segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Jürgen Habermas: Ainda Potência


Entrevista
Thomas Assheuer
DEU NA FOLHA DE S. PAULO/ MAIS!

PARA O FILÓSOFO ALEMÃO JÜRGEN HABERMAS, FUTURO POLÍTICO DO PLANETA DEPENDERÁ DA POSIÇÃO QUE OS EUA ADOTAREM NOS PRÓXIMOS ANOS


O novo presidente precisa se impor contra as elites dependentes de Wall Street e se afastar dos reflexos de um novo protecionismo

Um dos mais importantes filósofos vivos, o alemão Jürgen Habermas fala nesta entrevista sobre os efeitos da atual crise financeira sobre o futuro dos Estados nacionais. Para ele, as mudanças que o sistema político mundial sofrerá nos próximos anos irá depender necessariamente das posições que os EUA -e seu novo presidente- irão adotar. Habermas defende que os EUA, mesmo enfraquecidos, ainda permanecerão como a superpotência liberal.

PERGUNTA - O sr. deve estar decepcionado com os EUA, que, em sua opinião, foram o cavalo de tração da nova ordem mundial.

JÜRGEN HABERMAS - O que nos resta a não ser apostar nesse cavalo de tração? Os Estados Unidos sairão enfraquecidos da dupla crise atual. Mas permanecerão por enquanto a superpotência liberal. A exportação mundial da própria forma de vida correspondeu ao universalismo falso, centralizado, dos velhos ricos. Em contraposição, a modernidade se alimenta do universalismo descentralizado do respeito igual por cada um. É do próprio interesse dos EUA não somente deixar de lado seu posicionamento contraproducente em relação à ONU, mas também colocar-se no topo do movimento reformista. Do ponto de vista histórico, a combinação de quatro fatores oferece uma constelação extraordinária: superpotência, mais antiga democracia na terra, a posse de um presidente liberal e visionário e uma cultura política na qual orientações normativas encontram um notável solo de ressonância. Os EUA sentem-se hoje profundamente inseguros devido ao fracasso da aventura unilateral, à autodestruição do neoliberalismo e também ao mau uso de uma consciência de excepcionalidade. Por que essa nação não poderia, como fez com tanta freqüência, recompor-se de novo e tentar integrar a tempo as grandes potências concorrentes de hoje -e potências mundiais de amanhã- em uma ordem internacional que prescinda de uma superpotência? Por que um presidente -que, saído de uma eleição decisiva, irá encontrar somente um espaço mínimo de ação- não desejaria, pelo menos na política externa, agarrar essa oportunidade razoável, essa oportunidade da razão?

PERGUNTA - Falando assim, o sr. não arrancaria mais do que um riso cansado dos chamados "realistas"...

HABERMAS - O novo presidente americano precisa se impor contra as elites dependentes de Wall Street no próprio partido; ele também deveria ser afastado dos reflexos evidentes de um novo protecionismo. E os EUA precisariam, para uma meia-volta tão radical, do impulso amigável de um aliado leal, mas autoconsciente. Só pode existir um Ocidente "bipolar", no sentido criativo, se a União Européia aprender a falar para fora com uma só voz. Em épocas de crise, talvez seja necessária uma perspectiva que tenha um alcance mais longo do que o conselho do "mainstream" embonecado do sucesso a qualquer custo.

PERGUNTA - O sistema financeiro internacional entrou em colapso, e há a ameaça de uma crise econômica mundial. O que mais o inquieta?

HABERMAS - O que mais me inquieta é a injustiça social, que consiste no fato de que os custos socializados oriundos da pane do sistema atingem da forma mais dura os grupos sociais mais vulneráveis. Assim, solicita-se da massa composta por aqueles que, de qualquer modo, não pertencem aos que lucram com a globalização que ela de novo pague pelas conseqüências, em termos da economia real, de uma falha funcional previsível do sistema financeiro. Também em escala mundial, esse destino punitivo efetua-se nos países mais fracos economicamente. Esse é o escândalo político. Mas apontar agora bodes expiatórios, isso, sem dúvida, considero hipocrisia. Também os especuladores comportaram-se de forma conseqüente, nos limites da lei, de acordo com a lógica, aceita socialmente, da maximização dos ganhos. A política se torna ridícula quando moraliza, em vez de se apoiar no direito coativo do legislador democrático. Ela, e não o capitalismo, é responsável pela orientação voltada ao bem comum.

PERGUNTA - Para os neoliberais, o Estado é somente um parceiro no campo econômico e precisa se apequenar. Agora esse pensamento não tem mais crédito?

HABERMAS - Isso dependerá do desenrolar da crise, da capacidade de percepção, por parte dos partidos políticos, dos temas públicos.

PERGUNTA - Por que o bem-estar é hoje distribuído de forma tão desigual? O fim da ameaça comunista desinibiu o capitalismo ocidental?

HABERMAS - O capitalismo contido no âmbito dos Estados nacionais, cercado por políticas econômicas keynesianas, marcado por um bem-estar incomparável -do ponto de vista histórico-, já havia acabado logo após o abandono do câmbio fixo e do choque do petróleo. De fato, a ruína da União Soviética desencadeou um triunfalismo fatal no Ocidente. A sensação de ter razão, em termos da história mundial, tem um efeito sedutor. Neste caso, inchou uma doutrina político-econômica e a tornou uma visão de mundo que penetra em todas as esferas da vida.

PERGUNTA - De que o mundo sentiu falta depois de 1989? O capital simplesmente se tornou poderoso demais diante da política?

HABERMAS - Ficou claro para mim, ao longo dos anos 1990, que as capacidades políticas de ação precisavam crescer atrás dos mercados, no plano supranacional. À globalização econômica deveria ter seguido uma coordenação política mundial e a legitimação adicional das relações internacionais. Mas as primeiras peças adicionais já ficaram atoladas no governo de Bill Clinton. Desde o início da modernidade, o mercado e a política sempre precisaram se contrabalançar de forma que a rede de relações solidárias entre os membros de uma comunidade política não se rompesse. Uma tensão entre capitalismo e democracia sempre existe porque mercado e política repousam sobre princípios opostos.

PERGUNTA - Mas o sr. insiste no cosmopolitismo de Kant e acolhe a idéia de uma política interna mundial, introduzida por Carl Friedrich von Weizsäcker. Isso soa bastante ilusório -basta que se observe o estado atual das Nações Unidas.

HABERMAS - Mesmo uma reforma basilar das instituições centrais das Nações Unidas não seria suficiente. De fato, o Conselho de Segurança, o Secretariado, as cortes de Justiça precisariam urgentemente entrar em forma para uma imposição global dos direitos humanos e da proibição da violência -em si já uma tarefa imensa. Nesse plano transnacional, há problemas de distribuição que não podem ser decididos do mesmo modo que infrações contra os direitos humanos ou violações de segurança internacional, mas precisam ser negociados de forma política.

PERGUNTA - Mas para isso já existe uma organização experimentada, que é o G-8.

HABERMAS - Isso é um clube exclusivo, no qual algumas dessas questões são discutidas de forma descomprometida. Entre as expectativas exageradas que se ligam a essas encenações e o resultado medíocre do espetáculo midiático sem conseqüências, existe uma desproporção traiçoeira.

PERGUNTA - O discurso sobre a "política interna mundial" soa antes como os sonhos de um vidente.

HABERMAS - Ainda ontem a maioria consideraria não realista aquilo que ocorre hoje: os governos europeus e asiáticos superam-se mutuamente em sugestões de regulamentações em vista da institucionalização insuficiente dos mercados financeiros.

PERGUNTA - Mesmo que novas competências fossem atribuídas ao Fundo Monetário Internacional, isso ainda não seria uma política interna mundial.

HABERMAS - Não quero fazer previsões; em vista dos problemas atuais, o que podemos fazer, na melhor das hipóteses, são considerações construtivas. Os Estados nacionais deveriam, de forma crescente e, com efeito, em seu próprio interesse, se perceber membros da comunidade internacional. Quando hoje falamos de "política", estamos amiúde falando da ação de governos que herdaram uma autoconcepção como atores coletivos, que decidem de forma soberana. Mas essa autoconcepção de um Leviatã, que, desde o século 17, se desenvolveu junto com o sistema de Estados europeu, hoje já não é mais vigorosa. O que chamávamos ontem de "política" muda diariamente seu estado.

PERGUNTA - Mas como isso se coaduna com o darwinismo social, que, como o sr. diz, se expande novamente na política internacional desde o 11 de Setembro?

HABERMAS - Talvez se devesse dar um passo atrás e observar uma conjuntura maior. Desde o final do século 18, o direito e a lei permearam o poder do governo, constituído politicamente, e lhe negaram, na circulação interior, o caráter substancial de um simples "poder". Mas ele guardou para si uma quantidade suficiente dessa substância, apesar da rede de organizações internacionais e da força de coesão crescente do direito internacional. Ainda assim, o conceito de "político", cunhado no âmbito do Estado nacional, está se liquefazendo. Na União Européia, por exemplo, os Estados-membros, no passado e no presente, guardam o monopólio da força e também transpõem, mais ou menos sem reclamações, o direito que é determinado na esfera supranacional. Essa mudança de forma do direito e da política também se relaciona a uma dinâmica capitalista que pode ser descrita como interação entre abertura forçada funcionalmente e fechamento sociointegrativo em níveis cada vez mais elevados.

PERGUNTA - O mercado arromba a sociedade, e o Estado social a fecha novamente?

HABERMAS - O Estado social é uma proeza tardia e frágil. Os mercados e as redes de comunicação sempre em expansão já tiveram uma força de arrombamento, que, para o cidadão individual, é, ao mesmo tempo, individualizante e libertadora. A isso, porém, sempre seguiu uma reorganização das velhas relações de solidariedade numa moldura institucional expandida. Esse processo iniciou-se no início da modernidade, quando os estamentos dirigentes da Alta Idade Média se tornaram, passo a passo, parlamentares -como na Inglaterra- ou foram subjugados por reis absolutistas -como na França. Essa domesticação jurídica do Leviatã e do antagonismo entre as classes não foi simples. Mas, pelas mesmas razões, a bem-sucedida constitucionalização do Estado e da sociedade aponta hoje, após um surto de globalização econômica, para uma constitucionalização do direito internacional e da esfacelada sociedade mundial.


A íntegra desta entrevista saiu no "Die Zeit". Tradução de Erika Werner.

Democracia é assim (ou não é)


Wilson Figueiredo
Jornalista
DEU NO JORNAL DO BRASIL

Sempre foram ambivalentes as relações do presidente Lula com os jornais. Tanto podem ser entendidas de um jeito como de outro. Há algum tempo Lula repete que, sem a imprensa, não teria chegado à Presidência. A despeito dela, foi reeleito e rejeitou o terceiro mandato. Desde o começo, a imprensa foi importante para a atividade política de Lula. As restrições da censura deram peso político ao líder sindical. Não foi uma revolução, longe disso, mas várias eleições perdidas levaram o presidente e o PT ao poder. Democracia é assim ou não é democracia.

O presidente Lula e a liberdade de imprensa se tornaram dependentes e inseparáveis, embora as relações entre ele e ela passem por crises periódicas. Foi o próprio Lula que se declarou o grande beneficiário da liberdade de informação e opinião sobre a qual se assenta a democracia que vamos edificando às caneladas. Trata-se, porém, de moldura para censurar a prioridade óbvia do jornalismo pelo ângulo crítico. Lula não se conforma com o privilégio das crises no noticiário, a precedência para o irreparável, a prioridade para o erro, o destaque para o crime, a soberania do negativo.

Ainda agora, pela enésima vez, o presidente aproveitou a oportunidade de uma esticada à usina de Tucuruí para se queixar de episódio ocorrido há quatro anos, quando da primeira visita às obras. A ênfase do noticiário em 2002 foi o gesto presidencial de comer com satisfação infantil um bombom e se atrapalhar com o papel que o envolvia. Como se livrar do papelucho? Lula optou por atirá-lo discretamente ao chão, e os fotógrafos não perderam a oportunidade. Queixa-se o presidente de que o bombom ofuscou a porção JK do seu governo. Com severidade, mas sem perder a delicadeza rude, Lula mostrou que desenvolvimentismo e bombons não são incompatíveis.

Antes e depois do ciclo militar, Brasil a dentro e Brasil a fora, Lula se beneficiou da liberdade de imprensa mais que qualquer outro. Dela se serviu e a ela serviu por serem, uma e outra, inseparáveis. Há quem entenda que Lula é assim para aplacar o ressentimento que o mensalão exacerbou no petismo. Que não se engane o presidente, como ocorre aos seus mais assíduos adversários, se pensar que os jornais o favoreceram por outra razão que não fosse o teor de interesse público, no sindicalismo com pompa e peleguismo, ou na presidência do PT. A Presidência apresenta Lula no perfil suavizado pelo mercado que o acolheu de braços abertos, depois daquela carta comovente que explicará no futuro o que tiver escapado ao presente.

Com o tempo, Lula passou de apedrejador a vitrina. O reconhecimento público da importância da imprensa é interesseiro e utilizado como atenuante para reclamar do jornalismo a preferência pelo ângulo desfavorável dos fatos. Ou o menos convencional. E nada pode ser mais convencional do que visita de governante a obras que, ainda na prancheta, lhe pareçam garantir sobrevida de pirâmides do Egito.

Que pode haver de novo numa visita a obras em andamento? Só mesmo o bombom que, uma vez saboreado, deixou o papel nas mãos presidenciais. No dia seguinte, lá estava na primeira página dos jornais o gesto inesquecível. O presidente há de convir que o cidadão tem o direito de estranhar que o mais alto posto na hierarquia republicana dê preferência ao chão quando tem no bolso do paletó espaço suficiente para abrigar o papelucho já sem o bombom. Presidente da república pilhado em flagrante é preciosidade imperdível para um repórter fotográfico a serviço do acaso.

Ensina a lição preliminar de jornalismo que a notícia não é o cachorro que morde o dono, mas o dono que tenha mordido o cachorro. Não há ditadura que faça valer o contrário. O jornalismo teria morrido prematuramente se fosse obrigado a se contentar com o óbvio. O presidente Costa e Silva e a condessa Pereira Carneiro, em almoço no Laranjeiras quando tais coisas ainda eram possíveis, conversavam sobre a contribuição da imprensa para afastar os fantasmas que assombravam a república. Dona Maurina testemunhou ao marechal as dificuldades do jornalismo em situações políticas desconfortáveis. E discorreu sobre o espírito crítico, mas construtivo, com que o JB lidava com governos. O presidente não economizou simpatia. Terminado o almoço, a condessa agradeceu a Costa e Silva a oportunidade de expor a teoria da crítica construtiva e o marechal não deixou por menos: "Dona Maurina, a crítica construtiva do JB é valiosa, mas eu gosto mesmo é de elogio".

O presidente Lula é também dado a franquezas, e não perde oportunidade de passar a impressão de acreditar mais na luta de classes do que na encíclica Rerum novarum. Até prova em contrário.

A face da nova geração


José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS


A significativa vitória do Partido Democrata, apoiada no desempenho eleitoral de Barack Obama, repõe no cenário político americano e no cenário político internacional a mística das grandes mudanças inspiradas no novo e difuso humanismo desta era pós-Guerra Fria, pós-socialista, a era das dissoluções de velhas linhas demarcatórias herdadas do mal resolvido século 20. Ainda não sabemos se a popularidade eleitoral de Obama se traduzirá em carisma que o tornará o que os historiadores de outro tempo definiam como epônimos, homens que dão nome a uma época. Sua circunstância o leva nessa direção.

Essa vitória repõe a questão das funções históricas da revolução cíclica das gerações, porque não resultou de mera peleja entre democratas e republicanos. Hillary Clinton representava a alternativa pendular. Na pessoa de Obama, as novas gerações, os recém-chegados à cena da história, os que estão cansados de esperar, encontraram sua identidade e a alternativa. A cada tanto tempo, uma geração já não compreende a língua, a mentalidade, os propósitos e os desacertos da geração anterior. Ousa, tenta mudanças, abre caminhos, inventa saídas, dá cor ao mundo cinzento do repetitivo.

Desde o fim da 2ª Guerra Mundial, a América e o mundo vêm tentando escapar das armadilhas políticas criadas no século 19, na difícil realização dos valores e direitos proclamados pela Revolução Francesa, ainda mal resolvidos nas primeiras décadas do século 20. Armadilhas condensadas na polarização perversa que se expressou na Guerra Fria. Prisioneiro dessa polarização, o mundo ocidental vem dando passos para libertar-se desse passado, criando um mundo novo em que os ideais de justiça social, democracia e liberdade se tornem realidades. Senhores e patrões de conflito esquizofrênico, Estados Unidos e União Soviética patinaram ao longo das décadas, negando nos conflitos que promoviam a visão de mundo que proclamavam. Barack Obama, na América, está sendo chamado a personificar a esperança da superação histórica, a esperança de uma nova era, em que o mundo se torne o que poderia ser e tem condições de ser e não tem sido.

Barack Obama representa uma outra América, a América que em silêncio, na corajosa obstinação da não-violência e dos movimentos sociais, teceu o belo rendilhado da esperança dos banidos do poder e dos privados dos direitos civis. A América que acompanhou com paciência o envelhecimento de uma concepção arrogante do homem, da vida e do mundo e que construiu uma alternativa moral para a injusta prepotência própria do demasiado e indevido poder.

Obama e sua esposa Michelle vêm da experiência social e política da militância no trabalho voluntário com os pobres e injustiçados. Foram socializados na cultura dos movimentos sociais, pela qual as novas gerações nos Estados Unidos, na Europa e em outras regiões e países educaram-se nos valores da generosidade, da partilha e da paz. Nesse sistema de valores puderam compreender o imenso abismo que nos separa das promessas das grandes revoluções que criaram o mundo moderno. Novas gerações que compreenderam a fraude política das dominações que anularam o século 20.

O século 19 demorou-se na maquiagem das conflitividades que herdou. Envelheceu sem transformar, diluiu-se em conflitos pendentes, não raro gerados pela própria expansão capitalista, como o conflito racial e o conflito religioso. As doutrinas sociais e políticas revelaram-se pobres em face de uma realidade social pluralista, regida por outras dinâmicas, resistente a binarismos simplistas como o do capitalismo contra o feudalismo, das colônias contra as metrópoles, do proletariado contra a burguesia. Em cada uma dessas polarizações havia e há muito mais do que os rótulos podem dizer.

É nesse grande cenário de mudanças que se pode compreender o que vem ocorrendo na América desde a libertação dos escravos e desde a Guerra Civil. A abertura do oeste americano à livre ocupação de colonos, com o Homestead Act, de 1862, a reforma agrária americana, com Lincoln no poder e a Secessão já em andamento, não produziu todos os seus efeitos modernizadores e emancipadores devido à resistência do escravismo sulista. A derrota do sul desencadeou mecanismos cruéis de recriação de desigualdades sociais com fundamento na raça, no limite a violência dos linchamentos, que se disseminaram e alcançaram não só negros, mas também judeus e imigrantes, sobretudo italianos. Foram as mulheres brancas das igrejas protestantes do sul que nos anos 1920 desencadearam o movimento social anti-racista, combatendo dentro de casa e denunciando publicamente o pretexto do estupro de mulheres brancas por homens negros para pendurar em árvores a estranha fruta de corpos negros balançando na brisa, da canção anti-racista escrita e musicada, em 1937, por Abel Meeropol, um professor judeu. "Strange fruit" foi consagrada pela cantora negra Billie Holyday e se tornou um hino martelando a consciência dos americanos.

A cultura em que foram educados Barack e Michelle Obama nasceu e se difundiu nas igrejas protestantes da América. Durante a campanha eleitoral, na visita altamente simbólica que Barack Obama fez à Igreja Batista Ebenezer, de Atlanta, em que Martin Luther King Jr. foi pastor, fez ele um discurso pautado pela mística da esperança, a dos humilhados e ofendidos. A fala de Obama tem sido e o foi novamente no discurso da vitória na madrugada do dia 5 de novembro, um extraordinário e competente retorno da política ao filtro da oratória protestante, de fundo bíblico. Nas manifestações de regozijo por sua vitória, aliás, foi possível ver inúmeras manifestações mais religiosas do que partidárias.

De certo modo, a revolta das gerações já havia eleito Kennedy que, porém, foi capturado pela poderosa máquina de um Estado governado mais pelo mercado do que pelo povo, mais pela guerra do que pela paz. Resta saber se Obama, no poder, terá como personificar as esperanças que reavivou e o sonho que sonhou.

*José de Souza Martins, Sociólogo, Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, é autor de Retratos do Silêncio, Coleção "Artistas da USP", Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008; Sociologia da Fotografia e da Imagem (Editora Contexto, 2008); A Sociabilidade do Homem Simples (2ª edição revista e ampliada, Contexto, 2008); A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34, 2008.

A Casa Branca e o DA da Católica


Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO

No dia seguinte ao da queda de Saigon, ao chegar para o trabalho na UFMG, me dizia uma aluna, bem-humorada militante estudantil de esquerda, referindo-se à disputa eleitoral pelo controle do Diretório Acadêmico da então chamada Universidade Católica de Minas Gerais, ocorrida também na véspera: "Viu só? Tomamos Ho Chi Minh e o DA da Católica!" Juntava num grande "nós" de abrangência planetária o espetacular desfecho da guerra do Vietnã, que marcara longamente o panorama internacional, ao episódio de um cotidiano local de luta política estudantil.

O mundo girou, o Vietnã faz capitalismo, como a Rússia e a China, a esquerda há muito anda confusa - para não falar dos liberais de tempos mais recentes. Mas Barack Obama conquistou a Presidência dos Estados Unidos no dia 4, e o "nós" de minha ex-aluna empolga o mundo todo de modo raro, talvez inédito: emoção e choro, muito choro (com o ícone do rosto banhado de lágrimas de Jesse Jackson na televisão, ouvindo Obama no discurso da vitória em Chicago) por parte da população negra estadunidense, que vê no evento o auge simbólico da luta árdua pela restauração da dignidade e a promessa de superação definitiva do racismo; festa e emoção multi-racial pelo país afora; emoção e festa na África, na Europa, no Brasil...

Mas ressalte-se que a emoção compartilhada mundialmente tem substrato decisivo no fato da união que a liderança singular de Obama soube criar em torno de si em seu país, numa campanha em que o tom elevado da mensagem se combinou com grande eficácia e habilidade "instrumental" - e cujo produto mais imediato, aliás, o êxito da busca de apoio financeiro pela internet, possivelmente altera de vez os termos da discussão sobre financiamento de campanhas. Como mostram os dados, Obama conseguiu o feito raro entre candidatos Democratas de obter mais de 51% do voto popular. E, se venceu de maneira quase unânime entre os negros, obteve mais de dois terços do voto dos jovens de 18 a 29 anos, dois terços do voto dos eleitores latinos, ganhou o voto católico, o dos trabalhadores "blue-collar" (onde, em particular, se apontavam dificuldades quanto a sua "elegibilidade"), conquistou estados supostamente hostis e avançou mesmo no voto dos eleitores brancos em comparação com os dados a John Kerry em 2004. Não obstante a resistência da face mais negativa dos Estados Unidos e da política fascistizante em torno de "God, guns and gays" do Partido Republicano, é evidente o sentido, que todos têm ressaltado, em que Obama, além de sua peculiar história pessoal, se ajusta à transformação demográfica do país, na qual o mundo passa a poder melhor reconhecer-se.

Por mera coincidência, participei na manhã do dia 5, com a confirmação da vitória de Obama ainda fresca no noticiário matinal, de um debate na UFMG sobre "Democracia, raça e pobreza", em companhia do economista Ricardo Henriques e do rapper MV Bill. A presença forte de MV Bill (em quem se pode pretender ver semelhanças importantes com Obama, apesar de backgrounds e trajetórias muito distintas) ajudou a dar vivacidade ao debate, com as denúncias, que seus raps reiteram, da violência social e racial experimentada pessoalmente.

Mas pude ver e apontar equívocos que me parecem importantes (e que não se acomodam bem com a atividade social em que o próprio Bill se tem empenhado) quanto à questão geral de como situar-se, na perspectiva de construção de uma sociedade democrática, diante do muito que há de negativo nas relações de raças no Brasil. Em particular, o empenho, de ânimo beligerante (e compartilhado com o chamado Movimento Negro, embora Bill se dissocie explicitamente dele), de estabelecer linhas nítidas entre brancos e negros no interesse de favorecer um enfrentamento supostamente mais propício ao avanço dos negros: "por que, na imprensa brasileira, Obama é negro e Camila Pitanga é morena?"

Naturalmente, o que queremos é que raça (a condição de "negro", "moreno", "branco") seja simplesmente irrelevante do ponto de vista social - algo que Bill mesmo ilustrou no debate, de modo meio inconsistente, com o reconhecimento de que agora se tornou "incolor". Quanto a Obama, o importante é que nos Estados Unidos ele é inequivocamente um negro, justamente pela prevalência do critério implícito na proposta em que nosso Movimento Negro mimetiza o que nos acostumamos a ver de pior nos EUA: uma gota de sangue negro e se está contaminado pela feia doença da negritude. Como tenho escrito, a idéia de que uma gota de sangue negro faz de alguém um negro vale tanto quanto a de que uma gota de sangue branco faz de alguém um branco. Daí que não só seja "tecnicamente" difícil, nas condições da miscigenação brasileira, dizer quem é negro e quem não é, mas também que se torne especialmente odioso pretender separar negros de brancos, nos estratos pobres onde populações racialmente diversificadas mais convivem e se mesclam, para decidir quem deve receber bolsas, cotas ou promoção social em geral. Se vamos ter ação afirmativa, o que me parece indispensável como parte da atuação de um Estado orientado pela preocupação de compensar e talvez neutralizar a desigualdade, o critério não pode ser senão social - a promoção racial, como no exemplo exitoso de Cuba, virá como consequência da própria correlação entre raça e classe que advém do nosso pesado legado escravista. E cabe notar, já que o assunto é Obama, que essa é a posição manifestada por ele, na campanha, sobre o tema da ação afirmativa.

Voltando ao "nós" hiperbólico do começo, menos mal que no caso de agora seu alcance difira, em mais de um sentido, do de minha ex-aluna. Mas vale: ganhamos a Casa Branca. Pelo mundo afora, a conquista de seja o que for que equivalha aos DAs da Católica do dia-a-dia deve ficar mais fácil.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras