terça-feira, 9 de dezembro de 2008

O mundo está mudando

Alfredo Reichlin
Tradução: A. Veiga Fialho
Fonte: Gramsci e o Brasil


Michele Salvati reconhece, no Corriere della Sera, que não explodiu só uma bolha especulativa.

Aconteceu algo muito grande que marca uma virada. Chegou ao fim da linha um ordenamento econômico. Mudam as relações entre os poderes mundiais. Peço desculpas por não ser economista, mas se deve falar disso. Assistimos a um acontecimento inteiramente novo na história moderna, isto é, ao fato de que uma oligarquia político-financeira quis governar o mundo submetendo a política ao seu poder, entendendo política como soberania do Estado (inclusive a moeda), direitos universais do cidadão, independentemente da sua capacidade de consumo, e entendendo sociedade como histórias, culturas, laços, projetos não redutíveis à troca econômica. Disso é que se tratou. E é bem verdade que o mundo exulta, porque os Estados europeus mostraram a intenção de restituir o comando ao “Soberano”.

Era evidente (pelo menos para as mentes livres) que não podia continuar ao infinito um sistema com base no qual somas imensas de dinheiro (muitas vezes maiores do que a riqueza real produzida) movimentam-se de um lugar para o outro do mundo em tempo real, prescindindo das necessidades reais das pessoas, das relações humanas, dos direitos sociais, dos recursos reais, dos territórios. O fenômeno foi, de fato, grandioso, e certas polêmicas anticapitalistas de “revolucionários” envelhecidos não têm efeito algum. Daquele modo também se favoreceu a abertura de novos mercados e o financiamento de coisas extraordinárias, como a inteligência artificial, os remédios (e, por que não, as armas do século XXI). E tudo isso também possibilitou um salto no desenvolvimento dos países emergentes.

Todavia, graças a este sistema é que o país mais rico do mundo pôde viver de crédito e muito acima dos seus recursos, atraindo, graças ao papel imperial do dólar, 80% da poupança mundial. Ao mesmo tempo (mas não só dentro dos Estados Unidos), desenvolvia-se um enorme jogo especulativo: crédito fácil, endividamento de massa, muito além do rendimento do próprio trabalho, criação de uma economia de consumo, a qual se traduziu num crescente aumento das desigualdades e numa pressão devastadora sobre os bens públicos e os recursos naturais. E, enquanto se oferecia aos trabalhadores e às camadas médias a eterna ilusão de que, endividando-se, podiam se enriquecer ao infinito, com a idéia de que se pode fazer dinheiro por meio do dinheiro, ocorria na realidade uma impressionante redistribuição do poder e das riquezas em favor das oligarquias dominantes.

Um enorme jogo de espelhos, que se quebrou quando — como dizia Keynes — “o desenvolvimento do capital real de um país torna-se o subproduto das atividades de um ‘cassino’”. Salvati não usa estas palavras. Mas me pareceu significativa sua referência ao livro de Robert Reich, ferozmente polêmico com este sistema. Bem. Mas, se é assim, não pode deixar de se colocar um problema muito grande — político, mas também intelectual e moral. E não só para quem escreve. Parece-me evidente que começar a pensar num modelo diverso para a gestão da economia mundial é uma tarefa (mas também um dever ético-político) não mais adiável. Além do mais, os governos europeus puseram na mesa algo como dois ou três trilhões de dólares (tirados, evidentemente, do bolso das pessoas, inclusive de aposentados e operários). Muito bem. Será que se pode pelo menos começar a pensar num futuro diferente?

Salvati não evita este problema. Não nega que seria necessária uma alternativa e reconhece que os modelos capitalistas podem ser diferentes entre si, até mesmo profundamente: o modelo keynesiano, isto é, o compromisso entre o capitalismo e a democracia era inteiramente diferente da virada ultraliberista dos anos 1970. O problema que ele levanta é outro, e é o verdadeiro problema que desafia hoje a esquerda e justifica sua inércia. Faltam — diz — as condições. E as condições de que fala não são tanto as objetivas (a profundidade da crise, a insustentabilidade do modelo atual) quanto as “grandes reorientações ideológicas, culturais, teóricas e, por fim, reorientações políticas igualmente profundas”, que permitiram aquelas duas grandes transformações (o keynesianismo entre os anos 1930 e 1940 e o neoliberismo dos anos 1970).

Tenho muito respeito por Salvati, um velho amigo que sempre escuto com atenção. Mas não resisto à necessidade (até moral) de lembrar, a propósito de condições culturais, o que foi nestes anos a verdadeira destruição do pensamento político da esquerda e de qualquer visão autônoma dessa mesma esquerda em relação ao pensamento único da oligarquia financeira. Um martelar cotidiano, nunca visto antes, contra os salários (sempre altos demais), os sindicatos (inúteis), a privatização das aposentadorias como condição para o desenvolvimento (é o que vão perceber os aposentados americanos ligados aos títulos de Wall Street). Para não falar das empresas que valem só pelo preço das ações e não por aquilo que produzem. E a escala dos valores dominantes: a reverência até ridícula diante da riqueza e da genialidade dos banqueiros, estes novos heróis do nosso tempo.

Talvez fale em mim um velho comunista, que deveria ficar calado. Então que falem os liberais. Expliquem-nos aonde vai terminar não a “classe”, mas a liberdade da pessoa, se a sociedade for reduzida a sociedade de mercado, se os homens forem postos em relação entre si sem tomar como referência sua substância humana, mas sim suas “máscaras”, sob as quais não existem criatividade nem projeto de vida, só indivíduos que se medem com uma só medida: a capacidade de consumo, o dinheiro.

Por que Salvati chama este sistema de “liberal”? Lamento, não estou de acordo. E não porque não perceba a necessidade de uma revolução cultural ou subestime a fraqueza da esquerda, que também paga pela ilusão de delimitar para si um espaço (uma “terceira via”?) no “cassino” destes anos. Não havia as condições: foi o que nos disseram. É muito triste ouvir isso de novo. Por certo, eu também, como Salvati, não vejo por aí um novo Keynes e não creio que Obama tenha a estatura de Roosevelt. Mas recuso a idéia da política que existe neste modo de pensar. É exatamente isso que nos levou não ao risco de perder (pode-se sempre perder e depois voltar a vencer), mas de sermos irrelevantes. Condições são criadas. É o que não se compreendeu e se continua a não compreender: mais do que a riqueza, conta a inteligência das pessoas. As condições não existirão nunca, se a política não voltar a ser, antes de mais nada, conhecimento, descoberta da realidade, liberdade de pensamento, idéias fortes e, portanto, novas energias recolocadas em movimento. A história destes anos deveria ensinar algo.

Homens como Salvati têm a inteligência e o nível para contribuir para criar estas famosas condições, pelo menos culturais. E muitos, muitos deles não o fizeram nestes anos. No entanto, não era preciso nenhuma cigana para adivinhar que este gigantesco jogo de dívidas era insustentável. Por isso, não gosto quando, agora, são os mesmos a nos dizer que a crise é grave, acrescentando, porém, que não existem as condições para mudar. Também sei que não será fácil mudar. Mas ponho uma condição: poder dizer às pessoas que existe uma grande e nobre razão pela qual construímos um novo partido. E esta consiste na convicção de que chegou o momento de lutar por um mundo mais justo, no qual uma nova esquerda européia seja protagonista.


Alfredo Reichlin foi membro da secretaria, da direção e do comitê central do PCI, além de responsável pelo Departamento Econômico e ministro do “governo sombra” daquele partido. Foi também presidente da Direção Nacional dos DS (Democratas de Esquerda). Recentemente, esteve à frente da comissão responsável pela redação da “Carta de valores” do PD (Partido Democrático). Dirige a Fondazione Cespe — Centro Studi di Politica Economica, em Roma.

Em nota, Bloco Democrático e Reformista diz que PT e Lula já são o passado


Valéria de Oliveira
DEU NO PORTAL DO PPS


Os partidos que formam o Bloco Democrático e Reformista – PPS, PSDB e DEM – emitiram nota rechaçando o que chamam de “provocações mesquinhas do PT”, que culpa os tucanos pela crise econômica. O texto chama a atenção para a “incongruência” da tese petista explicitada em reunião realizada neste fim de semana em São Roque (SP): “se o presidente Lula oficializou a versão, evidentemente falsa, de que o Brasil não sofre os efeitos da crise econômica, como atribuir a onda de desemprego e de forte recesso das atividades produtivas ao ‘governo anterior’”?.

Para os três partidos integrantes do bloco, “o Governo Lula já representa o próprio passado de que reclamam os petistas, que, portanto, atingem a si mesmos” com o discurso que insistem em manter

Na nota, PPS/PSDB/DEM, afirmam que após seis após “de juros altos, permissividade nos gastos públicos, populismo cambial, escândalos financeiros e corrupção disseminada e acobertada, o PT e o governo não apenas têm todas as culpas como, além de procurar bodes expiatórios remotos, mostram-se incapazes de apresentar à Nação um programa efetivo e transparente de ações do Estado brasileiro para enfrentar os reflexos do quadro de evidente calamidade para o qual caminha a economia mundial e que se agrava a cada dia”. Leia a íntegra da nota:

“Nota à Imprensa

O PT esgotou seu prazo de carência para atribuir ao passado a culpa pelos efeitos da crise econômica. Depois de seis anos do Governo Lula, a legenda do oficialismo surpreende o País com uma dupla incongruência: se o Presidente oficializou a versão, evidentemente falsa, de que o Brasil não sofre os efeitos da crise econômica, como atribuir a onda de desemprego e de forte recesso das atividades produtivas ao “governo anterior”?

Como governistas no poder podem culpar o “passado” por uma “realidade” que o seu Presidente nega peremptoriamente?

As manifestações petistas refletem o pânico que vivem em função das reações da população, por eles mesmos expostas detalhadamente na reunião de São Roque (SP). Reconhecem a crescente incapacidade do Governo para enfrentar a crise e indicam que escolheram um perigoso e débil álibi: queixam-se de um passado remoto – o qual denominam “governo anterior” - a que já tiveram tempo suficiente não apenas para superar, mas para revogar e denunciar seus atos, o que jamais fizeram.

Após seis anos de juros altos, de populismo cambial, de permissividade nos gastos públicos, de escândalos financeiros e corrupção disseminada e acobertada, o PT e o Governo Lula não apenas têm todas as culpas como, além de procurar bodes expiratórios remotos, mostram-se incapazes de apresentar à Nação um programa efetivo e transparente de ações do Estado brasileiro para enfrentar os reflexos do quadro de evidente calamidade para o qual caminha a economia mundial e que se agrava a cada dia.

Em vez de convocar as forças vivas da Nação, independentemente e acima das divisões partidárias, para a indispensável mobilização da sociedade, os petistas partem para provocações mesquinhas e facilmente desmoralizadas.

O Governo Lula já representa o próprio passado de que reclamam os petistas, que, portanto, atingem a si mesmos.”

Roberto Freire
Presidente Nacional do PPS

Rodrigo Maia
Presidente Nacional do DEM


Sérgio Guerra
Presidente Nacional do PSDB

Serra diz que é bom estar 'bem na foto' e critica PT


Soraya Aggege
DEU EM O GLOBO

Para governador, é "engraçado" que petistas culpem PSDB por crise

SÃO PAULO. Animado com pesquisa Datafolha que o aponta como líder na corrida presidencial de 2010, o governador José Serra (PSDB) fez críticas ao PT e à condução da economia. Ele chegou a afirmar que almeja resultados rápidos de seu governo, já que em 2011 não estará mais no Palácio dos Bandeirantes. O governador, que tem evitado comentar pesquisas, afirmou que está "bem na foto", depois de considerar que elas são "um retrato" do momento. Segundo o Datafolha, ele tem entre 36% e 41% das intenções de voto, conforme o cenário.

- É bom estar na frente em uma pesquisa. Mas tenho presente que faltam dois anos para a eleição, e que pesquisa é uma fotografia do momento. Agora, estar bem na foto não é ruim. Evidentemente me agrada.

Serra rebateu a crítica que a cúpula petista fez ao PSDB, no domingo, numa reunião em São Roque (SP). Os petistas atribuíram ao PSDB e ao DEM a culpa pela atual crise econômica, "por terem patrocinado no país o modelo neoliberal". Serra reagiu:

- Ah, sim, claro! O PSDB saiu do governo em 2002. Então tem um poder extraordinário: seis anos depois, com o amplo apoio da opinião pública que o governo tem, maioria no Congresso, a culpa é do PSDB. Eu acho que é algo até engraçado. Sei que vocês (jornalistas) não vão dizer, mas também acharam engraçado. Não deixa de ser extraordinário!

O DEM, em nota, também rebateu o PT, afirmando que o partido "esgotou seu prazo de carência" para culpar o passado pelos efeitos da crise: "(Os petistas) Reconhecem a crescente incapacidade do governo para enfrentar a crise e indicam que escolheram um perigoso e débil álibi: queixam-se de um passado remoto - o qual denominam "governo anterior" - a que já tiveram tempo suficiente não apenas para superar, mas para revogar e denunciar seus atos, o que jamais fizeram."

Em discurso, Serra respondeu a outra crítica do PT a seu governo. Disse que "alguns poucos deputados da oposição" na Assembléia de São Paulo afirmam que ele não tem aumentado investimentos no estado, o que não seria verdade. Segundo o PT paulista, em vez de ampliar investimentos diante da crise, Serra vai quase dobrar os gastos do estado com propaganda: de R$166 milhões em 2008 para R$313 milhões em 2009.

Serra deixou escapar que não estará mais à frente do governo "em 2010, 2011". Ao discursar, questionou um funcionário sobre o número de bolsas para pesquisadores de um projeto. Ao saber que eram 60 e que o número só crescerá nos próximos anos, disse que esperava 120, e lamentou: -Mas em 2010 eu não estarei mais aqui.

Em entrevista, depois, disse:

- O meu mandato termina em 2010. Em 2011 eu não sei onde estarei. O fato é o seguinte: quero que as coisas importantes terminem até 2010. É natural. Serra lançou ontem a Investe São Paulo, Agência Paulista de Promoção de Investimentos e Competitividade. Ele anunciou ainda, para abril, a criação de um banco de investimentos, que apelidou "BNDES Paulista", com R$1 bilhão. Boa parte desse montante provém da venda do banco Nossa Caixa ao Banco do Brasil. O futuro banco complementará a agência, que herdou uma carteira de R$10 bilhões.

Serra criticou a política econômica. Disse que o país foi pego em condições desfavoráveis pela crise devido à política econômica, com as fragilidades fiscal, da balança de pagamentos e política cambial errada.

- A política de juros siderais e câmbio arrochado não deu certo. O Brasil entrou na crise com déficit em conta corrente do balanço de pagamentos, apesar de ter os preços das commodities nas nuvens.

Depois, disse que sua intenção não é fazer um "Fla x Flu":

- Tem algumas coisas que (o governo) está fazendo direito e outras que poderia fazer melhor.

Outro dia um grande jornal falou de escolas técnicas e ficou comparando... O Lula fez, o Serra não. A opinião pública não quer isso, não quer Fla x Flu. Quer coisas acontecendo.

O PT tropeça na crise

EDITORIAL
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Já não bastasse a fatalidade de disputar a próxima eleição presidencial, pela primeira vez desde 1989, sem a candidatura Luiz Inácio Lula da Silva, o PT terá contra si na campanha de 2010 os maus ventos da economia. Ainda que os estragos da crise financeira mundial não venham a mergulhar o Brasil numa recessão como a que já se instalou nos países centrais, bastará a ruptura do ciclo de bonança dos últimos anos para recobrir com pesadas nuvens as chances petistas de se manter no governo - com uma provável candidata, a ministra Dilma Rousseff, da escolha pessoal de Lula, sem raízes na agremiação e cujo apelo eleitoral por enquanto se traduz em índices de um dígito nas pesquisas de intenção de voto. Além disso, tampouco se sabe até que ponto a popularidade do presidente se manterá incólume, à medida que se frustrarem as atuais expectativas otimistas da maioria da população, e, menos ainda, qual será a sua capacidade de carrear votos para a sua afilhada política, no cenário de adversidade que se desenha.

O PT, portanto, tem motivos de sobra para se inquietar - e para procurar, desde já, uma estratégia eleitoral que atenue o dano inevitável da ausência, na cédula eletrônica, do nome que agrega votos numa escala a que a legenda não pode aspirar, para si, nem em sonho. Será, ao que tudo indica, uma jornada acidentada e de resultados duvidosos.

O primeiro passo, pelo menos, foi um tropeço. No último fim de semana, mais de 200 dirigentes partidários se reuniram em São Roque, no interior paulista, para um encontro da corrente Construindo um Novo Brasil, que controla o PT, nascida dos escombros do antigo Campo Majoritário, alcançado em cheio pelo escândalo do mensalão em 2005 (o que não abalou a liderança, no grupo, do ex-ministro José Dirceu). Ao cabo de três dias de palestras, com a presidenciável Dilma no papel de debutante, a elite petista chegou à notável conclusão de que a culpa pela versão brasileira da crise econômica cabe ao PSDB e ao DEM.

"A crise tem pai e mãe", proclamou no encerramento da reunião o secretário nacional de Comunicação do partido, Gleber Naime. "Ela é uma crise do modelo neoliberal, daqueles que no Brasil defenderam as idéias de desregulamentação do Estado, ou seja, o PSDB e o DEM. E esse debate o PT vai fazer." A confusão é geral. Para começar, os petistas agem como se as políticas que têm como anátema - aquelas iniciadas no primeiro governo de Fernando Henrique a partir da estabilização da moeda brasileira, com a criação do real, e sensatamente mantida, até hoje, pelo presidente petista - não fossem os alicerces de toda sua imensa popularidade. Além disso e mais importante ainda, foi graças a essas políticas, impropriamente rotuladas de neoliberais, que o Brasil é apontado hoje como o país mais apto entre os emergentes a resistir ao tsunami global. Ou, nos termos de um relatório da OCDE, divulgado na última sexta-feira, o cenário é de perda de ritmo, não de "forte desaceleração".

Se o PT, portanto, for aos palanques de 2010 com o dedo acusador apontado para o "modelo falido", como causador do que vier a ser, até lá, a crise no Brasil, estará fazendo campanha contra o governo de seu maior líder histórico e seu principal eleitor. O paradoxo é gritante - e revelador do bloqueio mental de que padece o petismo. O que a companheirada é incapaz de admitir é que não houve no Brasil, sob Fernando Henrique, nada que lembre a desregulamentação dos mercados financeiros nos EUA. Ao contrário, o Proer, que os petistas combateram a ferro e fogo, foi o que proporcionou ao sistema bancário nacional a estabilidade graças à qual não teve o destino dos seus congêneres da América do Norte e da Europa.

Também no plano do Estado, foi a "herança maldita" da administração FHC - com a Lei de Responsabilidade Fiscal e o equilíbrio das contas públicas - que hoje permite ao governo fazer praça do seu preparo para enfrentar a conjuntura ameaçadora.

"(No passado), o governo quebrava, perdia a capacidade de fazer política monetária, de expandir crédito", lembrou dias atrás Dilma Rousseff. "Hoje, estamos em situação diferente, temos todos os instrumentos para agir na crise. Podemos ampliar crédito e (adotar) tantas outras medidas para garantir uma aterrissagem mais suave." Para o PT, é porque Lula mudou tudo?

Aposta arriscada


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


O presidente Lula está dobrando a aposta na possibilidade de o futuro presidente dos Estados Unidos Barack Obama vencer rapidamente a crise econômica, e por isso já anuncia que em 2010 tudo terá passado. Prefere tentar preservar sua altíssima popularidade criando um ambiente fantasioso em torno de seu governo, a enfrentar a dura realidade que tem pela frente nos próximos anos. Corre o risco de ter contra si a desilusão dos 78% dos brasileiros que estão convencidos de que sua vida vai melhorar em 2009, certamente embalados pela retórica presidencial. Como todo mundo que fala muito, o presidente Lula vai deixando escapar pensamentos mais íntimos, que explicam suas posições públicas, muitas aparentemente descabidas.

Quando explicou candidamente que um médico não diria a um paciente que ele "sifu", mesmo sabendo que não tinha salvação, estava tentando explicar sua postura de animador de auditório enquanto a crise se agrava e o governo teima em negá-la. Ontem, quando garantiu que este Natal será o melhor dos últimos tempos porque o país está crescendo, e que a crise estará superada em 2010 porque nenhum governo consegue manter-se com uma crise indefinidamente, estava revelando sua aposta no governo Obama.

Enquanto pode, Lula vai valorizando os números passados como se representassem o presente, tentando ganhar tempo na memória do eleitor. Mas nunca o anúncio do crescimento de uma economia será tão anacrônico quanto o do PIB de 2008, que o governo comemora antes mesmo de ser oficial.

Um aumento do PIB que já foi superior a 5% e que poderá se tornar mais próximo de 4,5%, já indicando um processo irrefreável de desaceleração que está em andamento, enquanto o governo comemora as imagens no retrovisor que vão se distanciando cada vez mais.

O formidável índice de 70% de popularidade tem tudo a ver com os 78% que ainda acreditam que 2009 será melhor, enquanto é cada vez maior a possibilidade de haver uma recessão na economia já no primeiro trimestre do próximo ano.

O que está faltando para o governo agir? Tudo indica que a persistência em preservar a popularidade do presidente e, ainda por cima, sua capacidade de influir na sucessão presidencial, leva o governo a retardar uma aceitação mais clara de que a crise já está entre nós.

Ao contrário de 2003, quando Lula tinha tempo pela frente e, sobretudo, um ministro da Fazenda como Antonio Palocci para assumir a responsabilidade de atos impopulares que, sabia, dariam resultado mais à frente, hoje Lula já não tem nem tempo nem o convencimento de que precisa tomar medidas drásticas e urgentes para evitar uma crise futura mais séria ainda.

Os governos europeus e dos EUA, ao assumirem que há uma crise gravíssima a enfrentar, criaram comitês de crise, formularam planos que incluem uma mudança política e ideológica radical.

Mas, ao contrário do que pensam petistas mais afoitos que voltam a defender medidas de exceção diante da crise de autoridade do governo, nem o governo Bush admitiu que o capitalismo "sifu", nem os governos europeus estão estatizando o sistema financeiro por que se converteram ao socialismo diante da crise econômico.

O que eles estão fazendo é salvar o sistema capitalista, reforçando seus princípios e corrigindo distorções. O PT, ao tentar voltar ao passado para encontrar um bode expiatório para os problemas atuais da economia que, eles prevêem, trarão dificuldades políticas para o governo, está duplamente equivocado.

Critica a política econômica, que classifica genericamente como "neoliberal", responsável pelo relativo sucesso do governo Lula até o momento, e assume novamente posições econômicas retrógradas, como a redução do superávit primário para maior investimento em obras públicas, sem poder encarar o verdadeiro problema: o gasto do governo com a máquina do Estado, aparelhada pelo PT, é a verdadeira razão de o governo não poder investir mais em desenvolvimento.

A solução dos Estados Unidos de explodir o déficit e a dívida, que terá na futura administração Barack Obama um prosseguimento mais aprofundado ainda - o que levou ontem as bolsas mundiais à euforia - não serve para Lula por uma singela diferença: Obama emite dólar e Lula emite reais.

O mundo quer cada vez mais dólares, ninguém quer reais - se quisesse, os investidores não estariam saindo como boiada do país, fugindo do Real como o diabo da cruz, na definição de um economista.

A origem de nossos problemas está mais do lado da oferta, ou seja, sumiu o crédito para os empresários investirem e até produzirem. A necessidade é de liquidez. O Brasil pode e deve usar o Banco do Brasil, a Caixa e o BNDES para financiamentos da produção, mas de pouco adiantará se esses bancos estatais forem mal usados, se demorarem para agir, ou ficarem "trocando figurinhas dentro do próprio governo".

Todos descarregaram crédito para a Petrobras e, mais grave, a maior parte para capital de giro. Na melhor das hipóteses, significa que a Petrobrás está tirando crédito do resto da economia, como o próprio Lula reconheceu há alguns dias.

Da mesma maneira, se se confirmar a decisão do governo de acelerar os gastos das estatais para tentar evitar a recessão, haverá menos créditos para pequenas e médias empresas.

Em vez de tentar assumir o lugar da iniciativa privada para aquecer a economia, o governo brasileiro deveria estar empenhado em conter despesas públicas - de preferência buscando o déficit nominal zero - para poder atingir um índice de investimento entre 25% e 30% do PIB, e reduzir a carga tributária, além de retomar negociações para reformas tributária e previdenciária profundas.

O bagaço da laranja


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Difícil vai ser o PT convencer alguém com neurônios em estado razoável de conservação. Noves fora esse detalhe, é perfeita a estratégia do partido de transferir a culpa da crise econômica para o PSDB: se os tucanos importaram o modelo e ele desmorona, é preciso eleger uma pessoa comprometida com a mudança.

Seria apenas elementar o silogismo não fosse tosca e, sobretudo, cínica a tentativa do PT de ficar no poder mediante a reinvenção de um discurso de crítica aos fiadores originais da política econômica adotada pelo partido em dois períodos consecutivos frente à Presidência da República.

Isso depois de se negar a dividir com os autores os bons resultados obtidos ao longo de seis anos, de se apropriar do fim da inflação, da estabilidade da moeda e de todos os fundamentos, cuja adoção anterior permitiu ao governo Luiz Inácio da Silva desfrutar dos efeitos da bonança internacional e amealhar respeitável patrimônio de 70% de popularidade.

Tal decisão não é fruto de opiniões isoladas, coisa daquela ala antigamente denominada xiita.

Foi anunciada pelo tesoureiro do partido - "É a crise de um modelo do qual o governo FHC e o DEM foram os grandes patrocinadores no Brasil" - e corroborada pelo presidente da agremiação, deputado Ricardo Berzoini.

"Eles (os partido hoje de oposição) avalizaram o movimento neoliberal no Brasil", disse Berzoini todo convicto de que o ataque pesado à política inaugurada nos anos 90 é a saída ideal para o PT tentar eleger Dilma Rousseff ou quem quer que venha a ser o candidato, ou candidata, oficial à sucessão de Lula.

Pelo que se depreende do debate ocorrido entre dirigentes petistas no último fim de semana no interior de São Paulo, o partido pensa em patrocinar uma volta às origens, a fim de se credenciar ao recomeço; de preferência do zero naquilo que for conveniente.

Por exemplo: anula-se o desgaste de dois mandatos, a desmoralização resultante dos escândalos, a banalização das más companhias, a degeneração fisiológica, a perda da bandeira da ética em algum lugar no meio desse caminho e volta-se a preconizar ao eleitorado a "mudança".

A motivação para se dar um "boot" na máquina seria um problema, mas eis que a crise econômica surge para dar a solução aparentemente ideal: ao mesmo tempo permite ao PT dar o dito pelo não dito e ainda é uma maneira de atacar o principal candidato, o tucano José Serra, em primeiro lugar nas pesquisas.

O singular é que a nenhum dos dirigentes tenha ocorrido a hipótese de a argumentação soar tenebrosa ao eleitorado, do ponto de vista, senão da coerência (preceito devidamente revogado), pelo menos da amoralidade.

Evidentemente, o PT não espera que no meio da turbulência de conseqüências ainda desconhecidas o "seu" governo vá mudar radicalmente o rumo das coisas. Portanto, no essencial a política segue como está.

Sendo assim, como é que o PT pode pensar que o eleitor vá votar no representante de um governo que faz uma coisa, cujo partido diz que está errada, e promete, se eleito, fazer tudo diferente?

Como espera que alguém acredite que a responsabilidade seja dos dois partidos de oposição que estão há seis anos assistindo à comemoração do desempenho de uma política, sem direito a um mísero ingresso para a festa?

Pois então o governo usa e abusa de uma herança dita "maldita" no início, usufruiu de todos os méritos, subtrai do registro da História a assinatura dos autores e, quando o vento vira, devolve o capital dilapidado e sai ileso dizendo que não tem nada a ver com isso?

Foi isso o que propôs o PT em seu encontro de São Roque. Agora, pode ter havido um mal entendido. Se houve, urge o PT esclarecer as coisas o quanto antes.

Sob pena de fazer fama de mau caráter na praça, de querer crescer à custa de difamação, de não ter aplicado a fórmula correta a tempo de evitar o desastre e, pior, de não ter uma única idéia nova a apresentar ao eleitorado para justificar sua permanência no comando na Nação.

Antes que o leitor lembre a ausência de pensamentos (qualquer um, novos ou velhos) também na oposição, cumpre registrar ser este um fato sobejamente conhecido. Quem se apresentou ao debate com a novidade da estação foi o PT e, com isso, reservou mesa de pista na berlinda.

Mas admitamos que seja isso mesmo, que o PT pretenda reeditar em 2010 o discurso de 2006, atacando os neoliberais, os privatistas, os fiéis seguidores do Banco Central etc.

Ver-se-á frente a frente com um adversário de "top" semelhante. Com a diferença que José Serra discorre a respeito desse conteúdo de uma forma muito mais consistente, concorde-se com ele ou não.

Se o intuito do PT for justamente se preparar para enfrentar o adversário no campo localizado à esquerda, vai precisar de um invólucro melhor do que este da devolução da herança na antiga versão maldita, depois da satisfação obtida ao longo de dois mandatos consecutivos.

Sem lugar na Praça dos Três Poderes


Raymundo Costa
DEU NO VALOR ECONÔMICO


É mais que uma ameaça do PT e do Palácio do Planalto o risco de o PMDB ficar sem uma cadeira institucional na Praça dos Três Poderes, nos dois últimos anos do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do qual tornou-se o principal aliado e pelo qual é tratado como parceiro preferencial para as eleições de 2010.

Trata-se de um risco real porque o acordo PT-PMDB, reafirmado semana passada pelos dois partidos, não basta para assegurar matematicamente a eleição do deputado Michel Temer (SP) para a presidência da Câmara.

Somadas, as duas bancadas contam com 174 deputados, sendo 94 do PMDB e 80 do PT. Supondo-se que Temer fique com todos eles, ainda faltariam 82 para a maioria absoluta exigida à eleição em primeiro turno.

Parece pouco, mas a desenvoltura da campanha do deputado Ciro Nogueira (PP-PI) é bastante para deixar preocupados os pemedebistas. Especialmente os senadores.

O Senado é um colégio menor (são 81 eleitores) e mais fácil de controlar, segundo dirigentes pemedebistas acostumados às duas disputas. A dúvida é a Câmara. O risco, avalia o partido, é abrir mão da presidência do Senado para o PT, como quer o governo, e Michel Temer perder a eleição entre os deputados.

Ciro é o candidato do que se convencionou chamar de baixo clero, como era Severino Cavalcanti (PE), seu colega de partido. A exemplo de Severino, tem amplo trânsito nessa maioria silenciosa que transita anônima os corredores da Câmara, mas não faz o estilo folclórico do "deputado das bananas" como Severino se qualificava, com orgulho. Ou na expressão politicamente incorreta de um dirigente partidário: "Ciro sabe comer com talher".

O deputado do PP está há mais de dois anos em campanha e é a nova cara de um baixo clero ressentido com as cúpulas partidárias, em geral por falta de oportunidades para trocar o fundão do plenário por um assento nos primeiros lugares, aqueles aos quais os holofotes da mídia reservam especial atenção.

Não bastasse o assédio de Ciro Nogueira, a trincheira do pemedebista está na mira também do "bloquinho" (PSB, PDT e PCdoB), que se ressente do acordo PMDB e PT que permitiu a eleição de Arlindo Chinaglia e a derrota do deputado Aldo Rebelo, para a presidência da Câmara, na eleição de 2007.

A manutenção do acordo de 2007 está ameaçada, mesmo, apesar das reiteradas juras feitas pelo PT de que não vai vincular as eleições para as duas Casas - ou seja, entregaria a Câmara para o PMDB, mas em troca levaria a presidência do Senado, em nome da harmonia dos poderes.

O PMDB até conversa sobre o apoio a Tião Viana (PT-AC), mas a candidatura do senador sofreu um baque esta semana, ao se descobrir que ele fez emendas ao Orçamento para a distribuição de 1,8 mil cadeiras de rodas no Acre - prática assistencialista que não condiz com seu discurso de campanha (os senadores seriam mais condescendentes com uma emenda coletiva, mas trata-se de uma emenda pessoal).

A insegurança em relação à Câmara, no entanto, levou a bancada de senadores a reclamar sua prerrogativa de eleger o presidente do Senado, em reunião realizada na semana passada, da qual participaram todos os seus 20 integrantes. Inclusive José Sarney.

O ex-presidente continuar a dizer que não é candidato, mas um novo argumento começou a circular em seu favor: embora filiado ao partido, ele seria o único nome que extrapola a bancada do PMDB, dispondo também de aliados em todas as outras bancadas, do Democratas ao PT.

Quebra de contrato

Os novos ataques do grupo dominante do PT à política monetária não chegam a surpreender. São inoportunos, mas recorrentes. Talvez reflitam apenas a frustração daqueles que viam no crescimento econômico a chance de se livrar de uma vez por todas de Henrique Meirelles, presidente do Banco Central (BC), e sua equipe. Ou talvez a tentativa de impedir que o tucano José Serra tome conta do discurso da queda dos juros, que o mercado futuro já contabiliza para mais dia, menos dia.

Discurso, aliás, que há mais de oito anos é também recorrente no governador de São Paulo. Serra costuma brincar dizendo que não deixou o Ministério do Planejamento, em 1996, para ser candidato a prefeito de São Paulo; na realidade, ele foi candidato (e perdeu) para deixar o ministério, onde acumulara um imenso contencioso com a equipe econômica. Entre outros motivos, juros altos, embora já se iniciasse um movimento de queda, e câmbio apreciado.

Mas a investida do Construindo um Novo Brasil, a nova denominação do antigo campo majoritário do PT, também pode esconder outras poções que fervem em caldeirões petistas, como a retirada da autonomia que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva até agora deu ao BC. Seria uma quebra de contrato, pois a autonomia, mesmo restrita ao fio de bigode entre Lula e o presidente do BC, foi a condição que Meirelles impôs para renunciar a um mandato de deputado federal e assumir o Banco Central numa época em que a cobiçada cadeira era evitada por outras cabeças mais cotadas para a função.

Roda mundo

As opiniões do senador José Sarney sobre o governador de São Paulo, José Serra, não são "imutáveis", como se habituou a acreditar o mundo político nos últimos seis anos, segundo interlocutores assíduos do ex-presidente e de sua filha Roseana Sarney. Uma operação da Polícia Federal num escritório do marido de Roseana, em 2002, envenenou a relação dos Sarney com Serra e jogou por terra a candidatura presidencial de Roseana, bem avaliadas por todas as pesquisas da época.

Nesse período, Roseana e o marido foram isentados pela Justiça. Os interlocutores da família, por outro lado, dizem que as opiniões de Sarney sobre Serra "não são imutáveis". Suas restrições seriam muito mais ao caráter "paulista" da candidatura Serra. O senador tem sido aconselhado a conversar com o presidenciável tucano.

Raymundo Costa é repórter especial de Política, em Brasília. Escreve às terças-feiras