segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Intervalo para pensar

Wilson Figueiredo
Jornalista
DEU NO JORNAL DO BRASIL


A reeleição do presidente Lula não produziu, até agora, nenhum fato importante além da candidatura presidencial da ministra Dilma Rousseff, que correu mais depressa do que a necessidade e acabou exposta à chuva e ao sol. Era tudo de que o presidente não desejava, dada a imprudência de deixar a candidata nas garras da ociosidade da oposição. Sem se livrar da suspeita de apenas guardar o lugar para ele, em caso de necessidade não de todo descartável. Um ano em tais condições é desgastante para os dois. Do ponto de vista dela, tudo é novidade. Dele, nem tanto.

A nova oposição, sem antecedentes suficientes, começou pensando que o castigo (a privação do poder) também fosse para sempre. Nada é para sempre, muito menos em política. Para vencedor e vencido a hora da verdade está a caminho, mas falta um ano inteiro num jogo de faz-de-conta que muitos pensam que é a própria política. Não é.

Assim que o presidente Lula viu prosperar a idéia de que o terceiro mandato cabia como hipótese racional (dois não se mostraram suficientes), a oposição se lembrou de que era social-democrata e, como tal, devia se comportar. Mas a tradição, onde floresceu a idéia reformista da social-democracia, não é animadora. Trata-se de uma arte refinada de perder o poder por ambigüidade. A margem de erro é maior do que a de acertos. Reforma ou revolução? Nossa social-democracia esperou que acontecesse. Pensou, metaforicamente, que caísse do céu, e não que brotasse das urnas. Chegamos ao estágio superior em que, como se dizia a respeito do Brasil, tudo pode acontecer. Inclusive nada, como conclusão.

De tanto nada acontecer, aconteceu o pior: a invocação do AI-5 na sua data oficial, para mais uma vez exorcizá-lo. Mas, a social-democracia não é superstição. O petismo, que não diz o que é, também não entendeu que a opção sempre oscilará entre uma revolução que passou de difícil a impossível, e uma reforma contínua, sem prazo definido, mas ininterrupta, que até agora só existiu na teoria. O Brasil parece historicamente predestinado a ancorar na social-democracia, mas as hipóteses se adiantam e confundem a oportunidade. Reforma ou revolução? Não se trata de opção a fazer a cada encruzilhada, mas como ponto de partida. E coerência como compromisso.

Na segunda metade do século 20, a esquerda se inclinou para as soluções deste lado, sem abrir mão da ilusão com a idéia revolucionária, que parece encurtar o caminho mas deixa mais longe o resultado. O reformismo é o varejo da idéia de revolução cultuada com maiúscula. Ora, a política brasileira, fora dos livros de história, é um varejo inesgotável. Até retrocesso se faz passar como reforma. O mais das vezes o reformismo faz venda avulsa de mercadoria que não pagou imposto. Nada mais parecido com odor de contrabando do que deputado ou vereador vendendo falsificações nas esquinas: a diferença entre um deles e um camelô é mínima. No século 21, de tal ponto de vista, nada melhorou. A esquerda foi para o poder por engano de endereço. Deve ter pensado que era uma forma geneticamente adaptável ao liberalismo. E a conseqüência veio a cavalo. A social-democracia foi ultrapassada pelo petismo, cujo compromisso político era fazer reformas na conta da revolução, mas quem veio – mais uma vez – bancar o projeto foi o velho capitalismo.

O círculo vicioso em que a idéia de reforma e a ilusão revolucionária se revezam não evoluiu. O PT se sentia e se anunciava revolucionário e, como tal, mantido longe do governo pelo eleitor.

Depois da carta de Lula endereçada ao povão, mas lida nas entrelinhas pelo mercado, produziu-se o efeito oposto: o poder ficou ao alcance, e Lula não perdeu mais eleição. Graças ao antecedente social-democrático, a reeleição confirmou a natureza brasileira superficialmente reformista e apenas nostalgicamente revolucionária. Elege-se por uma razão mas governa-se por outras, velhas conhecidas. Falta mais do que um refrão do tipo de La cucaracha que embala os mexicanos. Nós temos o Carnaval, que consome alta energia coletiva, mas não prepara revoluções.

E assim, de reforma em reforma que não se consuma, o Brasil afasta-se de solução possível e não se aproxima de nenhuma revolução. O risco diminuiu, embora o lucro social tenha aumentado para quem estava de fora. O método de desconstruir, em lugar da velha demolição, como ocorreu com a Bastilha em 1789, explica que tanto num caso como no outro, não basta formular. É preciso fazer reforma para dispensar a revolução, porque, a partir de algum momento não definido, qualquer das duas se aproveita das circunstâncias e perturba a normalidade democrática. O resto não figura em qualquer manual de teoria.

A viagem de volta ao tempo da Guerra Fria


Augusto Nunes
DEU NA GAZETA MERCANTIL

Nenhum país sabe perder uma guerra como a Bolívia: com os muitos milhares de mortos, vai-se também um pedaço do território nacional. Perdeu o trecho de litoral para o Chile em 1879, o Acre para o Brasil no começo do século passado e a região do Chaco para o Paraguai em 1935. Depois dos três confrontos, ficou com apenas 1 milhão dos 2,5 milhões de km2 que tinha ao tornar-se independente da Espanha em 1825. É demais, parece achar o presidente Evo Morales. Inconformado com a vitória na Batalha da Petrobras, que deixou a Bolívia do mesmo tamanho, ele agora anda sonhando com uma derrota tremenda para os Estados Unidos.

À caça de saídas para as enrascadas em que George Bush meteu os americanos, Barack Obama soube do perigo ao sul na sessão de encerramento da Cúpula da América Latina e do Caribe (Calc), que agitou por três dias a Costa do Sauípe. Ou o novo presidente marca logo a data em que será suspenso o embargo econômico a Cuba, propôs Morales, ou os embaixadores dos 32 países que integram a Calc são retirados de Washington. "É um ato de rebeldia", explicou. Para sorte de Obama, Lula estava lá.

"Eu sou mais cuidadoso", apartou a briga o anfitrião. É preciso dar tempo ao colega às voltas com as guerras no Iraque e no Afeganistão, bateu no cravo. Mas não muito, deu na ferradura: "A região não pode esperar que um belo dia seja chamada para conversar com o Obama". É bom que o alvo do ultimato se apresse. A Bolívia não está só.

Morales é apenas o mais belicoso passageiro da viagem de volta à Guerra Fria que acaba de fazer uma barulhenta escala no litoral baiano. Começou na montagem da lista de participantes da festa do clube dos cucarachas. Além dos Estados Unidos, ficaram fora o Canadá, a Espanha e Portugal. O cubano Raúl Castro foi o convidado de honra.

"Pela primeira vez em 200 anos, todos os países da região estão juntos", entusiasmou-se Lula. Os caribenhos entraram mudos e saíram calados. Os presidentes do Peru e da Colômbia tinham mais o que fazer e mandaram representantes. Sobrou tempo para as apresentações individuais e coletivas dos chefes de governo da América bolivariana.

Só faltou Fidel Castro para que ficasse completo o elenco da comédia de época encenada à beira do Atlântico. Se a má saúde não o obrigasse a trocar o uniforme de comandante pela farda da Adidas, e promover o irmão Raúl a ditador interino, Fidel retribuiria com um discurso de sete horas as homenagens prestadas a Cuba. Coube ao caçula receber a carteirinha de sócio de uma espécie de OEA do B prometida para 2010 e a autorização para manter a democracia na cova. Cada país escolhe livremente seu sistema de governo, diz o documento assinado por toda a turma. Os cubanos, por exemplo, escolheram a ditadura.

Fidel gostou de saber que Lula e os companheiros responsabilizaram o imperialismo ianque pela crise econômica e por todos os problemas passados, presentes ou futuros. Mas o abuso vai acabar, informou o venezuelano Hugo Chávez. "O capitalismo, que é o diabo, está morto", matou dois satãs de uma vez. "O que está mais vivo que nunca é o socialismo revolucionário".

Obama conseguiu uma trégua. Os fuzileiros navais americanos só se livrarão da insônia quando Morales garantir que não terão de enfrentar a Marinha boliviana no Lago Titicaca.

Incompetência, canalhice e economia

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Em evento recente relatado pelo "Financial Times", Martin Wolf dedicou-se, como vêm fazendo muitos de seus colegas, a pregar humildade aos economistas, repetindo a indagação da própria rainha Elisabeth II sobre a falha dos profissionais da área em antecipar a crise que se acercava (não obstante dar o devido crédito a alguns que sim advertiram para o perigo ou mesmo a fatalidade de algo catastrófico à frente). Os comentários de Wolf suscitam antes de mais nada a questão da competência dos economistas, particularmente dos que trabalham como especialistas nos problemas financeiros mais diretamente relevantes para a crise, embora sua avaliação da limitada capacidade de prevê-la destaque justamente a fragmentação das áreas de trabalho e a falta de uma visão apropriadamente integrada. Seja como for, o problema envolvido é o de uma boa ciência econômica, capaz de pesquisar e apreender com acuidade fenômenos que se manifestam em regularidades "objetivas" que se oferecem como tal aos instrumentos científicos dos economistas profissionais.

Mas há um outro aspecto, ilustrado com força singular por algo que a passagem que se desenrola do tsunami da crise acaba de revelar: a gigantesca fraude montada por Bernard Madoff (o canalha do ano, segundo "The Economist"), ninguém menos que o ex-presidente de uma instituição da importância da bolsa de tecnologia Nasdaq. Se há aqui uma questão de pesquisa e apuração de fatos, ela assume sobretudo, ao menos de imediato, a face da investigação policial ou detetivesca, onde se trata de desvendar e expor algo que os agentes envolvidos tratam deliberadamente de ocultar. E é interessante que o escândalo da fraude de Madoff surja simultaneamente com as revelações de corrupção política envolvendo Rod Blagojevich, o governador de Illinois, no quem-dá-mais pelo cargo deixado vago no Senado estadunidense pelo presidente eleito Barack Obama.

Naturalmente, olhadas as coisas de modo um pouco mais atento, também fraude e corrupção são questões relevantes - e crucialmente relevantes - para uma ciência da economia e da política. Elas remetem a indagações de pelo menos dois tipos. Em primeiro lugar, até onde contar, nos postulados sobre os quais se erigirá o trabalho de pesquisa empírica e de eventual diagnóstico de situações concretas, quer com a operação de normas e valores solidários, quer, "realisticamente", com o egoísmo e a busca da interesse próprio, ou até o valor como tal da autonomia e a necessidade de traduzir-se ele mesmo em normas adequadas. Em segundo lugar, se se supõe que o objetivo maior seja alcançar uma "cultura" em que se realize o equilíbrio aí sugerido, no qual normas democráticas e pluralistas temperem com princípios solidários a busca autônoma do interesse próprio, em que medida apostar ou no desenvolvimento e no amadurecimento "espontâneos" ou naturais do processo cultural ou, diversamente, no papel de "artificiais" instrumentos institucional-legais (no Estado, na fiscalização, na polícia) que venham a condicionar as expectativas dos agentes e pressioná-los diretamente a determinadas formas de comportamento.

A ênfase unilateral na idéia de uma cultura de solidariedade e convergência acabou produzindo no plano da política, perversamente, certa concepção cínica da democracia como credulidade ou ingenuidade - coisa de trouxas ou otários, o que, segundo alguns, explicaria que, na escala planetária, a democracia viesse a ter melhores condições de florescer à medida que nos deslocamos para o norte e nos afastamos de gente "esperta" como, por exemplo, nós latino-americanos. Sem falar do norte como o espaço de um capitalismo "racional" e regrado, em contraposição ao nosso capitalismo "selvagem" e aquisitivo.

Claro, a visão especialmente vívida de agora de fraudadores e corruptos a operar no centro democrático do capitalismo internacional ajuda a pôr de lado essa geografia simplista da racionalidade econômica e da democracia. Mas merece destaque algo que vai em direção diferente: que os avanços mais promissores no terreno relevante das ciências sociais em geral (naturalmente, com contribuição decisiva do "norte") levem à revisão de postulados conduzida de maneira tal que o "realismo" vem a comportar não só a ênfase na idéia de interesse, tomada cruamente como envolvendo o ânimo de trapaça, mas também a ligação das velhas abstrações da ciência econômica com a atenção para a sociedade e a política, e naturalmente sua cultura e suas instituições, bem como com o recurso a modelos do comportamento humano de maior complexidade, em que o ânimo egoísta e trapaceiro é somente um traço.

De todo modo, não chega a ser de todo surpreendente que uma cientista política estadunidense, Susanne Lohmann, escrevendo em 2005 sobre política monetária para um volume destinado a explorar o "estado da arte" justamente na fronteira entre economia e política (B. Weingast e D. Wittman, "The Oxford Handbook of Political Economy", 2006), tenha podido, de um lado, apontar fatos como a contaminação até da apropriação de recursos feita em nome da segurança nacional por ocasião do 11 de setembro pela política clientelista atenta aos "interesses especiais" - e, de outro lado, chamar a atenção, sem embargo de elogios ao Fed, para a precariedade dos instrumentos institucionais disponíveis para lidar, entre outras ocorrências possíveis, com as fatais "crises financeiras internacionais vindouras", ou "com contigências imprevistas extremas na escala, digamos, da Grande Depressão".

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

Do céu, só cai chuva

Nas Entrelinhas :: Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


Toda vez que ocorre uma tragédia, a desculpa é a mesma: nunca choveu tanto no local. Na verdade, o país não tem um eficiente sistema de defesa civil

Uma das vantagens estratégicas do Brasil são as condições climáticas. Mesmo onde a natureza é menos favorável, como o sertão nordestino, é possível desenvolver atividades produtivas, com até duas colheitas por ano, principalmente na fruticultura. Nós não temos tragédias naturais, como terremotos, tsunamis, vulcões e nevascas. Desse ponto de vista, o Brasil é um país abençoado. Mas as chuvas por aqui começam a causar grandes tragédias humanas, por causa das mudanças climáticas e do descaso de autoridades.

Clima

As projeções de mudanças climáticas no Brasil levam em consideração dois fatores: a temperatura e as chuvas. Na Amazônia, Nordeste e Sul do Brasil, os modelos prevêem um aumento sistemático dos extremos da temperatura do ar, embora essa também seja uma tendência para o restante do país. Em relação às chuvas, a previsão é dramática: choverá menos na Amazônia e no Nordeste; nas demais regiões, as chuvas intensas serão mais freqüentes.

O El Niño, que resulta do aquecimento das águas do Oceano Pacífico na altura da costa do Peru, sempre foi apontado como o culpado por esses fenômenos severos. Por exemplo, a grande estiagem provocada pelo El Niño de 1998 reduziu consideravelmente as chuvas na Amazônia e tornou as florestas inflamáveis. Naquele ano, 1,3 milhão de hectares de floresta em pé queimaram no estado de Roraima. Outros 4 milhões foram atingidos pelo fogo no sul do estado do Pará e norte do Mato Grosso. Agora, contudo, o culpado pode ser outro: o aquecimento do Oceano Atlântico. Estudos sugerem que a seca nessa parte da Amazônia é resultado do aquecimento na Costa da África e, provavelmente, no Golfo do México.

Previsões

Inundações estão previstas para os vales dos rios e a Ilha de Marajó, na foz do Rio Amazonas. No Pantanal, os modelos apontam para um aquecimento que tende a se intensificar até 2080, mas não se sabe se haverá mais chuvas ou estiagem. No Nordeste, manguezais serão afetados pelas cheias. Problemas mais sérios aparecerão em cidades costeiras, como Recife, Aracaju e Maceió, onde a urbanização se expandiu para áreas baixas. O clima mais quente e seco poderá castigar ainda mais a população do sertão. Estão surgindo os “refugiados ambientais”, para aumentar os problemas sociais já existentes nos grandes centros urbanos. Essas mudanças climáticas não têm causas apenas naturais, mas também “antropogênicas”, aquelas atribuídas pelos cientistas à atividade humana, como a emissão de gás carbônico e o desmatamento. No Brasil, segundo os relatórios do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), com os desmatamentos e queimadas, predominam as causas “antropogênicas”.

Esse não é um problema apenas do ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc. É um novo e grave problema nacional, que envolve prefeitos, governadores e quase todo o governo federal. Não podemos encarar o que aconteceu em Santa Catarina, Vila Velha (ES) e Campos (RJ), e agora em regiões de Minas e Rio de Janeiro, como simples fatalidades. A discussão sobre as mudanças climáticas não é nova, nosso sistema de monitoramento do clima é bastante satisfatório. Não faltam estudos e projetos para evitar que as chuvas se transformem em tragédias. Mas, apesar disso, elas acontecem.

Mobilização

Toda vez que ocorre uma tragédia, a desculpa é a mesma: nunca choveu tanto no local. Na verdade, o país não tem um eficiente sistema de defesa civil, que articule a sociedade e os poderes públicos para monitorar as áreas de risco, rapidamente socorrer as vítimas de inundações e minimizar os prejuízos materiais. Não há planos de contingência para mobilizar as Forças Armadas e os órgãos ligados à Defesa Civil com a escala e a eficiência que a nova situação exige. Ninguém sabe onde a tragédia ocorrerá, mas as áreas de risco são conhecidas. O fato é que as chuvas vão aumentar e o os governos precisam se preparar melhor para isso.

Enfrentando o desconhecido

Luiz Carlos Mendonça de Barros
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Em novembro passado descrevi um cenário tentativo para a economia mundial em 2009. Nos trinta dias que transcorreram até nosso encontro de hoje os números sobre produção, emprego e expectativas surpreenderam negativamente. Nos EUA e na Europa os indicadores antecedentes mostram quedas de PIB (em termos anualizados) no último trimestre do ano de 6,5% e 3,5%, respectivamente, números bem abaixo das projeções que vigoravam há poucas semanas; e as expectativas para o primeiro semestre de 2009 são apenas um pouco melhores. Desta forma, o cenário é hoje um pouco pior, com as expectativas de uma retomada do crescimento mundial sendo empurradas para 2010.

A súbita e profunda deterioração da economia mundial nos últimos meses mostrou de forma inequívoca que o funcionamento normal da moderna economia de mercado depende crucialmente da disposição (e capacidade) do sistema financeiro em manter o fluxo de crédito para empresas e consumidores. Para o terror das autoridades, os eventos recentes mostraram a insuficiência das ferramentas tradicionais para lidar com um evento raro que é a paralisia quase completa da confiança e do crédito nas últimas semanas.

Mas momentos extraordinários demandam medidas igualmente extraordinárias e as últimas semanas foram pródigas neste sentido. O Federal Reserve agiu de forma agressiva e inovadora conforme as condições pioravam. A medida mais relevante ocorreu na semana passada. Surpreendendo o mercado, o Fed fixou sua taxa de intervenção entre 0 e 0,25% ao ano, o nível mais baixo da história. Mesmo assim os analistas começam a debater o risco de deflação nos próximos meses. O impensável pode acontecer segundo eles: os EUA estariam ameaçados pela temida armadilha da liquidez keynesiana, onde a política monetária convencional se torna impotente para reativar a economia.

Mas o Fed decidiu não ser convencional e, na mesma reunião, deu o passo final para a adoção do que no jargão da economia é chamado de "quantitative easing", ou seja, a manutenção de um excesso de liquidez nos mercados monetários. Na prática, o Fed se comprometeu a expandir o seu balanço (emitindo moeda) de forma ilimitada até que seja possível restaurar alguma normalidade na intermediação financeira. Para tanto, declarou estar disposto a comprar diretamente no mercado os mais variados papéis financeiros, como hipotecas, títulos de longo prazo do Tesouro americano, dívidas corporativas e papéis lastreados por recebíveis de consumidores.

Os resultados desta postura são potencialmente muito poderosos. Em primeiro lugar, a presença de um comprador de última instância com recursos ilimitados implica que as taxas de juros destes títulos cairão substancialmente, como já está acontecendo com as hipotecas e com os títulos de dez anos do governo. O segundo efeito é ajudar a destravar a intermediação financeira conforme a liquidez do sistema aumente e os ganhos de arbitragem apareçam de forma mais clara. As condições monetárias estão gradualmente melhorando, embora seja ainda muito cedo para dizer quando a confiança voltará.

Este movimento do Fed foi recebido com ressalvas pelo grupo mais conservador de analistas econômicos que ressaltaram os riscos de um volta súbita e violenta da inflação. Para diferenciar a experiência de agora com o ocorrido no Japão - quando não ocorreu uma volta da inflação - estes falcões alertam para as diferenças abissais entre o consumidor americano e o japonês.

Mas os argumentos mais fortes contra esta posição de crítica à ação do Fed são de natureza econômica e não histórica. O primeiro deles é o de que o aparecimento da inflação por conta da ação do Fed seria um sinal claro de que os riscos de depressão econômica não mais existiriam. Neste caso o Fed teria vencido a batalha ao colocar a economia americana novamente nos trilhos da normalidade. Com isto as condições de voltar a lidar com a questão da inflação por meio de mecanismos tradicionais estariam restabelecidas, e o Fed poderia imediatamente voltar à política monetária tradicional. Portanto, a volta da inflação nos Estados Unidos seria quase uma benesse divina, até porque os bancos centrais estão mais bem preparados para lidar com ela do que com a ameaça de deflação.

Outro argumento contra estes críticos de Ben Bernanke e sua equipe é a impossibilidade da volta da inflação em uma economia em que a taxa de desemprego se aproxima dos 8% e a capacidade ociosa do setor produtivo, inclusive o de commodities, atinge níveis elevados. Qual o poder de preços de empresas e sindicatos nesta situação? O comportamento dos preços do petróleo mesmo com o cartel Opep em plena ação é um exemplo impressionante da situação que vivemos hoje. A inflação só poderá aparecer quando este quadro for alterado, o que levará tempo suficiente para permitir ao Fed sair da sua agressiva política monetária atual antes que o quadro terrível previsto pelos falcões se materialize.

Não tenho dúvida de que o Fed está tomando as medidas corretas para enfrentar o quadro econômico atual, criando assim as condições necessárias para uma retomada do crescimento. Mas o quadro econômico hoje tem muito a ver com a redução brusca do consumo, e do investimento privado, criando a situação descrita por Keynes em suas análises sobre a depressão dos anos trinta. Nesta situação a condição de suficiência somente será criada a partir da restauração da confiança e do consumo privado em função de um aumento temporário dos gastos do governo e redução de impostos.

O governo Obama já sinalizou que vai seguir com vigor este caminho logo após sua posse em janeiro. Mas este passo me assusta um pouco pela ausência de uma tradição de governo pró-ativo e porque seus mecanismos de intervenção na economia estão atrofiados. O último grande programa de obras públicas nos Estados Unidos foi realizado na década dos 50 do século passado. Mas não existe outra solução conhecida e teremos que acompanhar - talvez com os dedos cruzados - os próximos passos do novo governo americano.

Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é diretor-estrategista da Quest Investimentos. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações. Escreve mensalmente às segundas.

América Latina para América Latina

Luiz Carlos Bresser-Pereira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Na era da globalização, nada é mais importante para o desenvolvimento econômico do que a autonomia nacional

A REUNIÃO da cúpula da América Latina e do Caribe, combinada com a reunião da Unasul, em Salvador, na última semana, marcou um momento na história da independência da América Latina.

Conforme declarou o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, "é inacreditável que tenham sido necessários 200 anos após suas independências para que os países da região se reunissem sem a presença de poderes externos".

Tem razão o chanceler brasileiro.

Ainda que as duas reuniões não produzissem grandes decisões, elas significaram a retomada da idéia de nação por parte dos países latino-americanos. Ora, na era da globalização, nada é mais importante para o desenvolvimento econômico do que a autonomia nacional -a capacidade de o país definir sua estratégia de desenvolvimento, em vez de se deixar tutelar por seus concorrentes mais poderosos.

Os países latino-americanos tornaram-se independentes no início do século 19, mas, até a Primeira Guerra Mundial, foram semicolônias do Reino Unido, e, em seguida, dos Estados Unidos. Alguns países, principalmente o Brasil e o México, alcançaram razoável autonomia nacional a partir dos anos 1930, em um momento em que as potências imperiais haviam se enfraquecido com a Grande Depressão; mas voltaram a se enfraquecer com a grande crise da dívida externa dos anos 1980, e a partir do final dessa década subordinaram-se novamente aos Estados Unidos, então fortalecidos com o colapso da União Soviética. Não por acaso, entre 1930 e 1980, vários países latino-americanos alcançaram elevadas taxas de crescimento econômico porque lograram formular estratégias nacionais de desenvolvimento. Nos 25 anos seguintes, porém, com uma estratégia emprestada ou imposta por seus concorrentes, essas taxas caíram.

Recuperaram-se em parte nos últimos três anos, mas graças a um aumento especulativo das commodities exportadas pelo país.

Nas relações econômicas internacionais, a cooperação entre concorrentes é sempre possível, mas a condição para que essa colaboração seja real é a de que os poderes dos participantes sejam razoavelmente equilibrados. Se não forem, a associação, que por definição supõe que os interesses comuns superam amplamente os conflitos, transforma-se em tutela e em exploração. E por isso mesmo deve ser rejeitada.

Por isso é importante que os países latino-americanos se reúnam sem poderes externos. Com esses a relação fundamental será ou de subordinação ou de competição. A cooperação também é possível, mas se destinará principalmente a definir as regras da competição. A cooperação poderia ser mais ampla se os países pensassem no longo prazo e percebessem que as relações econômicas internacionais são jogos de soma maior que zero -jogos ganha-ganha.

A experiência, entretanto, mostra que os países ricos estão, de um lado, interessados em que os mercados internos dos países em desenvolvimento estejam abertos para os investimentos de suas empresas sem reciprocidade (que é apenas exigida em relações comerciais), e, de outro, que a taxa de câmbio desses países se mantenha apreciada, de forma: 1) a manterem esses países endividados e dependentes e 2) poderem suas empresas enviar maiores juros e lucros em moeda forte para as matrizes com o mesmo resultado em moeda local. "A América para os americanos" é uma frase que faz pouco sentido para a América Latina; esta deve existir para os latino-americanos.

Luiz Carlos Bresser-Pereira, 74, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".