segunda-feira, 2 de março de 2009

Você decide

Ricardo Noblat
DEU EM O GLOBO


Que papel desempenha no cenário político brasileiro o ministro Gilmar Mendes desde que assumiu há quase um ano a presidência do Supremo Tribunal Federal? O de bufão – que longe de apenas divertir o rei e zombar da corte lhes diz verdades incômodas? Ou o de fiscal dos atos públicos atento a tudo que ponha em risco a legalidade? Você decide.

A atuação de Mendes pode ser examinada levando-se em conta dois cenários – o otimista e o pessimista. No primeiro, juiz se limita a julgar e só fala nos autos. Escapa à função dele a abordagem de temas políticos. Ministro da Suprema Corte americana, por exemplo, recusa até convite para refeições com gente estranha ao seu meio. Vive em um mundo à parte.

O que confere nobreza ao Judiciário é justamente a função restrita de julgar. “O drama do juiz é a solidão. Não conheço ofício que exija tão viril dignidade”, escreveu o jurista italiano Piero Calamandrei no livro Eles, os juízes, vistos por nós, advogados. Uma sentença de qualquer natureza satisfaz uns e aflige outros. Ela mexe com os interesses e o destino de pessoas.

O mínimo, pois, que se exige de alguém dotado de tamanho poder é recato, contenção, sobriedade. Jamais um juiz pode se tornar um ator político. Ao proceder assim, ele se apequena, atrai suspeição, estimula o surgimento de desafetos, expõe seus pares e, ao cabo, compromete o Judiciário. É a regra universal. E se desconhece qualquer estudo sério que sugira sua revogação.

À luz do cenário otimista, o comportamento de Mendes é censurável. Cite um único tema político relevante que ele tenha deixado passar ao largo. Certamente, Mendes disse o que pensa a respeito de todos – de fidelidade partidária a grampos telefônicos, passando por invasões ilegais de terras. Por sinal, a mais recente delas, a da fazenda do banqueiro Daniel Dantas, foi promovida a título de “homenagear” Mendes.

Nelson Jobim foi um presidente do Supremo que fez política o tempo todo nos bastidores. Saiu do Ministério da Justiça do governo Fernando Henrique para ocupar uma vaga no Supremo.

Aposentou-se e voltou a ser ministro – dessa vez de Lula. Sucedeu-o na presidência do tribunal a ministra Ellen Gracie, que resgatou a discrição inerente ao cargo. Mendes? Mendes faz política de forma ostensiva.

No cenário pessimista, a erosão moral e ética dos demais poderes pode levar, sim, um juiz a romper com o silêncio público que a toga lhe obriga e a falar como um cidadão preocupado com as instituições. Se ninguém fala, se poucos falam, se a oposição renunciou a se opor, se os demais partidos se comportam como ovelhas gordas e saciadas, quem dirá ao rei e à corte o que eles não querem ouvir?

O prestígio do Legislativo está ao rés-do-chão. Cada vez mais os mandatos são exercidos por aqueles ocupados em enriquecer depressa. A sucessão de escândalos envolvendo políticos subtraiu a capacidade de se indignar do distinto público. Outro dia, a ONG Transparência Brasil descobriu que 85 parlamentares doaram para suas campanhas mais do que declararam ter em bens. E daí? Quem liga?

Do alto de seus 84% de aprovação, o presidente da República mais popular da História estava pronto para entregar à fatia mais corrupta do PMDB a chave de um cofre com R$ 6,5 bilhões do fundo de pensão da empresa estatal Furnas. O que fez Lula abortar o ato? A resistência oferecida pelos funcionários da empresa. Faltava-lhe autoridade para se opor à velhacaria? Não. Por conivente, faltava-lhe vontade.

Foi Mendes que forçou o governo a prestar atenção na farra das escutas telefônicas ilegais. Foi Mendes o responsável pelo fim das operações mediáticas da Polícia Federal e do uso indiscriminado de algemas em presos. Na semana passada, Mendes engrossou o coro dos que reclamam da cumplicidade do governo com o Movimento dos Sem-Terra, responsável por quatro assassinatos em Pernambuco.

Mendes é um bom ou um mau juiz?

Dinheiro fácil para a UNE

Leandro Colon
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE

O repasse do Executivo à União Nacional dos Estudantes (UNE) aumentou em 20 vezes nos últimos cinco anos. A soma de recursos chega a R$ 10 milhões no período. O reforço no caixa coincide com o fim das manifestações e críticas ao governo federal.

DINHEIRO PÚBLICO

R$ 10 milhões para amansar a UNE

Os anos rebeldes da maior entidade estudantil são coisas do passado. Verbas do governo federal não faltam, só na produção de um livro sobre a militância secundarista foram repassados R$ 436 mil

A União Nacional dos Estudantes (UNE) ganhou na loteria no governo Lula. O repasse do Poder Executivo à entidade aumentou em 20 vezes nos últimos cinco anos. A soma dos recursos públicos transferidos chega aos R$ 10 milhões no período. Em contrapartida, as sexagenárias manifestações independentes e de críticas ao governo federal desapareceram. No lugar, sobra bajulação. Fotos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com dirigentes da entidade são exibidas com pompa no site da UNE.

O crescimento da verba recebida do governo foi meteórico. Os recursos saltaram de R$ 199 mil em 2004 para R$ 4,5 milhões no ano passado. Mas não parou por aí. O montante tende só a crescer em 2009: R$ 2,5 milhões já foram depositados na conta da UNE neste ano, segundo levantamento obtido pelo Correio no Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi). Nada mal para quem recebeu cerca de R$ 1 milhão em oito anos do governo anterior, de Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Transferidos para a UNE em 12 de janeiro passado, R$ 786 mil foram destinados à realização de shows e debates em São Paulo e Rio de Janeiro. Mas nenhuma apresentação foi feita até agora, admite a presidente da UNE, Lúcia Stumpf (PCdoB). Em 5 de junho de 2008, o governo liberou o pagamento de R$ 435 mil para o projeto Sempre Jovem e Sexagenária. Segundo Lúcia, o recurso de quase meio milhão de reais será usado para fazer um livro sobre a história da militância estudantil secundarista. A UNE tem até junho para concluir esse projeto. A reportagem pediu à presidente da entidade algum elemento referente ao que já foi feito até hoje. Não houve retorno até o fechamento desta edição. Ela apenas garantiu que o projeto vem sendo executado. “Tem pesquisadores e historiadores fazendo a busca de material e redigindo. Será um livro histórico”, afirma.

Braço político

A presidência da UNE está nas mãos do PCdoB há mais de 15 anos. O partido tem como representante no governo o ministro dos Esportes, Orlando Silva, que presidiu a entidade estudantil entre 1995 e 1997. Em janeiro passado, o ministério comandado por ele liberou R$ 250 mil para patrocinar a bienal de cultura da UNE, realizada naquele mês em Salvador.

Cerca de R$ 6,2 milhões do dinheiro público repassado pelo governo Lula saíram dos cofres do Ministério da Cultura. Pelo menos seis convênios com a entidade foram alvos de tomadas de conta especial, um processo administrativo interno aberto sempre que aparece indício de irregularidade que possa dar prejuízo ao órgão público. Um deles refere-se à participação da UNE em paradas de orgulho gay em 2006. Cerca de R$ 37,5 mil foram repassados à entidade e até agora a prestação de contas não foi aprovada.

O outro processo é mais antigo ainda. Trata da verba de R$ 173 mil para gravação de CDs e compra de equipamentos da Bienal de Cultura e Arte de 2003. Em novembro do ano passado, o ministério abriu uma tomada de conta especial. A tramitação do convênio revela que a pasta chegou a contestar a gravação de 2 mil CDs, e não 4 mil, como previa o projeto inicial apresentado pela UNE. O ministério abriu outro procedimento parecido em 1º de dezembro do ano passado para averiguar pendências na condução do convênio Cinema Une em Movimento. A entidade recebeu R$ 436 mil há dois anos para realizar em 2007 um circuito de filmes nacionais em universidades. A prestação de contas foi entregue somente no último em 12 de dezembro.

A entidade estudantil também se aventurou pelo orçamento da saúde. No segundo semestre do ano passado, a UNE recebeu R$ 2,8 milhões do Sistema Único de Saúde (SUS) para fazer uma caravana pelo país. O objetivo foi abrir um debate e realizar ações ligadas à saúde. “Percorremos os 27 estados discutindo cultura, saúde e educação, visitando 41 universidades públicas e privadas no Brasil”, justifica a presidente da entidade.

MUITO DINHEIRO
R$ 10 milhões é o valor repassado pelo governo à UNE em cinco anos R$ 7 milhões foram depositados nos últimos 14 meses R$ 436 mil serão usados para um livro sobre a militância secundarista R$ 786 mil foram destinados para shows e debates até o fim do ano 6 convênios foram alvos de investigação interna do Ministério da Cultura

MemóriaLutas históricas no currículo
A UNE foi criada em 1937. Em seu site, destaca ter contestado a ditadura do Estado Novo, de Getúlio Vargas, e participado da campanha O petróleo é nosso, no fim dos anos de 1940. A entidade estudantil passou a influenciar com mais intensidade a partir do golpe militar de 1964. A UNE chegou a ser declarada ilegal e passou a atuar na clandestinidade. Naquele ano, seu presidente era o hoje governador de São Paulo, José Serra (PSDB). Em 1968, o governo militar desmontou o famoso congresso da UNE em Ibiúna, São Paulo, que reuniu mil estudantes. Toda a liderança do movimento foi presa. Entre os detidos, estava o ex-ministro e deputado cassado José Dirceu (PT-SP), então presidente da União Estadual dos Estudantes (UEE).

Outra liderança que virou político de destaque foi Aldo Rebelo (PCdoB-SP). O deputado comunista presidiu a UNE entre 1980 e 1981. A entidade voltou a se destacar em 1992 nas passeatas pelo impeachment do ex-presidente Fernando Collor. O então presidente, Lindberg Farias (PT), hoje é prefeito de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. Além dos recursos federais, a UNE, uma entidade teoricamente sem fins lucrativos, se sustenta com a venda de carteirinhas que dão desconto aos estudantes em eventos culturais e artísticos. O órgão estudantil declara que arrecada R$ 3 milhões por ano com a venda do benefício.

“Autonomia mantida”
A presidente da UNE, Lúcia Stumpf, garante que os milhões recebidos do governo Lula não ferem o histórico caráter contestador da entidade. “Nenhum recurso será capaz de comprar a autonomia e a independência da UNE”, diz. “A relação que a UNE tem com o governo é a mesma que teve com outros governos em seus 70 anos. É uma relação de absoluta autonomia”, ressalta.

Filiada ao PCdoB, Lúcia Stumpf foi eleita em 2007, aos 25 anos, para presidir a entidade. Estudante de jornalismo, ela sucedeu Gustavo Petta, do mesmo partido e que recentemente assumiu a Secretaria de Esportes de Campinas (SP). Para a militante estudantil, as possíveis irregularidades apuradas pelo Ministério da Cultura não são graves. “É comum ter problema pela grande burocracia existente. Por conta disso, há dificuldade de apresentação dos documentos”, explica.

Procurado pelo Correio, o Ministério da Cultura informou que a UNE não tem sido privilegiada pela pasta. “Os critérios adotados são os mesmos para qualquer projeto de apresentação ao Fundo Nacional de Cultura (FNC)”, disse a assessoria.

Para o deputado Gustavo Fruet (PSDB-PR), a relação financeira entre a instituição estudantil e o governo federal prejudica a independência da militância. “A entidade tem que ser, por natureza, independente. Mas o governo acabou silenciando a UNE”, diz. “E mais, não há preparo para administrar esse recurso. Não é papel do movimento estudantil criar estrutura.” (LC)

MST invade outra fazenda de Dantas no sul do Pará

Cíntia Acayaba e João Carlos Magalhães
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Agropecuária Santa Bárbara afirma que 11 propriedades foram invadidas neste ano

Sem-terra diz que objetivo das invasões no Estado é chamar a atenção para os latifúndios; polícia tenta solução pacífica para o caso

Integrantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) invadiram ontem mais uma fazenda da Agropecuária Santa Bárbara Xinguara S.A. -um dos braços do grupo Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas-, em Marabá, no sul do Pará.

A empresa afirma que essa é a 11ª fazenda do grupo invadida no Pará neste ano. Desde julho de 2008, é a 13ª propriedade. A polícia diz que ao menos seis fazendas do grupo foram invadidas na região.

As fazendas de gado alvos de grupos sem terra estão localizadas, principalmente, na cidade de Eldorado do Carajás -oito, no total. O restante está nos municípios de Marabá (três), Sapucaia (uma) e Santana do Araguaia (uma).

Segundo a Agropecuária Santa Bárbara, por volta das 5h, cerca de 150 pessoas invadiram a fazenda Cedro, que já estava ocupada em outro ponto pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar.

O delegado Alberone Lobato, da Delegacia de Conflitos Agrários, diz que a invasão foi sem confrontos. Ele deve ir ao local hoje. Um inquérito já foi aberto para apurar a invasão. A fazenda Cedro tem 7.000 hectares e 8.000 vacas reprodutoras.

É a segunda invasão em dois dias. Anteontem, cerca de 200 integrantes do MST invadiram a fazenda Espírito Santo, em Eldorado do Carajás. Segundo a Santa Bárbara, até ontem sem-terra controlavam a entrada e a saída da propriedade.

O coordenador estadual do MST no Pará, Charles Trocate, afirmou anteontem que a invasão foi para chamar a atenção para os latifúndios no Estado.

Segundo a Secretaria da Segurança Pública do Pará, a prioridade é negociar a saída dos invasores e não usar a força para expulsá-los das fazendas, pois cumprir um mandado de reintegração de posse é caro e demanda o envio de um contingente extra de policiais à área.Ontem, a Folha tentou, sem êxito, falar com o MST e confirmar as invasões nas outras fazendas do grupo de Dantas.

Pontal

Anteontem à noite, um grupo de cerca de 70 pessoas invadiu uma fazenda em Paraguaçu Paulista (466 km de SP), segundo a Polícia Militar no município. Eles deixaram a área na manhã de ontem. A reportagem não localizou lideranças dos sem-terra na região.

Grupo de Rainha invade 24.ª fazenda no Pontal

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Dissidentes do Movimento dos Sem-Terra (MST) invadiram na madrugada de ontem a Fazenda Balneário, em Paraguaçu Paulista, no Pontal do Paranapanema. É a 24ª área ocupada na região desde o último dia 20, no chamado "carnaval vermelho". Cerca de 40 militantes chegaram por volta da 1 hora e cortaram a corrente de um portão para invadir a fazenda, de um grupo imobiliário. A Polícia Militar bloqueou o acesso ao local. Os sem-terra são ligados a José Rainha Júnior, afastado do MST.

Plano mirabolante

EDITORIAL
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


A cada semana, desde que inaugurou a campanha eleitoral, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva promete lançar um grande plano habitacional voltado para as faixas de renda baixa e média, contando com recursos do FGTS e subsídios do Orçamento da União. Inicialmente, foi prevista a construção de 200 mil moradias, número que passou a meio milhão no início do mês.

"Daqui a dez dias a Dilma, o ministro Guido Mantega e o ministro Márcio Fortes vão me apresentar um plano para construir mais 500 mil casas nesse país, além das casas que a Caixa já constrói", disse Lula em 3 de fevereiro, no Rio. Às vésperas do carnaval, o número de casas prometidas chegou a 1 milhão, até 2010. É um número vistoso em ano de eleições. O governo não cuidou de saber se o plano é ou não viável antes de anunciá-lo. O que importa é mostrar sua preocupação com o desemprego crescente e seu empenho em estimular um setor que contrata mão de obra.

Em 15 de dezembro, as autoridades já apresentavam aos jornalistas um plano para eliminar o déficit habitacional brasileiro em 15 anos. Em 16 de janeiro, o secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Nelson Barbosa, anunciava os quatro pontos essenciais do projeto oficial: habitação popular (destinada à classe média baixa); habitação de interesse social (voltada para a população com renda mensal de até R$ 1.050); habitações para a classe média alta, com eventuais alterações nas regras de utilização do FGTS; e estímulo à compra de materiais de construção.

O plano foi visto como resposta do governo à crise e elogiado por economistas e empresários. "Se o governo não atingir integralmente a meta, cerca de 500 mil casas por ano, ele já terá lançado uma política habitacional e isso era o que faltava", declarou o professor da PUC Antônio Corrêa de Lacerda. "Só o fato de criar uma base institucional para outros projetos já é um grande feito para a política habitacional, que estava esquecida", disse o diretor do Sinduscon-SP, Eduardo Zaidan.

Mas, se o plano vem sendo debatido desde o fim de 2008, e se a crise do emprego se agravou em dezembro e janeiro, o que retarda o início do programa? Na falta de políticas públicas para manter o ritmo forte das incorporações de 2008, o setor de materiais de construção constatou uma queda de vendas de 15% em janeiro. Foi o que apontou o Índice de Vendas produzido pela Associação Brasileira da Indústria de Materiais de Construção (Abramat) e pela Fundação Instituto de Administração. "Como uma das medidas em estudo pelo governo prevê a redução do IPI sobre os materiais, as lojas preferiram reduzir estoques com o preço antigo, para refazê-los após o anúncio da medida", declarou o presidente da Abramat, Melvyn Fox.

A paralisia do setor também é temida pela Câmara Brasileira da Indústria da Construção (Cbic). "Como ninguém tem noção exata do alcance e do desenho das medidas, enquanto elas não forem anunciadas, temo que a tendência de investidores e compradores seja a de adiar suas decisões", observou o presidente da Cbic, Paulo Simão.

Mas um risco ainda maior passou a ser apontado pelos empresários, que é o da inexequibilidade do plano, por falta de recursos, de áreas disponíveis para implantar os projetos, de aprovação e licenciamento das obras em tempo hábil e de capacidade gerencial do governo. Até a Caixa Econômica Federal, que deverá centralizar os financiamentos, já teria informado o governo que não tem estrutura para atender a um programa de tal magnitude.

O presidente do sindicato da habitação (Secovi), João Crestana, acredita que mesmo uma meta menos ambiciosa que a de construir 1 milhão de moradias já poderia ser exagerada. "Não tenho visto um comprometimento formal do governo para uso dos recursos do Orçamento", afirmou. "Sem isso, não saem nem 300 mil habitações." Em 2008, os recursos das cadernetas de poupança propiciaram a construção de 299,7 mil unidades, um recorde histórico. Também em 2008, os programas federais de construção de casas populares asseguraram a edificação de apenas 125 mil moradias, segundo o Cbic.

É concreto o risco de o plano habitacional ser mais uma promessa do governo Lula que não será cumprida.

Destruindo empregos

Carlos Alberto Sardenberg
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


A crise coloca várias dificuldades para o governo Lula - situação que, em si, já é um desafio para uma administração acostumada com o vento a favor.

Desemprego é talvez a dificuldade mais visível e mostra bem a virada da situação: depois de meses anunciando recordes de criação de empregos formais, o governo agora precisa lidar com as demissões. E, em vez de atacar o problema, busca culpados, ora na conjuntura internacional ou, preferencialmente, nas empresas locais.

Assim, quando age, age equivocadamente. O presidente manifestou-se indignado com as demissões na Embraer, reclamou de não ter sido avisado, chamou a diretoria da companhia para conversar e não falou mais nada. Como em outras ocasiões, Lula parece estar esperando, torcendo para que a situação se resolva, digamos, automaticamente. E o que aconteceu? A Justiça do Trabalho mandou suspender as demissões e chamou uma reunião de conciliação para esta semana.

Mensagens nada construtivas. Quer dizer que o governo se considera no direito de intervir na gestão de empresas privadas? A Embraer tem o governo entre seus acionistas, mas é uma posição minoritária, que, aliás, tem dado bons resultados financeiros. A União tem também uma golden share, fixada no processo de privatização, porque na ocasião se entendeu que a empresa, construtora de aviões, inclusive militares, era estratégica para os interesses nacionais. Essa golden share, entretanto, só pode ser utilizada no caso de troca de controle da companhia. O governo pode, por exemplo, vetar a venda do controle a um fabricante estrangeiro. Mas não interferir na gestão da empresa.

A Embraer também tem financiamentos do BNDES, em operações que o banco estatal de desenvolvimento sempre considerou boas e rentáveis. Trata-se de financiar a expansão e as exportações de uma companhia de ponta. É bom para a economia nacional, gera renda e empregos.

Isso também não dá ao BNDES o direito de intervir na gestão da empresa, desde que ela esteja cumprindo seus contratos com o banco, como está.

Mas a reação do presidente Lula diz o contrário. Tanto que os sindicatos, no correto papel de defender empregos, foram pedir ao presidente do BNDES, Luciano Coutinho, que ele vete formalmente as demissões. Como não há base legal para isso, resta a pressão política, inclusive sobre a Justiça do Trabalho.

Esse ambiente gera duas consequências, ambas ruins. A primeira é que aumenta o risco de investir no Brasil. Suponha que a empresa fosse, de algum modo, obrigada a manter os empregos e, com isso, sem vendas, passasse a acumular prejuízos. Quem pagaria?

O que leva à segunda consequência possível, o balcão de favores. Ok, diria a diretoria, operamos no vermelho, mas em troca o governo poderia facilitar isto ou aquilo.

Tudo considerado, se não abrir esse tipo de balcão, a Embraer vai manter as demissões pela simples razão de que não tem o que produzir com esse pessoal. Toda a ação do governo terá criado um ambiente negativo, sem salvar os empregos.

O que poderia ser feito de concreto, não para esse caso, mas para o problema geral do desemprego causado pela crise?

Primeiro, ampliar para todos os benefícios do seguro-desemprego. O governo anunciou que fará isso, mas apenas para determinados setores.

O argumento oficial diz que tal medida só faz sentido nas áreas mais sensíveis à crise, mas a verdade é que não há dinheiro, já que o governo quer gastar recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) financiando empresas. (Vai mandar nessas também?)

Ou seja, dinheiro do seguro-desemprego deveria ir apenas para isso.

A segunda medida efetiva seria modificar a legislação de modo a ampliar o campo de negociação entre as empresas e seus trabalhadores. Líderes sindicais reclamaram, com razão, que a Embraer não negociou as demissões. Simplesmente comunicou, assim, de um dia para o outro.

Não sabemos as circunstâncias internas que levaram a companhia a fazer isso, mas muitos advogados trabalhistas e especialistas no setor vêm dizendo que as atuais leis que regulamentam as negociações são muito estreitas e inseguras. Para suspender contratos de trabalho ou reduzir jornadas e salários, por exemplo, a lei exige condições quase impossível de cumprir - que a empresa, por exemplo, esteja quase quebrada.

No sufoco, trabalhadores e empresas têm feito esses acordos ignorando algumas condições, o que pode gerar passivos trabalhistas. Nada impede, dizem especialistas, como José Pastore, que os trabalhadores ou mesmo o Ministério Público venham, no futuro, a contestar esses acordos e exigir pagamento integral de salários e atrasados.

Por isso muitas empresas têm preferido ir direto para a demissão, sobretudo quando esperam uma crise prolongada.

Na sexta-feira a ministra Dilma Rousseff disse que a decisão da Justiça de suspender as demissões na Embraer e chamar uma audiência de conciliação dá à empresa uma oportunidade de negociar de maneira mais humana. Disse ainda que a companhia deveria ter sido mais humana desde o início, já que foram "questões internacionais, e não nacionais, que a levaram a demitir".

Aparece aí, de novo, essa obsessão de jogar a culpa na crise lá fora. E algo muito estranho: quer dizer que, se as causas fossem nacionais, a empresa não precisaria ser mais humana?

Dessa conciliação pode resultar o quê? Alguns benefícios adicionais aos demitidos, mas não os empregos, que poderiam ser salvos, ao menos em parte, com uma negociação mais flexível.

E se a Justiça entender que pode obrigar a Embraer a operar no prejuízo - porque a crise vem de fora -, as coisas certamente vão piorar aqui mesmo.

Desde o início o governo tem dito que a reforma trabalhista estava na agenda. Estava...

*Carlos Alberto Sardenberg é jornalista.

Perdoar ou postergar dívidas?

Luiz Carlos Bresser-Pereira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

O perdão parcial das dívidas dos pobres e o alongamento dos débitos das empresas e da classe média são soluções

A CRISE bancária de 2008 transformou-se, neste ano, em crise econômica e, em todo o mundo, a produção industrial cai e o desemprego aumenta, configurando uma clássica crise de demanda. É preciso, então, saber por que as famílias de repente reduziram o consumo, e as empresas, o investimento, e como agora reestimular a demanda. A primeira resposta a essas questões foi a de que os investidores e as famílias deixaram de investir porque os bancos, em crise, limitaram o crédito. Essa resposta, porém, é insuficiente para explicar uma redução tão violenta nas compras.

Uma segunda e sem dúvida boa resposta foi dizer que a demanda colapsou porque os investidores e as famílias perderam a confiança e decidiram limitar seus gastos adiáveis. Em outras palavras, em vez de continuarem a tomar emprestado para gastar, decidiram precaver-se diante do futuro incerto e não continuar a aumentar sua dívida. Mas o que nos conta Richard Koo em seu livro "The Holy Grail of Macroeconomics" (John Willey & Sons, 2008), a partir de seu estudo da depressão de 15 anos da economia japonesa, é que há uma terceira resposta: a demanda desmoronou porque as empresas e as famílias, além de pararem de se endividar, decidiram pagar suas dívidas. Em linguagem técnica, entraram em processo de desalavancagem.

Paulo Rabello de Castro, nesta página (25/2), estimulou que a desalavancagem já foi de US$ 10 trilhões, contra gastos adicionais do governo de US$ 5 trilhões. Richard Koo apresenta dados convincentes nesse livro para substanciar sua tese. Uma tese de enorme simplicidade, mas com consequências explosivas. Na medida em que os agentes econômicos logrem seu objetivo de pagar suas dívidas, a queda da demanda agregada ganha uma nova dimensão, obrigando os formuladores de política econômica a repensar todo o problema.

Sem dúvida, é preciso salvar os bancos e restabelecer a confiança; sem dúvida, é preciso reduzir a taxa de juros e aumentar a liquidez; sem dúvida, é preciso adotar uma decisiva política de expansão fiscal para aumentar o consumo e o investimento, mas é bem possível que todo esse esforço perca grande parte do seu efeito porque os agentes econômicos, em vez de aproveitar o estímulo fiscal para gastar, aproveitem-no para pagar dívidas.

Diante desse fato, que fazer além do que já está sendo feito? Os governos deverão colocar sua imaginação e sua inventividade a funcionar para perdoar ou alongar dívidas. Mas aliviar os devedores sem que os credores sejam punidos. O perdão parcial das dívidas dos pobres e o alongamento a juros baixos das dívidas da classe média e das empresas são soluções óbvias -são formas diretas de evitar o pagamento das dívidas; são uma forma muito mais eficiente de estimular a demanda do que isenções fiscais como aquelas que os republicanos lograram nos Estados Unidos. Não existem fórmulas simples de caminhar nessa direção, mas no pacote fiscal de Obama já existem previsões para aliviar a dívida dos devedores hipotecários.

Cada país terá que encontrar vários caminhos que levem nessa direção. Esses caminhos dependerão da criatividade e da coragem dos governantes e, na certa, terão um custo fiscal, mas o custo de uma depressão -de uma recessão prolongada e profunda- será sempre muito maior.

Luiz Carlos Bresser-Pereira , 74, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".