terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Apresentação


Luiz Sérgio Henriques
Editor do site Gramsci e o Brasil
Texto de apresentação da revista Política Democrática, nº 22

Q presente número da Política Democrática, justamente por se concentrar na comemoração dos vinte anos da Carta Magna de 1988 e por manter sua discussão quase permanente sobre a história, limites é possibilidades da! esquerda brasileira, é particularmente relevante para o leitor atento, seja qual for o ponto do espectro político em que estiver.

A Constituição de 1988, por exemplo, é aqui vista de ângulos diversos e até freqüentemente opostos. A partir do depoimento de Roberto Freire, um dos protagonistas do processo constituinte, desenrola-se uma série de textos e avaliações de uma Carta que, de fato, está na base do mais longo período de vida democrática da história moderna do pais. O próprio Freire examina dilemas daquela época que nos acompanham até hoje, como um grande desequilíbrio de poderes, em favor do “presidencialismo imperial” e em detrimento do Congresso, a casa por excelência da democracia; o tratamento insuficiente dos problemas do Judiciário; os impasses relativos à anistia; e a condução da reforma agrária. Em muitos desses casos, formulações constitucionais excessivamente analíticas, ainda que de caráter progressista,: contribuíram para retardar a aplicação prática das medidas de reforma, contrariando a boa intenção de constituintes, inclusive os de esquerda.

De todo modo, está claro que o documento de 1988 marca a retomada vigorosa da construção de uma «era de direitos” no pais, embora, ao longo dos anos noventa, reformas liberais tenham incidido sobre o texto no âmbito da rediscussão do papel do Estado e do mercado, tão própria daquela década. Que balanço fazer dos anos de reforma liberal que, a rigor, começou com Collor e, grosso modo, não parou mais desde então, na falta de inflexões mais visíveis rumo a um desenvolvimentismo de novo tipo? Como entender as sucessivas emendas sofridas pela Carta cidadã? Tratou-se de um aggiornamento necessário, tendo em vista a intensa transformação pela qual passavam a economia e a sociedade em nível planetário, ou, ao contrário, significaram perda generalizada de direitos e inserção subalterna nas engrenagens do capitalismo globalizado?
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Eram uma decorrência de excessos discursivos, que engessavam a ação ordinária dos governos, ou, como afirma Marcelo Cerqueira, chegaram perigosamente a ameaçar “bens públicos, constitucionalmente indisponíveis”, como ás florestas e os rios?

São discussões que ainda hoje animam o debate público, e pessoalmente considero difícil deixar de pensar que todo este tempo, desde 1988, combinou substanciais ganhos democráticos que, aos poucos, vão se enraizando capilarmente na nossa sociedade, com a persistente “crise do desenvolvimento nacional”, que taxas relativamente altas nestes anos mais recentes encobriram, mas não resolveram com firmeza. Discutem-se assim na sociedade os resultados do jogo que, muitas vezes, não são bons, mas, querendo ou não., raramente se põe em questão o essencial, que é. a manutenção da regra democrática, a adesão mais ou n generalizada aos princípios do Estado democrático de Direito. Eventuais quebras das regras do jogo, como a manobra da reeleição em meados dos anos 1990 em beneficio, do governante no poder, ou, mais recentemente, indecentes sugestões de terceiro mandato, têm encontrado. quase’ unânime condenação, ainda que, no primeiro caso, isto só seja possível.retrospectivamente. Não é pouco, num país de vida constitucional conturbada como a nossa.

Um outro eixo importante de discussão aqui presente é a questão da esquerda e dos desafios da sua renovação. Em tempos de crise aguda dos mercados globais cujo paralelo mais evidente é 1929 e a década trágica que, se seguiu, até desembocar no flagelo da Segunda Guerra, é bom ter presente a necessidade de uma esquerda de novo tipo, radicalmente democrática, que.não se deixe: desencaminhar pelo “grave equívoco (de) pensar que o que está ocorrendo hoje é o fim da idéia do capitalismo” (Fréire).

Neste mesmo sentido, Alberto Aggio lança a discussão de um novo reformismo, recuperando semanticamente uma ‘palavra que costumava: cair como chumbo sobre os militantes do velho Partidão, supostamente desqualificando sua opção pela luta legal contra o regime militar. O que se propõe, a respeito, é a ruptura com o padrão bolchevíque / soviético e o cubano / guerrilheiro, ambos conformadores da esquerda brasileira e ambos, flagrantemente insuficientes para compreender nossa realidade e nela agir, introduzindo reformas incisivas, concretas - se não consensuais, pelo menos amplamente majoritárias, apontando para níveis-mais altos de progresso e civilização.

Temos de admitir que o ato de nascimento deste reformismo forte, adepto incondicional da democracia política como o terreno mais favorável para.a luta dos setores “de baixo”, ainda não se deu, nem mesmo como visão geral ‘ou estilo de fazer política aceito pelas forças da esquerda brasileira, na variedade das suas manifestações. E, diga-se de passagem, as dificuldades do PT em relação á Carta de 1988, contra a qual votou ë que assinou, apenas protocolarmente, tais dificuldades são muito ilustrativas de um suposto radicalismo que mal encobre subalternidade e incapacidade de uma verdadeira direção do destino do país e das suas grandes escolhas.

O reformismo forte de que falamos supõe, evidentemente, a incorporação de outras matrizes e orientações além do marxismo, a assimilação de problemáticas novas, como, a da ecologia ou a da questão urbana, que adquirem uma feição antes inteiramente desconhecida e que também são tratadas em outros textos deste número.

A associação pode ser arbitrária, mas não resisto a lembrar que, certa vez, o poeta Caetano Veloso fustigou a selvageria do trânsito, dizendo que nós, motoristas brasileiros, insistimos pateticamente em perder os sinais verdes e avançar os vermelhos. É uma boa imagem para compreender a situação das esquerdas, enquanto não nascer e ganhar vigor este novo reformismo: continuaremos a ansiar por rupturas e revoluções, por ataques frontais ao palácio de poder, enquanto desperdiçamos o sinal escancaradamente aberto às mudanças que a vida em democracia proporciona.

UMA IDENTIDADE REFORMISTA PARA A ESQUERDA*


Alberto Aggio

Qual o significado, no mundo e no Brasil de hoje, de uma esquerda contemporânea, reformista e transformadora? A identidade da esquerda – algo que, a bem da verdade, sempre esteve em questão – é um tema em permanente debate e permanece aberto ao ingressarmos no século XXI. Como sabemos, o problema é intrincado e merece muito cuidado tanto na aproximação a ele quanto e no seu desenvolvimento. O que se quer aqui é organizar algumas idéias e um conjunto de argumentos com o intuído de contribuir para uma reflexão sem a qual ficará cada vez mais difícil agir no presente e projetar o futuro.

De início podemos anotar que, em sua integralidade, uma esquerda com esse perfil ainda não existe, não está abrigada em nenhum partido político e tampouco se encontra expressa oficialmente em governos ao redor do mundo – ainda que, em alguns países, possa se notar vivamente que um processo rumo a sua construção ganhe um curso expressivo (a despeito de todas as suas dificuldades). Assim, é forçoso reconhecer, antes de mais nada, que a afirmação de uma esquerda com esse perfil configura-se como uma criação política e cultural de grande envergadura. Mas ela não se inicia nem se desenvolve a partir do vazio. Em função da crise que hoje vive a esquerda, há uma necessidade imperiosa de que o percurso dessa criação revele capacidade para superar várias idéias que se afirmaram como identificadoras da esquerda ao longo da história – e que representaram verdadeiros desastres políticos – e, ao mesmo tempo, reafirmar outras tantas, às vezes equivocadamente desprezadas.

Como sabemos, “esquerda” é um conceito contextual e situacional. Ela se define em relação a uma direita e a um centro, ambos histórica e conjunturalmente determinados. Mesmo assim é possível rascunhar algumas referências ou valores da esquerda que permanecem como eixos da sua identidade política e cultural, a saber: (1) a defesa do bem-estar-social ao invés do bem-estar individual; (2) a valorização das responsabilidades coletivas; (3) a extensão da igualdade de oportunidades para todos; (4) a vigência de um Estado forte que seja capaz de corrigir as injustiças sociais por meio de uma ação distributivista da riqueza material produzida pela sociedade; e, por fim,(5) a perspectiva de uma mudança das estruturas de poder por meio da democratização e da participação política[1].

Além desses propósitos de caráter geral, que deram e ainda dão sustentação a uma prática política de esquerda, não há como negar que historicamente a perspectiva de conquista e exercício do poder por parte da esquerda deu a ela um sentido de finalidade que, regra geral, foi semantizado na palavra socialismo. E este, por sua vez, transformou-se no horizonte político e/ou utópico da esquerda. Da mesma forma, não há duvida de que, embora não integralmente identificáveis, os vínculos entre esquerda e socialismo são historicamente incontestáveis. O socialismo foi reconhecidamente um programa de mudança social e um movimento político que mobilizou milhões de pessoas no correr dos séculos XIX e XX.

As três últimas décadas do século XX produziram mudanças de tal ordem na estrutura do mundo que as bases de referência do socialismo ruíram integralmente: a estrutura produtiva foi alterada de maneira drástica, reduzindo muito a necessidade de mão-de-obra; um cenário pós-fordista foi se estabelecendo, ao mesmo tempo em que diminuíam a auto-organização coletiva, a vida associativa e diversas dimensões que davam sustentação ética à cultura política do socialismo. Para a esquerda e para o socialismo talvez essa mudança histórica tenha sido mais decisiva do que a própria queda da URSS e o colapso do chamado “socialismo real”.

Por outro lado, há que se incorporar definitivamente a idéia de que somente uma visão crítica da história do socialismo nos permitirá construir uma nova síntese para se pensar o futuro. Uma atitude profundamente crítica ao passado do socialismo nos ajuda a pensar que devemos, hoje, ir além dele. Não há como não reconhecer o fato de que hoje o socialismo não se configura mais como um programa de ação revolucionária tal como pretendeu ser ou, de fato, foi no correr dos séculos XIX e XX. De um ponto de vista cultural ou intelectual, o socialismo não se sustenta nem mais como uma tradição, hoje isolada e anquilosada no pensamento marxista. Resta a ele encontrar a melhor maneira de colher os frutos de uma necessária e real contaminação cultural que possa lhe alarguar os horizontes e impulsionar a afirmação de um novo reformismo, estratégia que poderá lhe dar um novo sentido histórico.

Entretanto, surpreendentemente, é possível recolher alguns elementos da história do socialismo que apontam para o caminho da sua superação. Por um lado, alguns historiadores do socialismo o criticam fortemente em razão de alguns equívocos em sua trajetória. Para esses estudiosos, o socialismo pecou profundamente na sua concepção de “homem novo”, foi fechado e estreito em relação à questão das mulheres, desconheceu rotundamente o tema da “fraternidade”, etc. Por outro lado, há elementos extremamente virtuosos nessa trajetória, De acordo com Giuseppe Vacca, presidente da Fundação Instituto Gramsci de Roma, os socialistas do inicio do século XX realizaram uma mudança de paradigma nas suas concepções que representou, para a época, uma verdadeira renovação da cultura política do socialismo. Essa mudança foi muitas vezes foi relegada a um segundo plano na interpretação mais geral da história do socialismo. Se refizermos essa trajetória, perceberemos que,

“desde os anos trinta do século XX, a distinção entre “reformistas” e “revolucionários” torna-se anacrônica. (...) a disputa sobre o “fim último” baseava-se num equívoco. A idéia da “superação do capitalismo” nascia da contraposição entre capitalismo e socialismo, que é histórica e conceitualmente infundada. Capitalismo e socialismo referem-se a dois planos diversos da realidade e não são comparáveis: o capitalismo é um modo de produção, o socialismo é um critério de regulação do desenvolvimento econômico, que, portanto, não se contrapõe ao primeiro, mas propõe-se orientá-lo” [2].

O resultado foi que “para superar este falso dilema, foi necessário elaborar o conceito de regulação, e, naturalmente, não estamos falando de elaboração puramente intelectual, mas de experiência histórica concreta”. Para Giuseppe Vacca esse é um marco histórico essencial que deve ser recuperado. É efetivamente o “ato de nascimento do reformismo: a crise dos anos trinta e a invenção de um ‘modo de regulação’ do desenvolvimento alternativo ao do velho liberalismo, que entra em colapso”[3].

Outra idéia a ser superada pela esquerda é a idéia de revolução como fiat da história. Para a esquerda do século XXI realmente se constituir numa esquerda contemporânea, reformista e transformadora é necessário superar a idéia e a representação da revolução como seu eixo e lugar simbólico. Esse pressuposto implica conceber a esquerda a partir de uma definição clara pelo ideário e pela política das reformas. Contudo, esta não é uma formulação muito clara no campo da esquerda real, isto é, no mundo dos homens e mulheres que se identificam com a esquerda. Não é difícil de se observar isso dentro de partidos como o PT, o PCdoB ou mesmo na recente trajetória dos comunistas brasileiros, do PCB para o PPS. A compreensão de que uma esquerda democrática e moderna é uma esquerda reformista é algo ainda não inteiramente assimilado. O sentido do reformismo como o núcleo da política de esquerda no Brasil é muito rarefeito ou praticamente inexistente.

Entendo que é precisamente esse o ponto ou a pista que se deve perseguir: organizarmos um debate a respeito dos sentidos do reformismo, de como construir uma esquerda de reformas no Brasil. Isto porque pensar uma esquerda de reformas na Europa Ocidental já é algo que se pode fazer a partir da revisão de uma história concreta. No Brasil e na América Latina é ainda um problema a ser definido, a ser pensado em inúmeras variáveis, inclusive na superação da condenação ao reformismo que marcou a geração de jovens desde os anos sessenta. Por outro lado, no caso brasileiro, especificamente, é preciso lembrar que até mesmo a palavra reforma foi capturada e se afastou do campo da esquerda, desde o governo de Collor de Melo, no inicio da década de 1990.

De qualquer forma, há algo a se recuperar . Se observarmos bem, em termos de idéias e conduta política, havia alguma coisa na trajetória do PCB que indicava para essa direção. O socialismo sempre foi um referente importante na história do PCB, ainda que a sua prática, especialmente depois de 1958, tenha sido abertamente a de um reformismo político que tinha como ênfases as noções de democratização e desenvolvimento. Contudo, não há espaço para que aqui possamos examinar essa história e tampouco levantar uma série de aspectos que julgamos pertinentes para essa reflexão a partir daquela experiência do PCB. Apenas vamos partir de um ponto que para nós configura-se como emblemático.

É indiscutível que há na história da esquerda brasileira uma parcela ou fração que assumiu para si, desde o final da década de 1970, o tema da democracia e que efetivamente se afastou das idéias dogmáticas que habitavam o ideário mais convencional da esquerda, tanto da “esquerda tradicional” quanto da chamada “nova esquerda”. Sua maior expressão emergiu com a publicação do famoso ensaio de Carlos Nelson Coutinho, A democracia como valor universal (1979), formando-se, a partir daí, um entorno de militantes ativos dessa idéia, que jogava por terra o entendimento de que a democracia não era mais do que uma tática a ser desprezada depois da conquista do poder. Dessa linhagem há que se destacar, sem nenhuma dúvida, a revista Presença, que circulou entre 1983 e 1992. Reconhecidamente, esse movimento fez parte daquilo que Maria Alice Rezende de Carvalho, em texto recente, chamou de “breve história do ‘comunismo democrático’ no Brasil’[4].

Ainda assim, passados alguns anos e depois de inúmeras transformações, no mundo e no Brasil, é forçoso reconhecer que o fim do tempo histórico das revoluções, como método e critério para a mudança histórica, não foi capaz de produzir, entre nós, uma nova fórmula identitária que garantisse, simbólica e politicamente, uma nova expressão para a esquerda. Os fatos do mundo e do Brasil no final do século XX são os responsáveis diretos pelo esgotamento dos dois mais potentes núcleos de identidade da esquerda brasileira, a saber, o núcleo bolchevique/soviético e o núcleo cubano/guerrilheiro. Surpreendentemente, a esquerda pós-1989, que havia surgido pouco antes e ambicionava se configurar como um novo paradigma, fracassou mais rapidamente do que aquela dos modelos anteriores. Contudo, o cenário que ela deixa depois da sua fulgurante trajetória é ainda mais inconsistente: fundada na lógica do mercado e da “escolha racional”, a esquerda representada pelo PT se expressa como uma esquerda de simulacros, nos quais realidade e ilusão se integram em erráticas metamorfoses.

A história e a vida é que colocaram para nós o desafio de superar simultaneamente três dimensões históricas da esquerda brasileira. Mas aqui a história não deve e nem merece ser repetida. Essa não pode ser uma das muitas oportunidades perdidas na trajetória de construção da esquerda e da democracia brasileira. Dentre muitas razões porque o nosso penoso e débil processo de modernização e de democratização somente se consumou, em seus traços conhecidos, devido a não existência, entre nós, de uma esquerda radicalmente democrática e reformista.

Por essa razão, é preciso recapturar o tema das reformas para o campo da esquerda brasileira por meio da elaboração de um programa que concentre suas propostas nas demandas democratizadoras do mundo do trabalho e da vida, condenando tanto o mal Estado ineficiente (independente do seu tamanho) quanto o mercado ególatra e desqualificado. Baseado numa política aberta e em amplo diálogo com a sociedade, é preciso pensar as reformas como mudanças que envolvam a democratização do poder na sociedade brasileira, ou seja, é preciso conectar as reformas com o tema da civilização democrática. É preciso pensar as reformas para além do minimalismo e da lógica de mercado a que elas foram reduzidas na política brasileira recente. Em outras palavras, é preciso resgatá-las como uma perspectiva de realização da modernidade.

O país necessita forjar outra esquerda, com amplas bases sociais, legitimada como reformista e que fale ao coração de milhões. No Brasil, um partido das reformas deve defender a melhoria da vida das pessoas e, em função dessa perspectiva, deve privilegiar a elaboração e implementação de um programa que tenha as características e o sentido de um "reformismo desenvolvimentista". Esse "novo reformismo” deve ser enfim a base de uma nova cultura política para uma esquerda moderna e democrática, o correlato, no discurso político, daquilo que o filosofo Antonio Cícero reivindicou recentemente como “um reformismo profundo e conseqüente”.

[*]O texto foi publicado originalmente na revista Política Democrática nº 22

[1] Ainda que não idênticas tais indicações são expostas em SMITH, Peter H. “Perspectivas de la izquierda latinoamericana” In PÉREZ HERRERO, Pedro (Ed.). La “izquierda” en América Latina. Madrid: Editorial Pablo Iglesias, 2006, p. 291-305.

[2} VACCA, G. “A esquerda italiana e o reformismo no século XX”. Política Democrática, n. 18, p. 111-125, 2007.


[3 ]Idem, ibidem

[4] REZENDE DE CARVALHO, Maria Alice. “Breve história do ‘comunismo democrático’ no Brasil” In p. 261-281. FERREIRA, J. e AARÃO REIS, D.(org.) Revolução e Democracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007 (As esquerdas no Brasil, v.3).

Corda esticada


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Há 15 dias, quando o presidente do Senado, Garibaldi Alves, devolveu à Presidência da República a medida provisória das entidades filantrópicas, o líder do governo, Romero Jucá, entrou com um recurso na Comissão de Constituição e Justiça e instalou-se o impasse.

Político, o gesto não tem sustentação legal. Ou seja, um julgamento na CCJ significa necessariamente uma derrota do presidente do Senado e, por extensão, de todos os senadores que prestaram solidariedade a Garibaldi Alves - praticamente a totalidade deles.

Por isso, passado o primeiro momento do revide, o governo deu sinais de recuo. Tanto o líder Romero Jucá quanto o ministro da Articulação Política, José Múcio, indicaram que o governo desistiria do recurso e trocaria a MP por um projeto de lei.

Tiraria as entidades filantrópicas sob investigação de conduta fraudulenta do texto que autoriza a renovação automática de registros e estaria dissolvida a tensão.

Passadas duas semanas, porém, chega-se à véspera da sessão fatal da Comissão de Constituição e Justiça sem sombra de projeto de lei. Tudo pode ser negociado: nessas 24 horas o governo pode cumprir a promessa de amenizar o clima. Mas pode também insistir, levar a questão a votos e dar o troco em Garibaldi expondo a imperfeição jurídica de seu ato.

Se for essa a escolha, o presidente Luiz Inácio da Silva terá pouquíssimo a ganhar e muito a perder. Ganhará fluidos momentos de razão.

Perderá, entretanto, sob todos os demais aspectos das relações entre Legislativo e Executivo. Este, por mais forte que seja, não pode prescindir daquele.

Nunca. Muito menos em período final de mandato, em meio a um complicado processo de eleição dos novos presidentes da Câmara e do Senado, menos ainda diante de um cenário nebuloso de crise econômica que se confundirá com o ano de armação do jogo da disputa presidencial de 2010.

Nada favorece o atrito, tudo aconselha o entendimento. Todos os personagens envolvidos entendem isso. O líder Romero Jucá, interessadíssimo em herdar a presidência do PMDB de Michel Temer, então, é dos que mais entendem.

O ministro da Articulação Política certamente compreende também, assim como um grupo de senadores (governistas e oposicionistas) que enxergam na demora a intenção do presidente Lula de apostar na conquista de uma vitória na CCJ.

A decisão de trocar a MP pelo projeto de lei depende dele. Para solucionar o problema das filantrópicas “limpas” há uma proposta já em tramitação na Câmara o que, em tese, dispensaria a MP da discórdia.

Mas, por motivos ainda não esclarecidos, o governo resolveu dar anistia às chamadas “pilantrópicas” e o fez por medida provisória, ultrapassando todos os limites no aceitável no tocante aos preceitos constitucionais de urgência e relevância exigidos para a edição de uma MP.

Daí o gesto de Garibaldi Alves não se enquadrar numa discussão de natureza jurídica. Se for para discutir legalidade, o Executivo sai do embate com saldo devedor.

O presidente do Senado quis demonstrar o esgotamento de um modelo de convivência. No discurso, o governo compreendeu, mas, na prática, agiu diferente. Na semana seguinte à devolução da MP, a maioria governista aprovou o texto base da emenda que altera o rito de tramitação das medidas e manteve o ponto mais desconfortável para o Congresso: o trancamento da pauta.

Nesse meio tempo, suspendeu - pelo menos de público - os gestos de boa vontade em relação à saída negociada para o impasse no Senado.

Se quiser comprar uma briga, poderá conseguir. O Parlamento tem mil maneiras de criar problemas para o Executivo sem fazê-lo de forma explícita nem dar margem a retaliações.

Por exemplo: sexta-feira passada, os presidentes da Câmara e do Senado simplesmente não apareceram numa solenidade oficial no Palácio do Planalto. As assessorias de ambos dizem que Garibaldi Alves e Arlindo Chinaglia apenas viajaram; não havia sentido de retaliação nas ausências.

Um acaso e tanto, pois o presidente esperou mais de uma hora antes de ser avisado. E só não ficou falando sozinho porque o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, estava com ele no gabinete onde acabou decidindo ficar para não emprestar com sua presença o brilho das duas ilustres ausências à cerimônia.

Fila que anda

Não há informações consistentes da parte de ministros do Tribunal Superior Eleitoral. O que há em Brasília, depois da decisão de suspensão do mandato do governador da Paraíba, Cássio Cunha Lima, é uma troca de impressões entre parlamentares e advogados que conhecem o teor dos processos em andamento no TSE contra outros sete governadores, acusados de crimes eleitorais.

Conclusão comum: os casos são todos complicados, em especial os que envolvem os governadores do Maranhão, Jackson Lago, e de Sergipe, Marcelo Déda. Este, aliado do presidente Lula; aquele, adversário do senador José Sarney.

Preliminares da sucessão

DEU NO VALOR ECONÔMICO

O presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, pediu para o deputado João Paulo Cunha (PT-SP) fazer uma análise das emendas constitucionais em tramitação que tratam da reeleição. São mais de 60, e o conteúdo das propostas revela o desconforto dos deputados com a recondução para cargos do Executivo, inscrita em 1997 na Constituição por meio de um projeto que teve ventriloquia tucana e a iniciativa do antigo PFL, hoje Democratas.

Há propostas de calibres variados. A maioria acaba com a reeleição. Mas há também aquelas como a do deputado Devanir Ribeiro (PT-SP) que abrem a brecha para se discutir um terceiro mandato presidencial. Umas acabam com a reeleição, mas fixam em cinco anos o mandato do presidente; outras, em seis anos. Todas são pura confusão no horizonte da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.

O assunto vem sendo tratado por João Paulo Cunha com presidentes de partido e integrantes da CCJC. Mas só deve ganhar impulso a partir do próximo ano. O partido mais refratário tem sido o DEM.

Na CCJC a discussão parte de uma constatação óbvia: leva vantagem quem disputa eleição no cargo.

Em 2000 e 2004, as duas primeiras dentro da nova norma, a taxa de prefeitos reeleitos ficou em torno dos 58%. Já na eleição passada bateu um recorde: dois terços dos prefeitos foram reconduzidos a seus cargos.

Difícil é fazer o resumo da ópera - há quem veja nesses índices o reconhecimento do eleitor a boas gestões, que, aliadas a um período de bonança econômica, como o de 2004-2008, permitiram o alto índice de reeleição deste ano.

Talvez majoritária seja a ala dos que consideram o instituto da reeleição demasiadamente forte em um país que tem parcelas grandes da população que dependem do Estado. Isso é o que levaria o político de plantão no comando da máquina pública a levar uma vantagem muito grande em relação a outros, reduzindo ou até mesmo tirando o caráter competitivo da disputa.

O eleitor, ao escolher, acabaria votando não no melhor, nas melhores idéias para as cidades, para o Estado ou para o país. Simplesmente acabaria envolvido pelo candidato da obra eleitoreira. E nem sempre as obras de momento dizem respeito ou guardam uma certa conexão com o futuro das cidades, do Estado ou do país.

Esmiuçando: se as pesquisas indicam a um candidato que ele está mal em certo bairro por causa de asfalto, sua reação imediata não é querer saber se precisa primeiro fazer o esgoto. Ele faz o asfalto, ganha os votos e deixa a tarefa de fazer o saneamento para os próximos prefeitos.

No PT lembra-se muito o ato do prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, ao passar um cheque milionário ao governador José Serra: "Essa é minha parte para fazer o metrô". Um gesto eleitoralmente muito forte, mais forte, segundo essas avaliações, do que 40 dias de debate horário eleitoral com Marta Suplicy dizendo que ia levar o metrô daqui pra alí e de lá pra cá.

O debate sobre o fim da reeleição interessa tanto ao nome que lidera as pesquisas, José Serra, como ao presidente Lula.

Para o tucano a medida oferece margem de manobra a negociações internas no PSDB, principalmente com o governador de Minas Gerais, Aécio Neves, também pré-candidato ao Palácio do Planalto.

Para Lula a aprovação da emenda, valendo a partir da eleição municipal de 2012, como é cogitado, permitiria que ele fosse candidato novamente já em 2014. ponto de vista político é uma medida que, mais pragmaticamente falando, interessa muito ao Serra.

Por esse cronograma haveria eleição em 2010, para um mandato presidencial de quatro anos, 2012 para mandatos de cinco anos nas prefeituras, e 2014 para o primeiro ciclo de cinco anos de um presidente no Palácio do Planalto - nova eleição para prefeito só em 2017, e, para presidente, em 2019.

Há emendas também unificando as eleições, de vereador a presidente da República, mas suas chances de sucesso, à esta altura, parecem reduzidas. Em seu relatório, que pode sair até o fim do ano, João Paulo Cunha não se estenderá ao mérito das propostas. Vai se limitar a recomendar a tramitação das emendas na CCJC.

Raymundo Costa é repórter especial de Política, em Brasília. Escreve às terças-feiras

Da liderança à berlinda


Eliane Cantanhêde
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


BRASÍLIA - Hugo Chávez lançou a Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas) em 2001, como reação aos EUA e à Alca (Área de Livre Comércio das Américas), que veio a morrer de morte morrida. O grupo foi formalizado em Havana, em 2004, mas não chegou muito longe.

Além de Venezuela e Cuba, só aderiram à Alba Bolívia, país mais pobre da América do Sul, Nicarágua, que ainda sofre efeitos da guerra interna, Honduras, da América Central, e Dominica, um pontinho no Caribe. Digamos que não dá para ameaçar a Calc (Cúpula da América Latina e do Caribe), que reúne 33 países na Bahia, dias 16 e 17.

O que preocupa é o Equador de Rafael Correa, que estapeou Odebrecht, Petrobras e Furnas e ameaça um calote no BNDES, o que deixa de ser contra uma empresa privada e passa a ser contra o governo brasileiro. Lula cancelou uma missão técnica a Quito e depois chamou o embaixador de volta.

Ontem, havia um corre-corre no Itamaraty para avaliar os problemas e oferecer saídas para cada um antes do dia 15, tudo para que Correa não chegue à Bahia uma fera, contaminando o clima geral.

Blocos e regiões convivem com divergências e conflitos. Os próprios Brics têm seus problemas: a Rússia e a mágoa dos ex-satélites soviéticos, a Índia e o Paquistão em torno de Caxemira, a China e Bangladesh e os arroubos do Tibete. Mas o Brasil alardeia sua eterna imagem pacifista e faz questão de uma foto da Calc só de sorrisos, para sinalizar unidade e integração para o mundo e especialmente para o Norte. Correa pode botar tudo isso a perder se atirar pedras contra o Brasil, trouxer para dentro da reunião o apoio que já recebeu da Alba e unir a "esquerda" contra a "potência" local.

Isso deixaria o Brasil cara a cara não com o frágil Equador, mas, sim, com a forte Venezuela e seus aliados, provocando uma mudança radical. Lula quer ser líder, mas pode acabar na berlinda.

Pós-hegemonia


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. Confirmados, sem surpresas, os nomes da equipe que vai levar adiante a nova política de segurança nacional dos Estados Unidos na futura administração democrata de Barack Obama, ficou de mais importante na apresentação de ontem a explicitação das novas diretrizes da política externa americana que, nas palavras do próprio Obama, vai usar de maneira balanceada e integrada os elementos do que chamou de "o poder americano": militar e diplomático; informação e a força da lei; a economia e o poder do exemplo moral.

A troca da "guerra preventiva" e da submissão dos direitos humanos aos interesses imediatos do governo, por uma gestão que leve em conta os "valores" americanos de justiça e democracia, como ressaltou Obama, tem ainda mais significância no dia em que o presidente George Bush admitiu em uma entrevista à televisão que não estava preparado para a guerra e que errou ao aceitar os relatórios do serviço de inteligência sobre as supostas armas de destruição em massa do Iraque.

A admissão de que o poder mundial está cada vez mais repartido entre novos atores, que devem ter espaço para sua ação internacional e devem ser escutados em suas reivindicações, permeou todo o discurso do presidente eleito e da nova secretária de Estado, a senadora Hillary Clinton, os dois que deram o tom mais político da apresentação.

Também a futura embaixadora dos Estados Unidos na ONU, Susan Rice, ressaltou o reforço do papel da organização na política externa americana. Obama definiu a nova política como capaz de "reforçar nossa capacidade de derrotar os inimigos e de apoiar nossos amigos", e a disposição de "renovar antigas alianças e forjar novas e duráveis parcerias".

Ele deixou claro que todos os desafios que se apresentam, desde as guerras em andamento até o espalhamento do poder nuclear com o perigo de que essas armas letais caiam em mão perigosas, têm uma ligação entre si, a "realidade fundamental" de que, no século 21, o destino dos Estados Unidos é dividido com o resto do mundo.

"Dos nossos mercados até a nossa segurança; de nossa saúde pública até nosso clima, precisamos agir de acordo com o entendimento de que, mais do que nunca, temos interesse no que acontece no resto do mundo".

A futura secretária de Estado, Hillary Clinton, foi ainda mais explícita na sua fala, afirmando que "nós sabemos que nossa segurança, nossos valores e nossos interesses não podem ser protegidos nem avançar apenas pela força e nem também apenas pelos americanos. Temos que perseguir uma diplomacia vigorosa, usando todos os meios para criar um futuro com mais parceiros e menos adversários; mais oportunidades e menos perigos para todos os que almejam a liberdade, paz e prosperidade".

Coube ao vice-presidente eleito Joe Biden, um especialista em política externa, especificar as mudanças que estão ocorrendo no mundo, falando sobre "as forças que estão forjando esse novo século" - às quais Obama já havia se referido, dizendo que os Estados Unidos têm condições de moldá-las, e não serem moldados por elas.

Entre elas, Biden citou a emergência de países como China, Índia, Rússia e Brasil, invertendo a ordem do acrônimo Bric, provavelmente citando os países pela importância que lhes dá.

A potencialidade do Brasil como um poder global nunca esteve tão em evidência, especialmente agora que o presidente eleito Barack Obama insiste no fato de que a dependência de petróleo dá poderes a governos autoritários e põe o planeta em perigo, colocando na mesma cesta a questão ambiental e a política.

O mundo já debate há algum tempo a questão da energia como instrumento político que está dando a países emergentes poder de protagonistas da cena internacional, alguns considerados pelos Estados Unidos como "estados-bandidos", como a Venezuela de Chávez e o Irã de Ahmajinedah.

A idéia de que a América do Sul tem reservas de petróleo e gás para ser parceira internacional importante no equilíbrio do mercado mundial vai ganhando força, paradoxalmente com a preocupação de que governos como os da Bolívia e da Venezuela utilizem suas reservas naturais para reforças suas posições política radicais. Diante da potencialidade com o petróleo do pré-sal e os biocombustíveis, uma posição equilibrada do Brasil na política externa ganhará maior destaque.

Embora a crise econômica tenha retirado da prioridade os biocombustíveis, pela queda do preço do petróleo, e pela mesma razão a exploração do pré-sal tenha se tornado antieconômica no momento, o presidente eleito Barack Obama já declarou que o melhor momento para fazer a mudança da matriz energética é quando não há a pressão econômica.

Por seu pioneirismo na nova tecnologia, e por suas vantagens comparativas, como amplidão territorial e clima, e por ter das maiores reservas de água do mundo, o Brasil está no centro das preocupações expressas pela equipe de segurança nacional do futuro governo Obama.

A perspectiva de que o mundo se torne cada vez mais multipolarizado, dando espaço para novos atores globais, admitida ontem pela futura administração americana, também aumenta a possibilidade de que os países que formam o grupo Bric assumam cada vez mais poder nas decisões internacionais dentro dos organismos multilaterais, que serão reforçados pela nova política externa dos Estados Unidos, a começar pela ONU, onde o Brasil insiste em ter um assento permanente no Conselho de Segurança.

A coerência entre o que o candidato Barack Obama defendeu durante toda a sua campanha e o que anunciou ontem é uma garantia de que ele realmente entende o mundo de maneira totalmente distinta do atual ocupante da Casa Branca, o que reforça a mensagem de mudança que foi vitoriosa na eleição presidencial.