domingo, 1 de fevereiro de 2009

Alguma coisa está errada

Nas Entrelinhas :: Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


O Brasil não discutiu o terrorismo com a intensidade da Itália. Nossa Lei de Anistia, fruto de uma transição negociada entre líderes políticos e generais, é um manto de silêncio sobre esse assunto

O ministro da Justiça, Tarso Genro, não convence ao defender a concessão de refúgio político ao italiano Cesare Battisti, ex-militante do PAC, Proletariados Armados para o Comunismo, uma antiga organização terrorista, condenado à prisão perpétua pela Justiça italiana por autoria de quatro homicídios. O ministro argumenta que Battisti não teve direito de defesa e sofre perseguição política na Itália. A decisão provocou forte reação dos meios de comunicação e dos partidos políticos, do Congresso e do governo Berlusconi. O presidente da Itália, o ex-comunista Giorgio Napolitano, escreveu uma carta para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na qual pediu a reconsideração do ato. O presidente Lula, porém, manteve a decisão. Agora, cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF) revê-la ou não. Uma pergunta fica no ar: vale a pena o comprar essa briga por Battisti?

O crime

Oriundis como a juíza Denise Frossard e o jornalista Mino Carta, com dupla nacionalidade, baixam o sarrafo na decisão. Battisti foi um jovem delinquente convertido à esquerda radical no decorrer dos anos 70, marcados na Itália pelo surgimento das Brigadas Vermelhas e outras organizações terroristas. Magistrados, políticos, sindicalistas e jornalistas foram assassinados, inclusive o presidente da Democracia Cristã, Aldo Moro. Em plena Guerra Fria, Moro negociava um governo de coalizão com o então secretário-geral do PCI, Enrico Berlinguer, o chamado “compromisso histórico”. O crime provocou comoção na Itália.

Battisti foi condenado à prisão perpétua porque teria matado um carcereiro, um joalheiro, um açougueiro e um agente policial. Preso, foi espetacularmente resgatado por seus companheiros. Exilou-se na França, de onde fugiu para o Brasil, quando as autoridades francesas resolveram extraditá-lo. Hoje, escreve histórias policiais e diz que nunca foi terrorista e não matou ninguém, considera-se um perseguido político. É difícil acreditar mais em Battisti do que nas autoridades italianas. Por que a decisão monocrática de nosso ministro da Justiça seria mais justa do que o processo penal nos tribunais da Itália? Quanto mais o presidente Lula tenta justificar a concessão de asilo político como um ato de soberania, mais as autoridades italianas se sentem afrontadas.

O castigo

A Itália é um país democrático. Battisti foi condenado durante o governo do socialista Sandro Pertini, veterano da resistência italiana ao fascismo. Um episódio ocorrido em 1943 por si só lhe garantiria um lugar na História: Benito Mussolini tenta voltar ao poder pelo norte da Itália e acaba encurralado. Começa a negociar a própria fuga numa reunião no Arcebispado de Milão, na qual propõe um acordo. No meio da conversa, sem ser convidado, entra um homem pequeno e valente: “Nada disso! Vai ter que prestar contas ao povo!”. Era Pertini. Mussolini fugiu, mas acabou apanhado e fuzilado pelos “partiggianis”.

O Brasil não discutiu o terrorismo com a intensidade da Itália. Nossa Lei de Anistia, fruto de uma transição negociada entre líderes políticos e generais, é um manto de silêncio sobre esse assunto. Durante a ditadura, além da brutal repressão de Estado, houve ações terroristas da esquerda militarista e dos militares linha-dura. Na Itália, porém, o terrorismo ocorreu em pleno regime democrático e provocou intenso debate político, no qual se destacou o jurista Norberto Bobbio, que escreveu vários artigos no jornal La Stampa. Alguns deles estão publicados no livro As ideologias e o poder em crise (Editora UnB, 1988). Vale conferir os argumentos de mestre, que trata da relação entre os fins e os meios, a moral e a política naquele momento dramático que ensanguentava a Itália.

A democracia derrotou o terrorismo. Milhares de brigadistas depuseram as armas e fizeram autocrítica. Muitos foram presos e condenados. Cumpriram pena para voltar à vida normal. “A política não pode absolver o crime”, bradou Bobbio, em 1979, ao se opor à anistia para os presos políticos. “O terrorismo italiano é ignominioso porque mantém uma ação sanguinária diante de um regime democrático, fraco e instável, com defeitos, que consente e exige manifestações de luta política não-cruenta”. Segundo ele, a “insânia terrorista” estava no fato de que a escalada da violência só teria sucesso como “regime de terror geral, que seria o fim da liberdade de todos”. Este o busílis: a concessão de refúgio político a Battisti funciona como uma espécie de anistia à brasileira, a mesma “anistia recíproca” que justifica o asilo concedido ao ex-ditador paraguaio Alfredo Stroessner e ao guerrilheiro colombiano Oliverio Medina. Porém, a situação na Itália era muito diferente do que aconteceu no Brasil, no Paraguai e na Colômbia.

Jogo de profissional

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

No Planalto e na planície, o PMDB monitora a evolução dos apoios, dúvidas, desistências, ameaças de traições e vigia a firmeza dos votos dados como certos para Michel Temer, na eleição de amanhã para a presidência da Câmara.

A central de checagem - digamos assim - funciona na sede da Fundação Ulysses Guimarães, no prédio do Congresso, com uma equipe de cinco pessoas, sob o comando do deputado Eliseu Padilha, que é responsável pela produção de cinco planilhas atualizadas duas vezes por dia a partir de informações coletadas nos partidos, entre deputados, lideranças e nos Estados, inclusive junto a adversários dos parlamentares/eleitores.

"Lá, na base, as posições se manifestam com mais confiabilidade do que em Brasília, onde o deputado pode fazer o jogo da simulação, da média com todos os candidatos, diz Padilha, do alto da experiência adquirida durante o governo Fernando Henrique, quando a "central" foi criada como uma espécie de órgão auxiliar do Palácio do Planalto no acompanhamento das votações no Legislativo.

No governo Lula assumiu uma feição diferente. Até por ser comandada pelo grupo que aderiu só no segundo mandato, trabalha voltada muito mais aos interesses do partido.

O principal, no momento, é a eleição do presidente do PMDB para presidente da Câmara. Padilha carrega os números numa pastinha de plástico transparente, separados em grupos de informações Estado a Estado, partido a partido, deputado a deputado, liderança a liderança.

Há também uma planilha dos dados colhidos com o governador de cada Estado, o assessor político do governo local e os partidos adversários e/ou aliados. Feita a coleta do dia, tudo é posto num programa de computador que cruza as informações e imprime tudo em quatro cores.

Os votos duvidosos são agrupados em outra listagem - a das "dúvidas" - e ao lado de cada nome é indicado, em código, o político encarregado de convencer o vacilante. "G" aparece várias vezes. É o ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima.

Padilha abre a pastinha para "provar" que o método é científico. Mas não avança na "comprovação" ao ponto de exibir a principal informação: com quantos votos Michel Temer conta.

Aí, é preciso acreditar na palavra dele. Na sexta-feira de manhã, assegurava: "Nosso teto é de 422 votos e o piso de 340". Já foi de 308, há 13 dias. Nesse período, 70 deputados se definiram, nem todos em favor de Temer, mas, segundo Padilha, a maioria.

Mesmo depois da entrada de José Sarney em cena?

"Ficam dizendo que a situação piorou, mas é o oposto." De acordo com ele, porque, ao contrário do que se diz, os aliados de Sarney na Câmara trabalham em prol de Michel Temer.

A filha do senador, a também senadora Roseana Sarney, telefonou garantindo o apoio e, depois, a equipe da "central", correu atrás. "Checamos um por um e a informação conferiu."

De sexta-feira até a eleição, amanhã, haverá três novas atualizações das planilhas que podem ser científicas na forma, mas, como o conteúdo é baseado num fator chamado natureza humana, o resultado dirá se o empenho da palavra ainda é um traço do exercício da profissão ou se o vale-tudo vigente transformou a política em coisa de arrivista amador.

Retrato

Há quem considere perda de tempo a crônica política conferir atenção à eleição das presidências da Câmara e do Senado. Há quem considere isso fruto da autorreferência dos frequentadores da "ilha da fantasia", como se convencionou denominar Brasília.

Não é. Nesses momentos, a maneira como se movimentam suas excelências, os interesses em torno do qual fazem seus jogos individuais e partidários, os fatores postos à mesa traçam um perfil da conduta dos representantes que aos representados interessados nos meios e modos de funcionamento do País seria aconselhável examinar.

Gostamos muito de nos mostrar cosmopolitas, exibir conhecimento profundo a respeito do que se passa no mundo, na eleição americana, na guerra do Iraque, no conflito árabe-israelense, mas tendemos a qualificar as coisas da política brasileira como assunto de segunda linha, sem interesse para o dito "cidadão comum".

A compreensão do mundo é importantíssima. Mas quem não compreende o país onde vive dificilmente conseguirá compreender direito os outros.

Via das dúvidas

Para todos os efeitos, o PMDB da Câmara acredita nas declarações de dirigentes do PT de que não há hipótese de haver traição a Michel Temer, seja qual for o resultado na eleição do Senado.

Mas, por precaução, os deputados pemedebistas resolveram se antecipar e dar quórum à sessão da Câmara antes da hora marcada. A eleição no Senado terá início às 10h e a da Câmara ao meio-dia. Os deputados do PMDB vão antecipar o início da votação a fim de que as duas eleições ocorram simultaneamente.

Perdidos na crise

Fernando Henrique Cardoso
DEU EM O GLOBO

Os governos precisam atuar, mas com um olhar para o futuro

A crise financeira estourou nos Estados Unidos em agosto de 2007. Subitamente, o mundo tomou conhecimento de que havia um problema: hipotecas sobre a compra de imóveis dadas com garantias precárias. De início, os bancos americanos diziam não ter nada com o assunto. Logo depois, foram obrigados a reconhecer que os "veículos especiais" que eles criaram eram, sim, de sua responsabilidade. Reconheceram para o Banco Central americano, o FED, poder dar-lhes dinheiro para cobrir os buracos, posto que os financiadores de hipotecas, não sendo bancos, não teriam acesso ao socorro federal. O susto não serviu de lição. De degrau abaixo a degrau abaixo, desfez-se o castelo de cartas. Hoje todo mundo reconhece que o sistema financeiro estava muito "alavancado", quer dizer, emprestava com uma base de capital próprio muito pequena, com o dinheiro dos outros. Os depositantes, quando descobriram a ligação dos bancos com as hipotecas, correram para retirar depósitos de bancos com poucos fundos próprios. De novo veio o socorro do FED, dessa vez trilionário. O mundo que ainda não se acostumara ao "bilhão de dólares" teve que ver "trilhão" no horizonte, mas de dívidas...

Daí em diante, houve mil "soluções criativas" para sair da crise. A "laborista", de Gordon Brown, saudada por todos, foi a de dar dinheiro aos bancos, comprando ações, em vez de, como fez o Fed, absorver títulos podres e conceder empréstimos a juros baixos e com prazo de devolução infinito. Tesouro e bancos ingleses ficaram associados, e não se sabe até que ponto estes foram "nacionalizados". O governo americano continuou "inovando": deu créditos com dinheiro do contribuinte, não só aos bancos, mas às empresas, e considera a possibilidade de dar recursos diretamente aos cidadãos pendurados em hipotecas impagáveis. O próprio Fed concedeu empréstimos a outros bancos centrais e, mais espantoso ainda, absorveu títulos "tóxicos" de empresas não financeiras. Os demais países europeus garantiram depósitos, enquanto os do mundo em desenvolvimento puseram-se às pressas a distribuir dinheiro público aos magotes para resolver problemas financeiros ou para ajudar empresas que se enrolaram na crise especulando com o valor das moedas.

Enfim, a velha e boa "socialização das perdas". Essa foi a breve história financeira do ano 2008.

O pior é que, com catadupas de dinheiro público, a crise não cede. Ela deixou de ser "financeira" para ser "econômica": as empresas não investem, os bancos não emprestam, e, quando o fazem, é com muito cuidado. Os empresários olham em volta e têm medo de expandir seus negócios: mais do que crédito, faltam compradores solventes. Os mercados estão encolhendo e encolherão ainda mais porque, com ou sem socialização das perdas, houve perda substancial de riqueza ou, como Marx diria, está havendo queima de mais valia. A riqueza financeira virou pó, porque ela é pó quando falta a confiança. Pulvis est et in pulvis revertere, como acontece com o corpo quando a alma some dele. Nestas situações "o mercado", isto é os empresários e investidores, só acreditam no governo. Mais grave ainda, os governos acreditam que podem resolver a crise. Como? Dando dinheiro ao mercado e investindo. Só que para fazê-lo se endividam e não resolvem de imediato as aflições de todos porque o medo pauta o consumo, e a economia contemporânea fez o casamento entre mercados voláteis e consumidores ávidos, movidos a propaganda. Sem consumidores, não há salvação, e o principal consumidor para a saída da crise não são as pessoas, mas as empresas. Isto é, o investimento.

Como convém dispor de uma autoridade intelectual insuspeita justificando abrir o cofre, o pobre lord Keynes é usado como se fosse o pai da socialização das perdas e da gastança pública indiscriminada. E como também é sempre bom ter um culpado, a "globalização" é indigitada como responsável pelo que é inerente ao capitalismo, a especulação, e pela falta de controle em uma economia, a principal, a americana, por cujos desmandos, aí sim, pagaremos todos. Como o diagnóstico é precário, as barreiras protecionistas somadas à gastança pública seriam o antídoto aos malefícios da "globalização". E com isso, em vez de resolver-se a crise (a solução virá com dor e lágrimas, sobretudo dos desempregados, vítimas inocentes dos desmandos, pela continuada queima de mais valia até que, atingido o fundo do poço, a "alma" dos capitalistas tenha novo sopro de vida), espicha-se o sofrimento e se sonha com um mundo não globalizado, como se isso fosse possível com o desenvolvimento tecnológico e a inter-relação comunicativa existente.

Isso não quer dizer que não haja nada a fazer, que basta esperar que o próprio mercado purgue seus pecados. Os governos precisam, sim, atuar. Mas olhando para o futuro, ajudando o investimento produtivo, seja ele público ou privado. E não endividando o povo (que pouco sabe que pagará as custas...) para salvar quem é insalvável. Sem esquecer que a poupança pública (em nosso caso ela é negativa) é insuficiente para dinamizar um sistema que é capitalista e que a ajuda às custas de endividamento futuro resultará em mais aperto ou em inflação. Em qualquer caso haverá redução das chances de uma retomada saudável do crescimento econômico.

Por fim é bom dizer que a redução da riqueza global oferece a todos, inclusive e principalmente aos governos, a chance de repensar o futuro. Ou se aumentam as regulações financeiras globalmente (sem sufocar a capacidade de inovação, mãe do desenvolvimento) e se repensa o modelo cultural de consumismo desenfreado e de dilapidação da natureza, ou a retomada de amanhã pode ser ainda mais danosa do que foi a etapa que se está esgotando.

Múltiplas personalidades

Eliane Cantanhêde
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

PARIS - Há dois Lulas, ou muitos Lulas. O deste momento, de crise nos países ricos e de fórum de países pobres, é o Lula de esquerda, que se vira de costas para Davos e de frente para Belém.

Se fosse hora de crescimento mundial, Lula certamente estaria em Davos com os líderes dos países desenvolvidos, enaltecendo a estabilidade e o ajuste fiscal. Como não é, ficou no Brasil mesmo para se encontrar com Chávez, Evo Morales, Rafael Correa e Fernando Lugo.

Ironizou "o deus mercado" e os ricos, mandando o FMI ensinar a Obama como gerir os EUA. E aproveitou para, apesar dos cortes no Orçamento, prometer mais um milhão de habitações e ampliação do Bolsa Família para os jovens. Ou seja: um olho na crise, outro na sua popularidade hoje e na campanha de Dilma Rousseff amanhã.

Esses dois Lulas, que se alternam entre o Fórum Econômico e o Fórum Social, dividem opiniões. Como ficou claro num encontro de jornalistas sobre América Latina na Espanha, semana passada.

Em almoços e jantares, brasileiros criticavam o "oportunismo" e o lado marqueteiro de Lula, sempre tirando vantagem de tudo -inclusive dos êxitos alheios. Nas reuniões plenárias e mesas redondas, espanhóis, argentinos, venezuelanos, equatorianos... elogiavam a liderança política e o sucesso administrativo do Brasil e de Lula.

De onde, afinal, vem a boa fama de Lula no mundo? De onde os jornalistas internacionais tiram tanta simpatia por ele? Principalmente da imprensa brasileira, que, por exemplo, como tinha de ser, registrou todo o seu falatório e toda a sua desenvoltura no Fórum de Belém.

Isso mostra como as notícias sobre Lula e seu governo têm imenso espaço e repercussão, soterrando as críticas. Tudo o que ele diz, faz, promete e anuncia tem destaque. O resto fica confinado aos espaços de análise e de opinião.

Está explicada, portanto, a azia de Lula com a imprensa: ele chora de barriga cheia, muito cheia.

Nem Davos nem Belém

Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)


Na melhor das hipóteses, a Montanha mágica, de Thomas Mann, e A selva, de Ferreira de Castro. Só a literatura salva – desde que se cultive o comezinho hábito de ler. Para os que preferem eventos e fóruns há um rol de brincadeiras para todos os gostos. Em Davos o jogo mais praticado foi o de prever o passado. Em Belém, o futuro virou camiseta.

Um outro mundo é possível, um outro mundo é urgente, urgentíssimo. Antes disso, porém, precisamos de uma humanidade mais humanizada. Menos simplista, menos icônica, menos dogmática e demagógica. O cabresto das palavras de ordem servia nos anos 30 e 40 do século passado quando se descobriu o poder da propaganda. Mais de meio século depois, nesta era da internet, com multidões teoricamente esclarecidas, deveria valer a força do debate, o confronto livre de ideias, a busca do entendimento. Colocar utopias em palanques, deteriora quimeras e aproxima o palanque do paredon.

A catástrofe financeira internacional não transbordou para a esfera política como seria desejável. O desastre produzido pela ganância desenfreada e institucionalizada não está produzindo os esperados movimentos para a reforma dos Estados a fim de torná-los mais competentes, justos e rigorosos. Os índices e cotações saem das bolsas diretamente para as ruas e praças. Recessão prevista, ainda não instalada, mas a orquestração já começou: Barack Obama tomou posse há onze dias e já é o responsável por impasses que o mundo acompanha desatento há anos.

Uma das figuras que apareceu em Belém, aparentemente só em efígie, foi a do militante Cesare Battisti, acusado pelo governo e a maioria dos italianos, de terrorismo e quatro homicídios políticos. O caso apaixona juristas, preocupa diplomatas, dá calafrios a empresários e mexe com a alma dos milhões de ítalo-brasileiros fiéis ao clamor de justiça que chega da terra dos antepassados.

O pedido de extradição de Battisti pelo governo italiano está agora no STF e será julgado em plenário. Uma coisa é certa: não será uma decisão política, nem "aparelhada" como foi a do ministro da Justiça, Tarso Genro ou daqueles que o estimularam a cometer a insânia.

O documento oriundo do Comitê Nacional de Refugiados (Conare), divulgado nessa sexta-feira última pela Folha de S.Paulo é perturbador. Desvenda os bastidores de um processo decisório voluntarista, viciado, irresponsável.

Em primeiro lugar porque o documento deveria ter sido liberado imediatamente após a decisão ministerial. O seu caráter sigiloso esgota-se no momento em que o parecer foi anunciado. Se o órgão técnico votou contra a concessão do status de refugiado e o ministro ignorou a sua argumentação – fato público e notório – é indispensável que à opinião pública sejam oferecidos todos os dados da equação.

O STF vai decidir se os crimes cometidos por Cesare Battisti são políticos mas a sociedade brasileira deve ao menos avaliar se o comportamento do ministro Tarso Genro foi compatível com os princípios republicanos que tanto defende. Não fosse a imprensa, o conflito entre o Conare e o ministro das Justiça ficaria sepultado nos arquivos. O simples anúncio de que seria divulgado levou o STF a requerer imediatamente uma cópia para ser juntada ao processo.

É imperioso informar o cidadão brasileiro que os três conselheiros que negaram a concessão de status de refugiado a Cesare Battisti não são representantes de lóbis neoliberais. São os técnicos do governo mais habilitados a pronunciar-se: os representantes do Itamaraty, da Polícia Federal (subordinada ao Ministério da Justiça) e do próprio Ministério da Justiça na pessoa do seu secretário-executivo. Antes de extraditar ou abrigar Cesare Battisti conviria saber o que fará o governo com um ministério visivelmente rachado e desacreditado.

Isto não interessa aos descuidados participantes dos almoços em Davos, muito menos aos entusiasmados sonhadores de Belém, no Pará.

» Alberto Dines é jornalista

Cara metade

Míriam Leitão
DEU EM O GLOBO


O Fórum Social foi este ano para a Amazônia, para protestar contra o desmatamento. No meio ambiente do Fórum, o MST brilha, como sempre, com poderes até de vetar a presença do presidente Lula na sua mesa de presidentes bolivarianos. O detalhe esquecido pelos animados militantes do "outro-mundo-é-possível" é que 30% do desmatamento da Amazônia ocorrem nos assentamentos.

Nisso, os dois fóruns são iguais. Quando falam da preocupação com a questão ambiental e climática é conversa fiada. No ano passado, quando o Fórum de Davos ainda acreditava nas lendas urbanas do pouso suave das economias ricas e do descolamento das emergentes, eles concluíram que a principal ameaça que pesava sobre o planeta era o aquecimento global. Este ano, o assunto esfriou bruscamente. Hoje, o que esquenta os debates é o medo da destruição do meio ambiente econômico, no qual eles embolsaram seus extraordinários ganhos de capital.

Mudança climática é só pretexto para os discursos no eixo Davos-Belém. O presidente Lula, na véspera de embarcar para Belém, para fazer campanha pela sua candidata a presidente, a ministra Dilma Rousseff, passou a motosserra no orçamento do Ministério do Meio Ambiente. O dinheiro cortado pagaria, por exemplo, o custeio das poucas embarcações que navegam pelos rios do interior da floresta ou das equipes que reprimem o crime ambiental numa área que perde, nos bons anos, "apenas" 11 mil quilômetros quadrados de cobertura florestal.

A candidata, que em Belém foi embalada ao som do jingle reciclado das campanhas de Lula, é a mesma que atropelou reivindicações ambientais, engavetou criação de unidades de conservação, aprovou o plano de energia que construirá 67 termelétricas nos próximos dez anos, para poluir a matriz energética, tem em sua mesa planos ameaçadores para a floresta. Mesmo assim, ambos foram celebrados como combatentes do "outro mundo".

No convescote dos ricos, na Montanha Mágica, os ilusionistas de sempre dão recados fortes imersos em contradições. O presidente russo Vladimir Putin e o primeiro-ministro chinês Wen Jiabao engrossaram a voz contra os erros cometidos pelos países ricos que colocaram o mundo em risco. Os dois têm algo em comum: seus países foram extremamente beneficiados pelo fluxo exuberante e irracional de capital que fluiu dos países ricos para os emergentes.

As empresas russas se capitalizaram e se alavancaram pelo preço estratosférico do petróleo e pela valorização das ações nas bolsas. Os novos milionários russos são a força na qual se assenta o poder granítico do novo czar russo. A China foi o país que mais recebeu investimento estrangeiro, virou a queridinha do mercado que abonou todos os crimes cometidos pelo regime contra qualquer voz discordante, porque, afinal, ele era o financiador da gastança bélica do ex-presidente George Bush. Putin e Jiabao são beneficiários da irresponsabilidade do mercado financeiro que, agora, eles condenam.

Os grandes gurus financeiros e os notórios economistas de Davos estão se esmerando, este ano, na arte de prever o passado. Se dois anos atrás ridicularizaram quem falava de recessão global, hoje concluem, com ar de sábia descoberta, que o mundo está em recessão global. O que todos querem é que os governos salvem o sistema financeiro do derretimento final com novas e mais polpudas injeções de dinheiro dos contribuintes.

Em Belém, o presidente Lula posa no grupo dos presidentes palanqueiros com discurso contra a irresponsabilidade dos ricos, apesar de seu governo ter sido outro a se beneficiar do espetáculo do crescimento dos preços das commodities, do valor das ações e da moeda nos últimos quatro anos. Sobre mudança climática, que supostamente era o tema desse encontro, nada a dizer, porque, a esta altura, já se esqueceram todos que o pretexto para o proselitismo deste ano é a proteção à floresta que, no governo Lula, desaparece a um ritmo de mais de uma cidade do Rio de Janeiro por mês. Ao todo, 110 mil quilômetros quadrados em seis anos. Nada disso foi cobrado de Lula. Muito menos ter um ministro da Agricultura que luta contra o código que tenta proteger a floresta ou delegar a Amazônia a outro ministro que não o do Meio Ambiente.

Os organizadores são tão familiarizados com o tema do aquecimento global, suas causas e consequências, que gastam munição com o incorpóreo neoliberalismo e saúdam a figura onipresente do presidente dos combustíveis fósseis, Hugo Chávez. Lula enverga o mesmo discurso contra inexatos inimigos externos, cercados de presidentes que acham que o Brasil é o adversário contra o qual lutar. Evo Morales é aquele que invadiu com tropas instalações da Petrobras. Rafael Correa é aquele que expulsou uma empresa brasileira e entrou na Justiça internacional para não pagar um empréstimo do BNDES. E Fernando Lugo é aquele que acha que o Paraguai está sendo explorado pelo Brasil em Itaipu e lá mesmo fez um discurso aos militantes do "outro mundo" para mudar o acordo em vigor. Na prática, a mudança do acordo significa aumentar a conta de luz paga pelos brasileiros.

A dicotomia entre os dois fóruns nunca foi tão patética quanto neste ano. Eles não são diferentes, são igualmente equivocados. Usam a questão climática para enfeitar seu discurso quando lhes convém. Não levam a sério os riscos reais que o planeta corre, imersos nos seus objetivos imediatos, financeiros ou políticos. São cada um a cara metade do outro.

Mudança de modelo

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


DAVOS. O que está fundamentalmente em discussão aqui nesta edição do Fórum Econômico Mundial é o modelo de capitalismo incentivado pelos Estados Unidos nos últimos anos, e não o capitalismo em si. Um modelo definido como "insustentável", por exemplo, por duas vozes de peso entre os chineses. O primeiro-ministro Wen Jiabao criticou o modelo baseado em "baixa poupança e alto consumo", e o vice-presidente do Banco da China, Zhu Min, disse que, apesar de continuar acreditando na globalização, "o modelo americano foi muito longe" e o mundo vai ser obrigado agora a conviver com "uma América frugal".

Essa mudança de padrão de vida nos Estados Unidos, que deverá prevalecer pelos próximos 10 ou 20 anos, pelo menos, é uma necessidade e, ao mesmo tempo, uma ameaça, pois o padrão de consumo americano deve se retrair em, no mínimo, 10%, com uma perda de cerca de US$1 trilhão que não tem como ser reposta.

Em uma das mesas que discutiram o futuro da economia mundial sem o padrão de consumo americano, Ken Rosen, professor emérito da Universidade da Califórnia, em Berkeley, resumiu a situação em uma frase: "Nós gastamos um dinheiro que não tínhamos em coisas das quais não precisamos".

E disse que estava na hora de mudar o paradigma: "O modelo dos Estados Unidos está errado. Se o mundo todo utilizasse o mesmo modelo, nós não existiríamos mais".

O consenso de que o modelo baseado no consumo dos Estados Unidos terá que ser alterado foi registrado em diversos debates, e há também um consenso sobre a necessidade de haver um grande gasto governamental em obras de infraestrutura, para substituir esses gastos.

Ganhou abrangência durante os dias da reunião do Fórum Econômico Mundial a ideia de que será preciso um esforço coordenado entre os governos para que os países emergentes - que estão sendo atingidos por essa crise internacional de maneira indireta, mas muito fortemente, pelo aumento da rejeição ao risco e consequente falta de financiamento internacional - possam ser ajudados.

Depois do megainvestidor George Soros ter sugerido um "fundo dos fundos" formado pelos fundos soberanos de alguns países e coordenado pelo FMI, foi a vez do primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, falar sobre a necessidade de os países desenvolvidos ajudarem a dar liquidez aos emergentes.

Ao mesmo tempo em que um painel de especialistas não conseguiu encontrar uma moeda que nas próximas décadas substitua o dólar como referência internacional, em vários momentos aqui em Davos, inclusive nesse debate sobre o dólar, surgiu a possibilidade de o mercado asiático se unir mais a partir dessa crise, abrindo a possibilidade do surgimento de uma moeda forte naquela região: o yen japonês ou o renminbi chinês.

A presente crise abre perspectivas de negócios intra-asiáticos, à medida que companhias regionais possam usar suas vantagens competitivas para atuar nos países vizinhos. O Japão, por exemplo, com uma base bem desenvolvida de tecnologia e vasto capital, poderia ser um parceiro importante nos projetos de obras de infraestrutura que estão sendo desenvolvidos na Índia e na China.

Yasuo Hayashi, presidente da Organização de Comércio Exterior do Japão, considera que, embora seja uma integração que demanda tempo, já há avanços importantes em negociações de acordos econômicos de China, Índia e Japão, os "três grandes" da Ásia, com a Associação das Nações do Sudeste Asiático.

Todos esses movimentos sugerem uma necessidade de haver uma solidariedade internacional, sem a qual será difícil sair da crise. Stephen Roach, presidente do Morgan Stanley para a Ásia, lembrando que foi uma surpresa para o mundo financeiro a maneira com que a crise atingiu tão fortemente das três grandes economias da região, advertiu:

"Com o aumento do fluxo de capitais, informação e trabalho, o mundo é muito mais interligado do que antes, e nenhuma região está mais ligada na rede internacional de comércio do que a Ásia, dependente de exportação".

Essa interligação entre as economias internacionais foi o que fez o ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton ressaltar que seu país depende da China para superar a crise, mas que a China também precisa de uma economia forte nos Estados Unidos para poder exportar seus produtos.

Por isso, a decisão de incluir uma cláusula protecionista no programa de recuperação econômica da nova administração Barack Obama caiu como uma bomba entre os participantes do Fórum.

O perigo de que uma onda protecionista tome conta do mundo já fora levantado no pronunciamento do primeiro-ministro chinês, Wen Jiabao, que defendeu o estabelecimento de uma nova ordem econômica "mais justa, igualitária, saudável e estável". E também por um assessor do governo russo, que disse que o fato de os Estados Unidos estarem aumentando seu déficit na certeza de que outros países, como o Japão e a China, comprarão seu bônus do Tesouro, representaria, em última instância, "uma espécie de protecionismo".

Contra o protecionismo, os países emergentes, encabeçados por Brasil e Índia, estão defendendo a retomada da rodada de Doha, para a ampliação do comércio internacional como maneira de superar a crise econômica.

A Índia e a China, que foram os grandes causadores do insucesso da última negociação, estão dispostos, dentro do bloco asiático, a negociar concessões e aberturas na área agrícola e de serviços. O que impediu a negociação foi a proteção à agricultura familiar na Índia e na China, contra o agronegócio, que, naquela ocasião, unira o Brasil aos Estados Unidos e à União Europeia.

Não é tsunami, há culpados

Clóvis Rossi
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


DAVOS - Tudo bem que usar a palavra "tsunami" para descrever a crise econômica pode ser uma maneira eventualmente útil de reforçar o verbo nestes tempos de tanta cacofonia que é preciso gritar para ser ouvido.

Mas carrega o risco de dar a entender que a crise, como o tsunami, é um fenômeno natural pelo qual ninguém é culpado, a não ser a natureza ou Deus, de acordo com a crença de cada qual.

Não é assim. A crise tem culpados que deveriam estar sendo ansiosamente procurados, o que não ocorre. Como tampouco ocorre o mais leve sinal de mea culpa de parte dos responsáveis.

É possível que, nesta altura do jogo, seja mais importante retirar a bala do peito da vítima do que procurar quem disparou. Ok. Mas deixar de fazê-lo cria dois riscos: o de que o atirador continue disparando enquanto a vítima sangra e/ou o de que volte a fazê-lo tão logo seja domada a crise.

Do meu ponto de vista, a crise é produto da deificação do mercado, como onipotente, onisciente e, portanto, infalível. Como disse na posse o presidente Barack Obama, que não pode ser acusado de antimercado, o livre mercado é ótimo para criar riquezas, mas precisa de um "olho vigilante" para evitar seus abusos.

Nas condições atuais de temperatura e pressão, esse olho vigilante tem necessariamente que ser global, o que não é uma fenomenal descoberta minha, mas uma pregação reiterada de parte de líderes como Gordon Brown e Angela Merkel, que tampouco podem ser acusados de comunistas.

Trata-se na essência de uma questão política, não econômica. E a pergunta seguinte inevitável é esta: dispõe o mundo de líderes suficientemente corajosos para pôr um olho vigilante no até agora onipotente mercado e suficientemente competentes para que o olho não seja vesgo ou míope?

A fictícia "idade de ouro" financista

Vinicius Torres Freire
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Crescimento do PIB americano nos anos 2000 é o pior desde a década de 30; sucesso recente ocorreu na "heterodoxa" Ásia

O COLAPSO da ordem financeira mundial detonou duas ondas de propaganda. Publicistas vulgares da ordem reagiam aos críticos do desastre dizendo que "a globalização e o capitalismo haviam produzido os anos de maior prosperidade da história", tolice bem típica, aliás, dos bajuladores brasileiros do dinheiro grosso. Minoritário e sem poder, mas nem por isso menos tolo, o partido "crítico" apregoava que o "neoliberalismo" morrera.

Antes de mais nada, observe-se que os "anos de maior prosperidade da história" são uma ficção.

A contar de 1930, o crescimento médio dos EUA nos anos 2000 foi superior apenas ao dos anos da Grande Depressão (o per capita inclusive). O crescimento per capita europeu vem caindo a cada década desde os anos 60. O Japão teve seu grande período até 1970. Oriente Médio e América Latina viram dias melhores na década de 70 ou antes, embora o crescimento "desenvolvimentista" nos anos 50 e 60 seja bem exagerado: o PIB per capita não cresceu tanto.

A qualidade dos dados africanos é suspeita, mas parece ter havido períodos melhores também por lá. Nem se mencione o problema da distribuição dessa riqueza.

Os grandes casos de sucesso econômico recente são os da China, de parte do sul da Ásia e dos Tigres (Coreia, Taiwan, Cingapura e Hong Kong, que porém não crescem tão pouco desde a década de 50). Excetuando a China, os grandes anos do PIB mundial ainda são os 50 e os 60.

Mas mesmo essa série de PIBs diz pouco. Primeiro, por ser uma maçaroca de dados que dificilmente pode ser agregada sem mais nem menos. Segundo, boa parte do crescimento rápido do pós-Guerra ocorreu sobre terra arrasada. Terceiro, após períodos de enriquecimento rápido e de construção da economia nacional, os países tendem a crescer mais devagar. O que se quer dizer, enfim e apenas, é que associar o período de farra financeira a uma "idade de ouro" é propaganda vulgarésima.

Aquilo ao que se dá o nome hoje genericamente inútil de "capitalismo" são sociedades com economias de mercado tão diferentes como as de EUA, França, Suécia, Japão, Coreia, Rússia, China ou Brasil. "Neoliberalismo", por sua vez, é um fantasma ou vodu que dá forma ao ressentimento e à miséria intelectual da maior parte do que sobrou da esquerda. Mas as duas vulgaridades são próximas, pois propagandeiam generalidades fantasmagóricas.

Com boa vontade dir-se-ia que esses dois "partidos" na verdade se referem a um sistema mundial, ou algo assim, ancorado no poder e no modelo americanos. Mas a China, por exemplo, emergiu da demência maoísta apenas devido a esse "sistema mundial"(ou à adoção do "modelo")? Virando a pergunta ao avesso: a China poderia ter adotado a sua "via própria" sem em alguma medida se integrar ao mundo e sem adotar alguns princípios do "modelo"?

A ideia da "idade de ouro" é apenas ideologia barata: o mercadismo. Tem por objetivo atropelar ameaças de pensamento dissidente. Quer abafar a ideia de que as várias economias de sucesso trilharam caminhos muito diferentes; não fizeram a "lição de casa", esse clichê imbecil, ou seguiram a "experiência internacional", em geral médias estatísticas sem qualquer sentido prático.

O sentido das mudanças

Rubens Ricupero
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Obama devolveu ao centro de equilíbrio das opiniões o pêndulo do espectro ideológico que estava na extrema direita

MUDAR NÃO é tão difícil. Sobretudo quando se sucede um governo que radicalizou as posições de direita a ponto de ser repudiado pela opinião doméstica e internacional. O desafio de Obama é o oposto de Lula, que, ao tomar posse, precisava garantir a continuidade como condição da governabilidade.

No caso americano, o país emerge de fase aguda de extremismo desdobrado em três aberrações: na economia, o fundamentalismo de mercado; nas relações internacionais, a militarização da diplomacia e o unilateralismo agressivo e anti-islâmico; nos grandes temas atuais, o negativismo em relação ao aquecimento global, o uso da tortura no combate ao terrorismo, a entrega da agenda social e ética a uma direita evangélica estreita e intolerante.

A tarefa de mudar viu-se facilitada pelo colapso financeiro e pela ruína moral das outras políticas, acumulando escombros que qualquer governo novo seria obrigado a remover. Nem por isso é menor o mérito de Obama ao não perder tempo em ditar a agenda pública. Quase não se passa um dia sem a revogação de algumas das suas mais notórias aberrações.

É notável a precisão certeira com que vêm sendo dosadas as decisões, começando, como é justo, pelas de mais forte simbolismo e conteúdo de valores morais: o fechamento de Guantánamo, a suspensão dos tribunais militares, o repúdio à tortura, os critérios de bioética, o endosso a tetos de emissão para veículos, o telefonema ao presidente palestino, a primeira entrevista exclusiva concedida a um canal árabe.

A dez dias da posse, nada disso vai além do retorno a uma saudável normalidade, a um sólido equilíbrio e bom senso, após os desvarios recentes. Até as escolhas dos emissários diplomáticos -o ex-senador George Mitchell para o Oriente Médio, o veterano Richard Holbrooke para o Paquistão-Afeganistão- indicam preferência pela experiência e pelas realizações passadas.

O que Obama fez até agora foi devolver ao centro de equilíbrio das opiniões o pêndulo do espectro ideológico que havia sido deslocado para a extrema direita. Trata-se do realismo lúcido de quem se defronta com as dilacerantes incertezas de catástrofe econômica que não permite antever se, quando e como se voltará a tempos de crescimento e prosperidade.

É razão a mais para fazer o que se impõe mesmo em condições normais: exercer liderança consensual e compartilhada, saber escutar, entender que o poder deve ser assumido, como diz o discurso da posse, com humildade e automoderação. O discurso, aliás, evitou o triunfalismo fácil das frases grandiloquentes.

Preferiu a sobriedade de uma prosa que se esforçou em não deixar sem um aceno nenhuma categoria humana, dentro e fora dos EUA. Passou quase em silêncio o que os comentaristas mais destacaram -o inédito da eleição de um afro-americano- compreendendo, como diria o barão do Rio Branco, "que há vitórias que não se devem comemorar".

O centrismo modernizador, o progressismo social moderado de Obama constituem o máximo de radicalismo que se pode permitir um presidente cuja própria cor da pele é vista por alguns como um desafio radical.

É esta a chave das mudanças: transcender as minorias e divisões, unir a majoritária e modesta classe média americana na luta contra perigos que ameaçam a todos: depressão, desemprego, falta de seguro de saúde, hostilidade externa.

Rubens Ricupero, 71, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.

Teatro ‘Gaza Grande’

Stepan Nercessian
Ator, Vereador (PPS) e Vice-Presidente da Câmara Municipal do Rio de Janeiro


Max e Moisés formam uma dupla. Espetacular dupla. São dois elementos suspeitos que insistem em manter um negócio de alta periculosidade no Brasil. São donos de teatro.

Andando sempre na contramão do business, resolveram abrir as portas do seu estabelecimento para encontros quase clandestinos durante a ditadura, para que jornalistas, políticos, intelectuais e artistas clamassem por liberdade, justiça, direitos humanos e paz. Por lá transitavam comunistas, socialistas, democratas e até agentes da ditadura incendiando cenários, ameaçando trabalhadores e o público.

A luta insana da dupla deu resultados. Diretas já, eleições, caras pintadas e chegamos ao hoje que todos nós conhecemos. O que instiga é que, desde que os inimigos foram derrotados (será que foram?), o Casa Grande jamais obteve paz para funcionar. Muda governo, "fecha o Casa Grande". Sai Governo, "fecha o Casa Grande". Não tem governo, "fecha o Casa Grande". E assim tem sido. Pelo menos uma vez ao ano há um movimento mobilizando a classe para sair em defesa do Casa Grande. O que preocupa é que os históricos da democracia estão morrendo e a nova geração não sabe bem do que se trata o Casa Grande. O Casa Grande é a senzala da resistência cultural e política de nosso Brasil, em particular, do Rio de Janeiro. Nem a CUT, nem a CGT ou o MST abrigaram tantas assembléias sindicais como o Casa Grande. Creio que nenhuma casa teve tantos espetáculos proibidos pela censura quanto Casa Grande. Nem tanto sucesso de público como o Casa Grande. O Casa Grande, aliás, é vizinho do Scala, que já foi Bingo Scala, qualquer coisa Scala e que, ao contrário do Casa Grande, sofreu menos ameaças de fechamento do que o vizinho intelectual.

Façam seu jogo senhores. Agora, quando tudo parecia estar nos conformes, vem mais um ataque ao agora Centro Cultural Casa Grande. Querem comercializar os andares superiores do teatro para que ali não funcione nada ligado à cultura. Só que essa má idéia não vem de uma imobiliária ou de um síndico intolerante. Ela é do estado. Estado de direito. Presidentes, governadores, prefeitos e asseclas sabem muito bem o que significa o Teatro Casa Grande. Até porque, a maioria deles passou por ali nas campanhas eleitorais, participando de debates promovidos sabem por quem? Pelo Teatro Casa Grande.

Esta peça está com um enredo chato, repetitivo. Alguém aí, do poder, deveria ter logo a coragem de assumir o papel da Calabar. Calabar, o elogio da traição foi um dos proibidores do Casa Grande. Diga logo que essa dupla Max e Moisés perturba muito, que o Rio está com excesso de espaços culturais, que arte e cultura é o cacete e mande às favas nossa história. Pôxa vida. Toda hora tenho que assinar um manifesto contra a destruição daquilo ali. Toda hora tenho que ir ao Palácio Guanabara, da Justiça, centro espírita, sinagoga, igreja, sempre pra pedir que não destruam o Teatro Casa Grande. Isso cansa. E olha, essa turma que vai junto com o Max e o Moisés só não desiste de lutar até o fim porque a maioria foi criada ali, naquele espaço em que aprendíamos a aceitar quase tudo, menos desistir dos nossos ideais.

O contínuo choque de ordem

Alberto Carlos Almeida
Professor universitário e escritor
DEU NO JORNAL DO BRASIL


Na primeira semana de janeiro, estava eu indo à praia em Ipanema quando vi uma fila de guinchos se dirigindo para a Avenida Vieira Souto. Naquele dia, esqueci dos guinchos. Quando abri os jornais do dia seguinte soube que eles faziam parte de medidas para colocar ordem na cidade. O famoso "choque de ordem" que acontece de tempos em tempos não somente no Rio de Janeiro, mas em várias cidades do Brasil.

É extremamente louvável que nossas prefeituras e prefeitos lancem mão de ações para colocar ordem na casa. Em São Paulo, de forma permanente e contínua, o prefeito Gilberto Kassab instituiu o Cidade Limpa, um programa de ação que tem ido muito além de livrar a capital paulistana da poluição visual dos outdors, incorporando medidas de ordenamento urbano cuja finalidade central é possibilitar que o espaço público seja tratado como algo realmente público.

Perguntinha: qual a política pública mais efetiva quando a finalidade é colocar ordem nas cidades, choques de ordem que ocorrem de tempos em tempos ou um processo contínuo de ordenamento urbano? Este processo contínuo não precisa ser nem concentrado, nem intenso, mas tem que ser notado diariamente pela maioria dos cidadãos.

O poder público está em constante interação com a sociedade. Qualquer tentativa de disciplinar a população encontrará resistências. Tais resistências podem ser mais ou menos intensas. Quanto mais intensas forem, maiores serão os custos e as dificuldades para o governo agir. Simplesmente, será mais caro para o governo (e menos efetivo) reprimir e controlar a população. A resistência à ação disciplinadora é maior se for mais longo o histórico de indisciplina. A quebra da regra e o jeitinho tornam-se hábito, e hábito é difícil mudar.

O que está em questão, portanto, é a efetividade de ações que encontram muita resistência da sociedade.

Neste caso, o trânsito é um exemplo excelente. As campanhas esporádicas de disciplina no trânsito dão menos resultados do que um longo, contínuo e insistente processo de punição para aqueles que desrespeitam as normas. Veja-se o exemplo da adoção do nosso Código Nacional de Trânsito. Há pouco mais de 10 anos, na época de sua aprovação, houve um surto nacional policial de repressão aos motoristas.

Os acidentes e mortes despencaram imediatamente. Passado este surto, os acidentes e a mortalidade voltaram a subir de forma constante, até hoje. O que faltou? Certamente não faltou o surto repressivo, ele estava lá presente como esteve agora na aprovação da Lei Seca. O que faltou foi a instituição de um lento e contínuo processo de repressão e multa, menos intenso do que o referido surto, porém, mais longo e insistente.

O processo civilizatório é lento e os seus resultados não são perceptíveis a olho nu no curto prazo.

É preciso anos, às vezes décadas, de repressão ao estacionamento irregular para que a população internalize a regra e passe a se comportar de maneira diferente. O elemento-chave do processo civilizatório é a "internalização da regra e da norma", é a aceitação – em foro íntimo – do limite e da regra. Isso só é obtido quando a repressão, seja ela policial, do aparato jurídico ou mesmo social for longa e contínua.

Um choque, por definição, não pode ser contínuo, senão mata a vítima do choque. Por outro lado, algo que é contínuo não pode ser chocante, justamente por ser contínuo. Como já disse, o choque de ordem é desejável e louvável, mas o que vem depois dele?

A grande vantagem das ações contínuas, além da referida internalização da regra, é que elas, por que são duradouras, geram novos interesses. De volta ao exemplo do estacionamento, temos o caso concreto de Búzios. Reprimiu-se continuamente o estacionamento irregular, depois de algum tempo foram abertos estacionamentos pagos. Aplicou-se a regra e a sociedade se reorganizou. Sempre há ganhadores e perdedores. Perderam os flanelinhas, ganharam os donos e os funcionários dos estacionamentos. Acima de tudo, ganharam aqueles que acham que o espaço público é realmente público.