu conteúdo energético, efeitos sobre meio ambiente e a saúde.

A troca de informações facilitará também a adoção de padrões e normas comuns, e a redução de barreiras técnicas relacionadas a medições, padrões e normas. À medida que esses padrões ganharem credibilidade internacional, novos mercados potenciais, como o asiático, poderão ser alcançados.

O economista Adriano Pires, do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura, acha que o Brasil poderia tirar vantagem de uma decisão de Barack Obama de, eleito presidente, colocar em prática uma política energética realmente baseada em garantir uma maior segurança energética, preocupada com as emissões de CO2 e com soluções energéticas globalizadas.

"Ou seja, diversificar a compra de energia, privilegiando as mais limpas e ao mesmo tempo evitar soluções internas mais caras. Isso ajudaria a assinatura de acordos de cooperação e a uma maior penetração do etanol brasileiro no mercado americano".

Ele ressalta que o nosso etanol é competitivo com petróleo a US$40/barril.

Moral da crise


Rubens Ricupero
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Como no New Deal, só uma nova correlação de forças salvará o modelo americano de recaídas periódicas

AS ANÁLISES da crise financeira falam de tudo, menos de moral e de política. Dão a impressão de que o problema se limita a aspectos técnicos, sem vinculação com os valores éticos e independentes das relações de poder.

Joseph Stiglitz foi o único a observar que a crise teria sobre o fundamentalismo de mercado o mesmo efeito que teve a queda do Muro de Berlim sobre o comunismo. Poderia ter acrescentado que a ligação dos dois eventos não é só comparativa. O fim do socialismo foi um maremoto político. O vácuo ideológico e o desequilíbrio de forças conseqüentes tornaram possível aquilo que era antes inconcebível: a absoluta hegemonia dos mercados financeiros e os excessos responsáveis pelo colapso atual.

Nos Estados Unidos, o setor financeiro saltou de 10% do total dos lucros corporativos em 1980 para 40% em 2006, apesar de gerar apenas 5% dos empregos! Não se avança sobre quase metade dos lucros da economia sem contar com a cumplicidade do sistema político. A mudança de poder que abriu o caminho à hegemonia financeira foi, nesse período, a "revolução" neoconservadora de Reagan e de Thatcher, consolidada por Clinton e pela "terceira via" de Blair.Sua ideologia era a mistura de globalização com liberalização. Globalização entendida como unificação em escala planetária dos mercados, sobretudo para as finanças. Liberalização no sentido de eliminar tudo que pudesse limitar as oportunidades de negócios. A fiscalização ficaria por conta da suposta capacidade auto-regulatória dos mercados.

Nesse clima, poucos ganharam muito, mas a desigualdade explodiu, o emprego se tornou precário, o salário real estagnou, multiplicaram-se as fusões com cortes de milhares de vagas, os melhores empregos industriais foram terceirizados para países de baixos salários.O apodrecimento moral desse fim de reino era já perceptível em 2002, durante os escândalos da Enron, da WorldCom e de outras empresas que ocasionaram ao índice Nasdaq a perda de três quartos do seu valor, cerca de US$ 5 trilhões!

Na época, o banqueiro Felix Rohatyn escreveu que o dano causado ao capitalismo norte-americano era de tal gravidade que nem Lênin teria feito melhor!

Exagero, pois tudo se esqueceu: o papel dos bancos de investimento como o Goldman Sachs e o Merrill Lynch, a desmoralização das agências de avaliação de risco e de auditoria, todos novamente co-autores do desastre de agora. A lei Sarbanes-Oxley, as normas mais rigorosas de transparência contábil, nada foi capaz de evitar a repetição da catástrofe em dimensão maior. Alegava-se que o sacrifício dos seres humanos e da moral era o preço a pagar pela eficiência e pela racionalidade impostas pela globalização.

Contudo, longe de ganhar vigor e competitividade, o setor produtivo norte-americano parece um campo de ruínas.

A autodestruição econômica a que assistimos foi prevista por Emmanuel Mounier, meio século atrás: "Por mais racional que seja, uma estrutura econômica baseada no desprezo das exigências das pessoas contém os germes de sua própria condenação".

Da mesma forma que no New Deal dos anos 1930, só uma nova correlação de forças políticas que devolva sentido moral à economia e a recoloque a serviço do interesse do maior número salvará o modelo norte-americano de recaídas periódicas e de inelutável declínio em competitividade produtiva e adesão dos cidadãos.

RUBENS RICUPERO , 71, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.

Giannotti teme uma crise da democracia

Elio Gaspari
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Está aberto o espetáculo para o aparecimento de demagogos e salvacionismos autoritários

O PROFESSOR JOSÉ Arthur Giannotti está preocupado. Talvez seja a única pessoa preocupada que não acompanha o movimento das Bolsas. Sua ansiedade relaciona-se com a democracia. Ele acredita que o Brasil experimenta uma prática democrática "na casca", enquanto o núcleo das instituições nacionais vive um surto de autoritarismo que pode não acabar em boa coisa. A desmoralização dos costumes políticos, a impunidade das malfeitorias praticadas pelo aparelho do Palácio do Planalto, bem como a marginalização do Congresso, levam água para propostas salvacionistas e demagogos. Se fosse necessário algum sinal de que os temores do professor são justificados, bastaria o exemplo da concepção e do cenário da edição da medida provisória do ProTudo.

Os feiticeiros da Fazenda, do Banco Central e do Planalto redigiam a MP num prédio da praça dos Três Poderes enquanto os doutores Guido Mantega e Henrique Meirelles estavam na Câmara, relatando aos parlamentares as providências que o governo tomava para proteger a economia nacional. Não disseram uma só palavra sobre o ProTudo. Levando-se em conta que a MP seria remetida ao Congresso, alguém fez papel de paspalho. Talvez os parlamentares, talvez todos.

O grande antecedente remoto da atual crise justifica os receios de Giannotti. Diante da Depressão dos anos 30, o presidente dos Estados Unidos Franklin Roosevelt montou um sistema que foi a um só tempo redentor para o futuro da sociedade americana e um exercício de autoritarismo federal. Cavalgando a opinião pública e o Congresso, Roosevelt só foi barrado pela Corte Suprema e, ainda assim, tentou empacotá-la, criando um sistema pelo qual acrescentaria seis novos ministros aos nove existentes.

Roosevelt, um aristocrata, perseguiu empresários e amargurou o fim da vida do banqueiro Andrew Mellon, secretário do Tesouro de seus três antecessores. Mesmo assim, teve perigosos demagogos mordendo-lhe os dedos. O maior deles foi Huey Long, o adorado larápio que governara a Louisiana e pretendia disputar a Presidência na eleição de 1936. Foi contido por uma bala na barriga. (A história de Long está no filme "A Grande Ilusão", com Sean Penn.)Felizmente, a sucessão americana desembocou numa disputa entre dois políticos moderados (noves fora as suspeitas de que Barack Obama flerte com medidas protecionistas). Se a bolha tivesse estourado em janeiro, o candidato republicano poderia teria sido Mike Huckabee, que propusera o confinamento dos aidéticos e defendia o emparedamento da fronteira com o México. Com Sarah Palin na vice, formariam a dupla do Deus-Me-Livre.

A crise econômica pode colocar o Brasil no trilho que leva ao aparecimento de excentricidades, como se deu com Fernando Collor. Ou ainda, à radicalização do governo a partir de propostas autoritárias que estão nas gavetas do PT. Coisas como "matriz ideológica" controlando a imprensa, a necessidade de se criar uma poderosa máquina de centrais sindicais e a transformação do Banco do Brasil e da Caixa num comi$$ariado de primeira e última instâncias.