domingo, 11 de janeiro de 2009

A azia do presidente

EDITORIAL
ZERO HORA (RS
)

A alegação do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, de que não lê jornais, revistas, sites e blogs devido a um problema de azia soa como uma manifestação de desprezo à imprensa, incompatível com o exercício do cargo público mais importante da nação. Mesmo para uma pessoa que se orgulha de ter alcançado um posto tão alto sem ter estudado, o presidente tem o dever de tomar decisões baseado no máximo possível de informações. Ao mesmo tempo, deveria passar a uma população a ideia de que leitura é um elemento essencial no dia-a-dia das pessoas, imprescindível para a formação cultural e para fomentar o senso crítico.

Menos mal que, na mesma entrevista, concedida à revista Piauí, o presidente reconhece alguns fatos relevantes na sua relação com a mídia. Um deles é que a liberdade dos meios de comunicação foi um dos motivos de sua ascensão, primeiro como líder metalúrgico, depois na política. Outro, que uma imprensa atuante é fundamental para a preservação e o aperfeiçoamento da democracia. Não basta, porém, que a mídia elogie os acertos e critique os equívocos se o responsável em última análise por eles não tem interesse em observações que partam de fora de seu círculo mais próximo, constituído predominantemente por servidores e políticos.

Nas declarações prestadas à revista, o presidente alega que, quando há algo importante, acaba sendo alertado pelos informes de seus assessores diretos, o que até pode fazer algum sentido para o ocupante de um cargo tão importante. A dúvida é se, nessas circunstâncias, a informação acaba sendo percebida como deveria.

Se o presidente abre mão da mídia no cotidiano porque lhe faz mal ao fígado, o problema não está na mídia, mas na forma de encará-la. Os veículos de comunicação apenas exercem o seu papel e, nele, não está incluído agradar ou desagradar a quem quer que seja, mas noticiar para que os seus públicos possam tirar suas próprias conclusões.

Autossuficiente da Silva

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


O desapreço do presidente Luiz Inácio da Silva pela leitura já estava devidamente registrado na galeria dos chefes da nação brasileira desde a comparação do ato de ler ao esforço de uma caminhada em esteira mecânica, ressaltado o caráter desconfortável da atividade física e, por consequência, do exercício mental.

Corria o mês de abril de 2004 quando o presidente abriu mais uma edição da Bienal Internacional do Livro, em São Paulo, a tese:

“A leitura, para a criança, é o mesmo que uma esteira para uma pessoa da nossa idade. Muita gente até coloca uma esteira no quarto, muitas vezes até coloca na beira da cama, pensando: amanhã vou levantar e vou começar a andar na esteira. Mas todo dia se levanta com uma preguiça desgramada e vai ficando para o dia seguinte. Isso é como o livro para uma criança que não adquiriu no tempo certo o gosto pela leitura.”

Na edição em bancas da revista Piauí, Lula discorre sobre sua particular ojeriza por notícias. Revela ao jornalista Mário Sérgio Conti algo mais que uma “preguiça desgramada” de ler.

Demonstra aversão ao contato com qualquer tipo de crítica. Elas lhe fazem mal ao estômago, acentuam seu “problema de azia”. Daí o caráter profilático da distância ainda maior que mantém entre sua pessoa e escritos em geral nos fins de semana.

Não apenas adota a receita, como a recomenda “a qualquer presidente”. Afastem-se da imprensa e aproveitem o ensejo para ficar longe dos políticos também, aconselha.

A menos que se precise de um ou de outros para divulgar suas palavras e corroborar seus atos. Na versão integral da reportagem/entrevista da Piauí, Lula se diz surpreso com o fato de seu ex-ministro José Dirceu ter aceitado a companhia de uma profissional de imprensa - da mesma revista - durante uma semana.

Na visão dele, Dirceu se “desnudou” diante da jornalista de forma absolutamente imprudente. O que o presidente da República não tenha notado talvez é que se exibiu igualmente desnudo para Conti. Que transmitiu aos leitores algo até então escondido sob o manto da autossuficiência.

O presidente Luiz Inácio da Silva não tem opinião própria. Não forma juízo a partir do cotejo entre informações, diferentes interpretações dos fatos, óticas diversificadas, lógicas variadas.

O presidente Luiz Inácio da Silva disse à imprensa que só sabe o que lhe dizem. “Um homem que conversa com o tanto de pessoas que eu converso por dia deve ter uns 30 jornais na cabeça todo santo dia”, diz ele.

Diria bem melhor, de forma gramaticalmente mais compreensível no português pátrio (não culto, elaborado, elitizado, apenas o idioma pátrio, usado na linguagem acessível do noticiário), se não fizesse como as crianças que por alguma circunstância não adquiriram o gosto pela leitura desde cedo e depois, na idade adulta, tomaram horror a esteiras.

Lendo, escreve-se, fala-se e se pensa melhor. Mais não seja por reflexo, treino.

Mas o presidente, referido na oralidade, prefere que lhe digam resumidamente o que vai pelo Brasil e o mundo. Escolhe terceirizar sua capacidade de percepção e análise, deixar na mão dos outros aquilo que certamente, com sua celebrada sagacidade e intuição, faria com muito mais eficácia. Tirando disso prazer e proveito inenarráveis.

Só experimentado por quem de vez em quando fecha a boca, apura os ouvidos, aguça a visão e, de posse da inteireza de suas aptidões, traça paralelos entre o que pensa o “outro” - entidade essencial no exercício da convivência e no combate aos excessos da autossuficiência, do isolamento - e chega às próprias conclusões.

Não é o caminho mais curto, mas é a maneira mais segura de ao menos se manter alguma coerência na vida, bem como algum compromisso com a palavra dita.

Natureza


Resumo da ópera governo-PMDB nas preliminares das eleições para as presidências da Câmara e do Senado, sob a ótica de um político governista que já foi ministro: “O Palácio do Planalto fica imobilizado, no aguardo de que 2010 o PMDB faça diferente de 2008 e se alie preferencialmente ao PT. Alimenta o crocodilo na esperança de ser devorado por último.”

Fora de foco

Noves fora, da manifestação do assessor especial da Presidência, Marco Aurélio Garcia, qualificando como “terrorismo de Estado” os ataques de Israel em Gaza, sobra apenas o ridículo da cena.

Se a posição brasileira não influi na organização da ordem geral daquele drama milenar, a declaração de um auxiliar presidencial, em faixa paralela à política do Itamaraty, tampouco contribui para o Brasil se postar da maneira adequada a um país que é líder regional e abriga em boa convivência imensas comunidades de ascendência árabes e judaica.

Constatação óbvia e por isso mais eloquente a inconveniência.

A difícil acomodação dos poderes

Renato Lessa*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Antes de retaliar o Judiciário, Legislativo precisa levar mais a sério seu próprio papel representativo

Salvos melhores juízo e memória, a eliminação da vitaliciedade dos juízes do Supremo Tribunal Federal não chegou a ser veiculada pelos liberticidas que nos governaram entre 1964 e 1985. É certo que cogitaram - e praticaram - cassações e aposentadorias, na cândida suposição de que ao fazê-lo atingiam antes pessoas julgadas indesejáveis e não a instituição. Vitimaram assim, com a truculência que os caracterizou, gente do calibre de Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal. Não me parece que o Supremo e o País tenham melhorado com a liberal iniciativa.

Décadas mais tarde e em plena vigência de liberdades nunca antes vividas neste País, para usar o idioma do autoencantamento histórico, o tema da vitaliciedade dos juízes do Supremo volta à baila. Desta feita, em um quadro que sugere retaliação contra o que parlamentares percebem como excessos legiferantes do Judiciário e de sua tutela sobre o campo da política. A suposta necessidade de “enquadramento” dos tribunais, afirmada por diversos parlamentares, associa-se, ainda, à grita ritual e habitual dos candidatos à presidência da Câmara contra o despotismo do Poder Executivo, exercido por meio de, mais uma vez, excessos na edição de medidas provisórias e de suas prerrogativas legislativas especiais.

Os sinais de intenção de enquadramento dos magistrados aparecem em duas propostas: estabelecer um mandato de 11 anos para os juízes do Supremo e fixar um limite de oito meses para decisão da Justiça Eleitoral em processos sob sua jurisdição.

Em entrevista concedida ao Estado, o proponente da primeira medida - deputado Flávio Dino (PC do B-MA) - adiciona à proposta considerações doutrinárias e não-conjunturais. A necessidade do mandato seria decorrente do fato de que o Supremo não mais exerce um papel “técnico” e sim de natureza cada vez mais “política”, o que traria como corolário, a seu juízo, a necessidade de fixação de mandatos. Em outro momento da entrevista, o deputado toca em um ponto procedente: o da necessidade de fazer do Supremo uma corte constitucional, sem competências criminais. Isso corresponde ao espírito da Constituição e faz do Supremo uma corte eminentemente política. O ponto procede e se as coisas assim fossem, o presidente de um dos poderes da República teria sido poupado de constrangimentos recentes.

Bases doutrinárias à parte, há dois planos a considerar para interpretar o quiproquó: o da pequena política e o da ordem constitucional. O primeiro é o que sempre está sob observação direta e, para quem pensa que a política é um jogo estratégico entre atores racionais, constitui o campo da política por excelência. O segundo diz respeito ao desenho de país - e de suas instituições - que foi configurado pela carta de 1988.

Se tomarmos o campo da pequena política, o surto de criatividade reformista emanado de próceres da Câmara deve ser interpretado antes por sua causa material e não pelo que se anuncia como sua causa final, como diria o bom Aristóteles. São antes as iniciativas do Supremo, tomadas em 2008, que contam como elemento propulsor, do que propósitos republicanos de aperfeiçoamento institucional: a súmula antinepotismo provocou no Parlamento indisfarçável revolta. O desconforto é compreensível, posto que os humanos mudam de hábito a contragosto e com imensa dificuldade. A adição da cassação, pelo TSE, de um deputado por infidelidade partidária acrescentou à pintura a defesa heroica da Câmara contra a “intromissão” da corte eleitoral. O próprio debate, cujos conteúdos vieram a público, havido nessa mesma corte a respeito da elegibilidade dos candidatos “ficha suja”, contribuiu para a imagem de um Judiciário algoz da assim chamada classe política. Mesmo derrotada a proposta de estabelecer inelegibilidades, a divulgação por parte da Associação de Magistrados Brasileiros da lista dos possíveis meliantes provocou revolta entre muito dos profissionais da política.

A cultura de retaliação, por parte da Câmara, já está em curso há algum tempo. É o caso notório da demora na votação dos projetos de aumento salarial dos ministros do Supremo e de membros do Ministério Público, em pauta desde 2006. Se a proposta é indefensável, que seja refutada. A manutenção da matéria, sem solução a vista, sugere a abertura de oportunidade para barganha. É o que se depreende do comentário de um dos vice-líderes do governo na Câmara: “Resolvendo as questões pendentes, aumenta a boa vontade do Congresso com as demandas do Judiciário”. Edificante, não?

(Por outro lado, o próprio Legislativo participa da feitura do veneno que diz intoxicá-lo. A ação da Mesa do Senado contra a Mesa da Câmara, a respeito do aumento do número de vereadores no País, no âmbito do Supremo pouco condiz com a grita a respeito da tribunalização da política.)

Mas, para além da pequena política, há dimensões mais fortes e relevantes. A ordem constitucional implantada no Brasil com a Carta de 1988 introduziu novidades fundamentais. Duas delas devem ser destacadas, para dar maior sentido às lamúrias do Poder Legislativo.

A primeira diz respeito à primazia do Poder Judiciário na tutela da vida pública. Primazia que decorre da precedência de valores e orientações normativas na Constituição - inscritos no preâmbulo e no título da referente aos direitos fundamentais -, que pode ser resumida na ideia de Estado Democrático de Direito. O desenho de país que daí deriva define os cidadãos brasileiros como sujeitos de direitos que devem ser concretizados pelas instituições do Estado, tanto no âmbito legislativo como no executivo. Ao Supremo, em sua faceta de tribunal constitucional, cabe a jurisdição a respeito da convergência entre a Constituição e o que (não) fazem governos e legislaturas. Para que isto seja possível, cidadãos, partidos, órgãos classistas, prefeitos, governadores, etc., têm a sua disposição instrumentos de interpelação do Supremo, para que este exerça a sua supervisão, com implicações materiais.

A segunda inovação diz respeito ao reconhecimento de que o Poder Executivo - o presidente da República - deve possuir forte capacidade decisionista. A materialização desse aspecto, por meio das medidas provisórias e de todas as prerrogativas legislativas do Executivo, diminui o espaço tradicional da atividade do Poder Legislativo. Em poucas palavras, o Executivo governa através de sua capacidade direta de legislar.

O quadro de expansão e de afirmação dos poderes Executivo e Judiciário na configuração do País não foi acompanhado por igual movimento no campo do Legislativo. Este se caracteriza como um espaço no qual o Executivo - do modo que for possível - obtém maiorias para governar, tanto quanto como um lugar para que expectativas de acesso a benefícios governamentais se materializem. A menoridade do Legislativo decorre dessa dinâmica autárquica de suas relações de tensão e complementaridade com o Executivo.

A saída para o Legislativo poderia ser eminentemente ortodoxa: levar a sério o fato de que ele se constitui como o lugar da representação. Com efeito, se desde 1988 os mecanismos de supremacia do Executivo e do Judiciário têm se consolidado, nada de semelhante pode ser dito com relação ao estado da representação política. O choro dos parlamentares faz sentido, mas o problema parece exigir mais do que lamúrias e retaliações.

*Renato Lessa é professor-titular de filosofia política do Instituto Universitário de Pesquisas do RJ (Universidade Candido Mendes) e da Universidade Federal Fluminense e presidente do Instituto Ciência Hoje

Arrastando a liberdade

José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

O comportamento violento de alguns jovens reflete um niilismo antissocial voltado contra as instituições e as autoridades

Os arrastões deste início de ano, na Praia Grande e em São Vicente, põem em cena a criminalidade de classe média e o vazio com que se defrontam seus filhos sem causas altruístas a defender e sem projeto social e histórico com o qual se identificar. O fim da ditadura militar deixou os filhos dos setores sociais afluentes sem um inimigo a combater e uma causa de referência pela qual lutar. Na sequência, as novas gerações ainda se iludiram com a fantasia de que o fim da ditadura deixara resquícios e personagens que deveriam ser varridos do cenário político brasileiro porque herdeiros de costumes viciados do autoritarismo. A causa do impedimento de Collor reanimou a juventude politicamente enfraquecida pelo conformismo da geração adulta, cansada de guerra e de algum modo acomodada às contradições e hibridismos legados pelo novo regime.

Mas havia ainda o ideário juvenil de uma esquerda dividida e sem um projeto de nação, representada sobretudo pelo PT, que cresceu na pregação de que só ele era o partido do progresso social, da democracia, das reformas sociais e econômicas, da justiça e da liberdade.

As experiências municipais do partido e, em especial, sua chegada à Presidência da República, demonstrou-lhe, sobretudo após seis anos de poder, que a sociedade brasileira é muito mais complicada do que o misticismo do partido sugeria. O caso do mensalão acabou por varrer dos espíritos jovens a convicção de que o partido estava acima de qualquer suspeita. Um conjunto de desencantos e enganos pôs em xeque a competência do partido para inovar social e politicamente. Os últimos anos deixaram para os jovens a certeza da orfandade política, do vazio e do cinismo. Foram, além do mais, induzidos a conceberem-se como parceiros da classe operária e assumiram como seus os valores e aspirações do proletariado para, no fim, verem o proletariado propor-se partidariamente como gestor daquilo que sempre combateu.

O último meio século foi, entre nós, o século da emergência histórica da juventude como sujeito político, expressão de um conflito social peculiar que é o de gerações. Mas, geração não é propriamente uma causa, no sentido de que não carrega consigo nenhum projeto de transformação social efetiva. Quando muito, propõe o alargamento das oportunidades de inserção social dos jovens, o que de fato quer dizer que a sociedade os torna adultos precoces para que precocemente entrem na teia de relações de reabastecimento humano de uma estrutura social que os próprios jovens, mais ainda os de classe média, vêm invariavelmente denunciando como injusta. Carecem de emprego e, ao mesmo tempo, o mercado de trabalho lhes diz que deles não carece, a não ser pagando menos do que precisam. O declínio das oportunidades de inserção social estável contribui para definir o cenário das inquietações juvenis de hoje. O retardamento da independência dos jovens, porque o tempo e o custo de sua formação se alongou, e a maturidade sexual em descompasso com a maturidade social adiam e complicam a possibilidade de uma vida independente e adulta.

No geral, os jovens estão mergulhados numa situação de anomia, em que as normas e os valores com os quais se identificam não correspondem à realidade que experimentam. Ao mesmo tempo, as normas e valores que herdaram da geração anterior não têm eficácia, não os conduzem às metas que esses valores pressupõem. Não são materialmente pobres, mas são pobres de esperança, pobres de competência para mudar o curso da história. O cenário é o de uma cultura fascista em gestação, porque os leva a questionar e destruir a sociedade existente sem construir uma sociedade nova, pluralista, democrática, tolerante e justa. Os arrastões do noticiário recente estão nesse marco de autoritarismo e violência.

Numa sociedade que apostou nos movimentos sociais para crescer politicamente e emancipar-se, é inquietante o retrocesso às formas primárias do que os pioneiros do estudo desses fenômenos sociais chamavam de comportamento coletivo. O movimento social é aquela forma de comportamento coletivo que evoluiu das orientações difusas e de momento do protesto social para a organização e as metas sociais apropriadas à demanda que o motiva. O comportamento coletivo é reacional e, na motivação, irracional, cujos resultados, não raro desastrosos, como nesses arrastões de agora, é que o mostram como manifestação de loucura coletiva, sem projeto, movido apenas pela chispa do instante e da impaciência.

Que se trata de um fenômeno bem mais complicado do que se pensa fica claro na extensa lista de arrastões, como os de praias e os das torcidas organizadas, registrados nos últimos anos.

Sobretudo, o refluxo de movimentos sociais que deixaram de sê-lo, devorados internamente por formas de comportamento coletivo para, por meio de diferentes atos de violência, intimidarem vítimas e adversários e simularem uma força que de fato não têm. Vimos isso há dois anos na invasão e depredação da Câmara dos Deputados por um grupo ideológico que se diz de sem-terra e vimos isso há alguns meses na depredação da Escola Amadeu Amaral, no bairro no Belenzinho, em São Paulo. Nestes mesmos dias, na zona leste de São Paulo, manifestantes puseram fogo na pista de uma via expressa. Tudo isso para reivindicar uma passarela, indício da falência dos canais de expressão política das reivindicações sociais, os partidos. Era uma reivindicação de jovens, a maioria do sexo masculino, como nos casos da Praia Grande e de São Vicente. De uma das esquinas, apontavam as mãos para os PMs e simulavam armas e tiros.

Depois, passaram a disparar foguetes na direção dos soldados. Os rostos escondidos, vestindo bermudas, fazendo gestos, como nas revoltas em prisões. Uma espécie de cultura grunge, não apenas contracultural, mas também antissocial no niilismo e na violência, em particular contra os símbolos de poder e autoridade e as instituições. Sabem o que não querem, mas não sabem por que nem o que querem.

José de Souza Martins é professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)

Los hermanos

Nas Entrelinhas :: Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


O Brasil não exerce liderança em relação à Argentina, Bolívia e Colômbia, e nossa política para os países menores (e mais pobres) é vista como uma pretensão imperialista

A estratégia diplomática brasileira para a América do Sul está em xeque. Os grandes investimentos econômicos feitos pelo governo e por empresários brasileiros nos países vizinhos se transformaram em dores de cabeça para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O Brasil não exerce liderança em relação à Argentina, Bolívia e Colômbia, e nossa política para os países menores (e mais pobres) é vista como uma pretensão imperialista.

Itaipu

A Itaipu Binacional anunciou sexta-feira que pagou US$ 218,9 milhões ao Tesouro paraguaio em 2008, pela utilização do potencial hidráulico do Rio Paraná para geração de energia elétrica. Desde maio de 1985, o Paraguai já recebeu U$ 3,25 bilhões. É um grande negócio: recebe antes mesmo de terminar de pagar a sua parte na construção da usina, que o Brasil financiou. Mas esse é o nosso ponto de vista.

Os paraguaios pensam de outra maneira. Primeiro, guardam ressentimentos históricos por causa da derrota de Solano Lopez e das atrocidades cometidas pelas tropas brasileiras comandadas pelo Conde D`Eu durante a guerra de 1865-1870, na qual a industrialização do Paraguai foi abortada. Segundo, até a eleição do atual presidente paraguaio, o bispo Fernando Lugo, a Itaipu Binacional serviu de bunker para a oligarquia do Partido Colorado. A revisão do acordo de Itaipu foi bandeira de campanha de Lugo, em torno da qual uniu a oposição. Os colorados substituíram a ditadura do general Alfredo Strossner, que reinou de 1954 a 1989, numa transição mais gradual e segura do que a brasileira.

A obra e a empresa enriqueceram a elite empresarial e política paraguaia, chamada por Lugo de “los barones de Itaipu”. O Paraguai não quer apenas aumentar o valor das tarifas da energia, quer também a revisão da dívida de Itaipu, que teria sido inflada por administradores corruptos. Além disso, depois da posse de Lugo, começaram as ocupações de terras dos plantadores de soja brasileiros nos departamentos de fronteira de Itapúa, Alto Paraná, San Pedro, Concepción, Amambay e Canindeyú. Os “brasiguaios” controlam 40% das terras e produzem 80 % da soja do país vizinho.

Negócios

O Brasil tem mais problemas com os vizinhos. Digeriu o caso do gás nacionalizado por Evo Morales na Bolívia, mas há outro contencioso diplomático por causa das usinas hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira. Segundo os bolivianos, as represas inundarão parte do território boliviano. Por isso, as comunidades indígenas de Chacobo, Tacana e Cavineño, supostamente afetadas, devem ser indenizadas. O assunto faz parte do acervo de problemas ambientais das duas usinas. As relações entre empresários brasileiros e as elites rebeldes da Meia Lua boliviana, nas ricas províncias da região de Santa Cruz de La Sierra e Tarija, também aumentam a tensão com o governo Morales.

As relações com o Equador, que nem fronteira com o Brasil faz, vão de mal a pior. A Petrobras desistiu de explorar petróleo e entregou seu bloco de exploração à empresa estatal local. A confusão maior, porém, é com a Odebrecht, que levou um calote na construção da hidrelétrica de San Francisco, na Amazônia equatoriana, inaugurada em junho de 2007. A empresa também seria responsável pela construção da estrada Manaus-Manta, cujo objetivo é ligar o Brasil ao Pacífico, mas a obra foi suspensa por ordem do presidente Lula. O presidente Rafael Correa acusa a Odebrecht de ter financiado seus adversários.

Na última década, o agronegócio brasileiro tomou de assalto o Uruguai, onde arrendou ou comprou as melhores terras. Das 10 maiores empresas exportadoras do país, cinco são brasileiras. Quatro frigoríficos nossos controlam 45% das exportações de carne. Um criador paulista comprou 100 mil hectares de terras nos pampas uruguaios. Outra empresa brasileira controla metade das exportações de arroz. A produção de cerveja uruguaia foi monopolizada pela Ambev. O presidente uruguaio Tabaré Vázquez, um moderado, está sendo pressionado para fazer uma reforma ministerial e endurecer o jogo com os brasileiros.

Plantando o futuro

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO

NOVA YORK. À medida que o Plano Americano de Recuperação e Reinvestimento vai sendo desvendado, o nome politicamente correto para o pacote que o Congresso deve começar a discutir nos próximos dias revela toda a grandiosidade da crise que os Estados Unidos enfrentam. Os números são todos monumentais e negativos, e levam o país de volta aos anos anteriores à Segunda Guerra Mundial, de onde ele saiu para se transformar na potência hegemônica que hoje está sob desafio.

A maior crise econômica desde a Grande Depressão; o maior desemprego desde a Segunda Guerra Mundial, tudo leva para trás, para tempos que não se quer ver de volta, mas que até o momento ninguém sabe como evitar. Antes mesmo de tomar posse, Obama já começa a ver contestada sua capacidade de enfrentar a grandiosidade da crise, coisa que não se vislumbrava tão cedo.

Além de que o plano oficial gera muitas controvérsias, simplesmente por ser o primeiro tiro do novo governo nessa guerra que se prenuncia longa e incerta, há um fato político diferente a marcar os primeiros passos da futura administração: a tentativa real de fazer um governo suprapartidário, para unir a nação nos próximos anos de sacrifício.

Esse fenômeno parece não estar sendo devidamente entendido pela classe política, que se aproveita do equilíbrio imperfeito que a situação gera para seguir fazendo sua pequena política. Os democratas, que têm o domínio quase completo do Congresso, se frustram com a impossibilidade de exercer plenamente seus poderes, sem entender por que dividi-lo com os republicanos derrotados nas urnas pelo fenômeno Obama.

Os republicanos, desnorteados inicialmente com a surra eleitoral que levaram, agora já se consideram fortes suficientes para exigir compensações de um governo que tem 80% do apoio popular antes de começar a governar.

As divergências sobre o Plano ficam entre os políticos e os técnicos, pois a população continua a aguardar com esperanças a chegada do novo governo, sem opinião formada sobre questões técnicas: quer o milagre da recuperação pelas mãos de um presidente que chegou ao poder fora dos trilhos tradicionais da política dos Estados Unidos, e a frustração pode ser enorme.

É por isso que Obama insiste em ter um governo de consenso, pois sabe que não resolverá a crise tão cedo e precisará de apoio político para quando o desengano começar a surgir na sociedade americana. Enquanto isso, vai usando seu estoque de popularidade para pressionar o Congresso.

O senso de urgência das medidas, que ele vem ressaltando nos seus últimos pronunciamentos, é básico para dar início à recuperação, que será tão mais custosa quanto mais demorada for a tomada de decisão dos políticos.

Mesmo antes de assumir Obama vê-se diante de dilemas como o de ter que conter os gastos da recuperação para não aumentar perigosamente o já perigoso déficit público, embora haja um consenso técnico de que o pacote, que pode chegar a US$800 bilhões, poderia (ou deveria) ser muito maior.

Como equilibrar uma política fiscal necessariamente frouxa nos primeiros anos de governo com uma austeridade orçamentária de longo prazo para não permitir que o desequilíbrio das contas públicas torne-se incontrolável?

Quando Barack Obama anuncia um novo cargo para cortar gastos desnecessários no orçamento, ao mesmo tempo em que prepara um programa bilionário de gastos, está sinalizando para a frente, garantindo aos investidores que mantêm o apetite pelos bônus do Tesouro americano que eles não têm o que temer quanto ao futuro.

Ainda está longe o dia em que os investidores estrangeiros passarão a exigir juros maiores para comprar os bônus americanos, e Obama trabalha para que esse dia nunca chegue, embora muitos analistas considerem inevitável que venha a acontecer.

Nos próximos dois anos, pelo menos, será preciso evitar que a exigência de juros mais altos pressione os custos internos de financiamentos de novas casas, ou o crédito para o consumidor, e a promessa de equilibrar as contas no longo prazo, além da força natural de recuperação da economia americana, é o que sustenta a credibilidade do país, num momento em que o mundo todo entra em colapso financeiro e não há nenhuma economia que se apresente como sucessora da americana, nem nenhuma moeda que possa substituir em curto prazo o dólar, nem nenhuma potência que possa se equiparar ao poderio bélico dos Estados Unidos, apesar dos pesares.

Todos esses fatores, e mais a capacidade extraordinária deste país de se reinventar, do que é testemunha a eleição de Barack Obama, faz com que exista uma percepção de que, assim como foi o detonador da crise financeira global, os Estados Unidos ainda detêm a capacidade de vir a ser o propulsor da recuperação mundial.

O fato de que o plano de Obama prevê uma boa parte de investimento em infraestrutura de modernização tecnológica em escolas, bibliotecas e prédios públicos, e uma visão de longo prazo de políticas alternativas de energia, mostra como, mesmo dentro da crise, uma visão de futuro está sendo gestada para tentar manter a hegemonia mundial.

Esse é o principal indício de que a nova administração de Obama tem projetos de substituir o passado que gerou a crise e marcou a imagem dos Estados Unidos pelo futuro que dará mais valor ao conhecimento do que à ganância; à construção da paz do que à política da guerra; à imposição dos valores democráticos pelo exemplo e não pela força.

São esses os símbolos que Barack Obama vai enfileirando quando reafirma que Wall Street vai ser mais regulamentada; que os interrogatórios dos serviços secretos não usarão mais tortura, que o sistema educacional e a instalação de banda larga pelo país são prioridades e que a substituição da matriz energética continua sendo fundamental, mesmo com o preço da gasolina novamente barato.

A ganância do bem

Ferreira Gullar
DEU NA FOLHA DE S. PAULO / ILUSTRADA

O capitalismo tem da natureza a vitalidade, a amoralidade e o esbanjamento

HOJE EM dia, quando os apressados falam do fim do capitalismo, eu, na minha condição de "especialista em ideias gerais" (Otto Lara Resende), lembro que isso dificilmente acontecerá pelo simples fato de que o capitalismo, ao contrário do socialismo, não foi inventado por ninguém.

Não praticaria a blasfêmia de afirmar que foi criado por Deus, conquanto há quem garanta que o foi pelo Diabo. Como sou pouco afeito a questões teológicas, prefiro acreditar que ele nasceu espontaneamente do processo econômico, ao longo do tempo.

Costumo dizer que o capitalismo é quase como um fenômeno natural e, de fato, parece-me ter da natureza a vitalidade, a amoralidade e o esbanjamento perdulário, dizendo melhor: cria sem cessar e, com a mesma naturalidade, destrói o que criou.

Por exemplo, a natureza faz nascer milhões de seres e, de repente, inunda tudo e mata quase todos. Mas, ao fazê-lo, gera outras vidas. E parece dizer: "Que se danem", como faz e diz o capitalismo, mantidas as devidas proporções.

Já o socialismo foi inventado pelos homens, para corrigir o capitalismo, para introduzir nele a justiça. Os inventores do socialismo, em face da ferocidade do capitalismo nascente, em meados do século 19, sonharam com uma sociedade em que todos teriam os mesmos direitos e as mesmas oportunidades. Entendiam que a chamada democracia burguesa era, na verdade, uma ditadura da burguesia e que deveria ser substituída pela ditadura do proletariado.

Seria esta uma ditadura justa porque exercida, não pelos que usufruem do trabalho alheio e, sim, pelos que trabalham e produzem a riqueza da sociedade. O resultado final dessa revolução seria a criação da sociedade sem classes. É verdade que ninguém nunca soube o que seria essa sociedade e nem Karl Marx, o seu inventor, chegou a defini-la.

Como se sabe, na segunda década do século 20, a revolução socialista deixou de ser mero sonho para se tornar realidade, assustando os capitalistas e levando-os a atender muitas das reivindicações dos trabalhadores. Quatro décadas depois, boa parte da Europa e da Ásia vivia sob regime socialista. No entanto, antes que o século terminasse, o socialismo real desmoronou, para o espanto, sobretudo, das pessoas que nele viam o futuro da humanidade.

Ao contrário do que muitos temiam, não foram os exércitos capitalistas que o derrotaram, não foram foguetes norte-americanos com bombas nucleares que deram fim ao poder do Kremlin. Não, na verdade, ele foi liquidado por uma espécie de colapso interno fulminante, que não foi militar, mas econômico. O socialismo perdeu a disputa econômica com o capitalismo.

Em visita à Ucrânia, em 1972, ouvi um dirigente do partido comunista ucraniano dizer que tudo o que aquela república soviética produzia se devia à ação do partido, o verdadeiro motor de sua economia. Pois essa afirmação talvez explique o fracasso do socialismo: como poderia meia dúzia de burocratas fazer funcionar a economia de um país?

E explica também por que o capitalismo não morre e por que não foi preciso inventá-lo: vive da ambição de cada um, da iniciativa de cada pessoa que quer melhorar de vida, produzir, vender, comprar, revender, lucrar, enriquecer, sem que ninguém a obrigue a isso, muito pelo contrário.

Em lugar de um comitê dirigente que determine o que deve ser feito, no capitalismo milhões fazem o que conseguem fazer, atendendo às necessidades do possível comprador, no afã de ganhar dinheiro. Isso explica a vitalidade do regime e, ao mesmo tempo, muitas vezes, o vale-tudo para alcançar o lucro máximo.

O planejamento socialista, se evitava o desperdício, inibia a produção, o que resultava em outro tipo de desperdício, sendo o maior de todos, o dos talentos empreendedores que não encontravam campo para se realizar. Uma visão equivocada do capitalismo ignorava o papel fundamental do empresário, cujo investimento em ideias e dinheiro gera empregos e riqueza.

Se o socialismo nasceu do que há de melhor no ser humano -o senso de justiça e a fraternidade-, o capitalismo, se não surgiu do que há de pior em nós, é, não obstante, a cada momento, movido por ele, ou seja, pela ganância sem limites e sem escrúpulos. No entanto, essa ganância é que o faz gerador de riqueza.

Admitindo-se como verdade que o capitalismo não morrerá -mesmo porque as crises, em vez de matá-lo, o renovam-, a solução é encontrar um meio de torná-lo bom, incutindo-lhe a "ganância do bem". Isso, bem entendido, se o Diabo deixar.

Todas as guerras são estúpidas...

Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

...Principalmente as guerras “santas”. Todos os panfletários são estúpidos, principalmente aqueles que se fingem de pacifistas e pregam o ódio. A estupidez é contagiante, letal, principalmente quando se tenta ressuscitar von Clausewitz e fazer política por meio de guerras.

A Batalha de Gaza – o mais recente capítulo de uma tragédia que em 2008 completou 60 anos – é ainda mais estúpida porque foi cinicamente provocada e cinicamente explorada para aproveitar o imperioso intermezzo na Casa Branca. As duas partes perceberam que tinham exatamente 30 dias para fazer o que desejassem até a posse de Barack Obama em 20 de janeiro.

Todas as guerras são estúpidas, principalmente quando acionadas pelo descaso com suas conseqüências. Tudo começou em 19 de dezembro, quando o Hamas recusou a renovação da trégua proposta pelo Egito: exigiu maliciosamente que fosse estendida à Cisjordânia, mesmo sabendo que ali os conflitos estão sob controle e quem manda é a Autoridade Palestina, reconhecida internacionalmente como interlocutora do futuro Estado.

Não satisfeita, a direção do Hamas e/ou seus mentores além-fronteiras resolveram intensificar os ataques com foguetes e morteiros contra as cidades da região sul-sudeste de Israel. Entre 19 de dezembro e 27 de dezembro (quando começou a violenta retaliação aérea israelense) foram disparados 300 foguetes/morteiros contra a população civil (em 2008 foram cerca de 2.700). Estes geniais estrategistas contavam com o vazio político no governo americano e imaginavam que, justamente em função dele, Israel não reagiria com tanta violência.

E por que razão reagiu Israel de forma tão “desproporcional”? Era uma oportunidade de ouro para desmantelar a estrutura militar do Hamas entranhada, enterrada, na estreita Faixa e uma chance de liquidar as pretensões do direitista Likud, favorito nas pesquisas para as eleições de fevereiro.

Todas as guerras são estúpidas, principalmente aquelas em nome da racionalidade. O que aconteceu com o pragmatismo do premier interino, Ehud Olmert? Em setembro, em seguida à sua renúncia formal, surpreendeu os meios políticos ao declarar ao popularíssimo Yedioth Acharonoth, que “chegou a hora de dizer certas coisas” e estas coisas referiam-se à devolução dos territórios ocupados, devolução de parte de Jerusalém e devolução do Planalto de Golan. Foi além: denunciou publicamente a estreiteza de alguns generais que ainda pensam como em 1948 (quando o nascente Estado foi invadido por cinco países vizinhos). E teve a ousadia de declarar que a ameaça nuclear do Irã é um problema internacional, não de Israel.

Façanha inédita, ousada e, como todos os pragmatismos – ao contrário das convicções – logo evaporado diante das situações de facto. Olmert deixou-se seduzir pelo espírito da “blitzkrieg”, guerra-relâmpago. Para liquidar as pretensões do direitista Bibi Netanyahu acabou clonando-o.

Todas as guerras são estúpidas. Principalmente esta provocada, explorada e magnificada para ferir e desacreditar as esperanças humanistas encarnadas por Barack Obama.

Todas as guerras são estúpidas, principalmente aquelas que se fazem em nome de Deus. O Hamas é um grupo religioso radical, fundamentalista (não no sentido teológico, mas político), o conjunto de forças que controla a Autoridade Palestina sob a égide do Fatah é laico. Assim também era o partido Baath do Iraque onde Saddam Hussein fez carreira. O Iraque hoje é uma terra de ninguém entre xiitas e sunitas.

Laicismo no Oriente Médio só com milagres. A racionalidade não prospera em meio à intoxicação clerical. A ortodoxia judaica geralmente opunha-se à criação do Estado de Israel, Ben Gurion deu-lhe uma pasta secundária no primeiro gabinete. Hoje, a direita israelense é majoritariamente religiosa, reacionários laicos são minoria.

A idéia do choque de civilizações é uma aberração: civilizações e culturas tendem a se completar, o que há naquela região é um déficit de democracia – menor em Israel – onde os Estados não são nacionais, mas étnico-religiosos. “As guerras são os meios que Deus inventou para nos ensinar geografia”, disse o satirista americano Ambrose Bierce.

Gaza está pagando pelas iras sagradas que correm soltas à sua volta.

» Alberto Dines é jornalista.

Isolamento

Eliane Cantanhêde
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

BRASÍLIA - Israel alegou autodefesa para atacar a densa faixa de Gaza, foi apoiado pelos EUA e condenado mundo afora pela "reação desproporcional". Com a morte de líderes do Hamas e de mais de 800 palestinos (mais de duas centenas de crianças), é hora de recuar.Em guerras, perdem-se vidas, armamentos, infraestrutura, bilhões de dólares e, muitas vezes, amor-próprio. Mas Israel está jogando fora algo mais: a sua imagem.

Ao explodir uma escola da ONU, um caminhão de suprimentos da organização e provavelmente um abrigo para onde atraíra cem civis, Israel permite a suspeita de que não apenas combate um inimigo, mas perdeu o controle do próprio ódio.

E mais: ao confrontar a ONU, confronta o mundo. Isola-se.

Em entrevista ao "Guardian", jornal inglês, a alta-comissária de direitos humanos da ONU, Navi Pillay, defendeu que o Exército de Israel seja julgado por "crimes de guerra". A guerra acaba, mais cedo ou mais tarde, mas o julgamento, sobretudo moral, continua.

É importante defender o direito de existir do Estado de Israel e não cabe a comparação ofensiva entre as ações israelenses de hoje e os massacres nazistas de ontem contra os judeus. Mas o fato é que o ódio de Israel faz nascer, ou crescer, em diferentes regiões, o ódio a Israel.

São vários erros de cálculo do atual governo israelense: sair militarmente vitorioso, mas derrotado politicamente; fortalecido internamente para a eleição de fevereiro, mas enfraquecido internacionalmente. E a cúpula do radical e inconsequente Hamas sair aos frangalhos, mas aguando a semente de ódio das novas gerações e secando o poder moral e político da Autoridade Nacional Palestina.

Toda guerra produz vítimas, mas esta deixa para a história montanhas de corpos infantis, de um lado, e exércitos infantis prontos a tudo, do outro. Todos perdem, ninguém ganha. E o grande vitorioso pode ser o principal derrotado.

Crise financeira e recessão

Luiz Gonzaga Beluzzo
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Efeitos da bolha imobiliária nos EUA: empresas apertam os cintos e trabalhadores amargam o desemprego

SANTO HOJE invocado por crentes e ímpios, o economista keynesiano Hyman Minsky não tinha ilusões. Já em 1986, ele escrevia: "No mundo de homens de negócios e de intermediários financeiros que buscam agressivamente o lucro, a inovação sempre vai suplantar a vigilância dos reguladores; as autoridades não podem prevenir mudanças na estrutura dos portfólios. O que elas podem é impor exigências de capital para os vários tipos de ativos. Se as autoridades impõem tais restrições aos bancos de depósito e estão atentas aos "quase-bancos" bem como a outras instituições financeiras, estarão em condições de atenuar as tendências destrutivas da economia".

O consultor da Pimco Paul MacCulley lembra que o aconselhamento de Minsky foi tomado em consideração na regras da Basileia 1 e 2 que cuidaram de impor requerimentos de capital aos bancos de depósito. Mas as regras não poderiam antecipar "o crescimento explosivo dos bancos-sombra ("shadow banks"), que Minsky argutamente chamou de quase-bancos". O crescimento do sistema de bancos-sombra, diz MacCulley, foi movido pelo apetite de lucro dos banqueiros que usaram veículos fora do balanço, superalavancados, objetivando fazer arbitragem com as estruturas da Basileia.

O ímpeto da concorrência e a liquidez abundante levaram o sistema bancário convencional e os bancos-sombra à construção de "pirâmides securitizadas", insuflando a euforia, a má avaliação dos créditos e a superalavancagem. Isso ocorreu a despeito dos avanços nas técnicas de gestão do risco e do maior rigor imposto pelas regras da Basileia. A enorme concentração nos ativos baseados em créditos hipotecários revela que, nos últimos anos, a diversificação do risco só existiu na imaginação dos insensatos. Na verdade, o risco espalhou-se como uma pandemia, com enorme poder de contaminação. Para desespero dos que manejam hipóteses irrealistas, em ocasiões de pânico, naufraga o suposto que sustenta a inexistência de correlação entre os preços dos ativos.

As fantasias acadêmicas são chamadas à realidade quando os possuidores de riqueza -ignorando o que recomendam os modelos de precificação- entregam-se ao desatino das ordens de venda dos ativos mais líquidos. A euforia imobiliária terminou como era de se prever, na procissão de inadimplentes, na evaporação da liquidez dos mercados securitizados e, finalmente, na rápida e violenta contração do crédito. Repudiados algozes dos mercados e de suas virtudes, os governos e seus BCs abriram generosamente seus orçamentos e seus balanços para abrigar ativos ilíquidos e para substituir o setor privado nas nobres funções de sustentar o gasto e prover o crédito.

Os dados mais recentes da economia americana mostram que não é tão fácil: os efeitos sobre a economia da produção e do emprego já começam a se manifestar. As empresas apertam os cintos e os trabalhadores amargam o desemprego e suas ameaças. As projeções de quedas ulteriores da produção, do emprego, da renda e dos lucros não ajudam o esforço dos governos para promover o "descongelamento" do crédito.

Luiz Gonzaga Belluzzo , 66, é professor titular de Economia da Unicamp. Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).