domingo, 15 de março de 2009

Agora, não dá mais

EDITORIAL
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Não é de hoje que se sabe que a competência do governo Lula para tocar os seus projetos é inversamente proporcional à sua capacidade de falar deles como se fossem fatos consumados. Parafraseando um dito conhecido, estará no lucro quem comprar o governo pelas suas realizações e vendê-lo por suas promessas. É bem verdade que a distância entre intenções e resultados é um dado da realidade do setor público em geral, onde "tirar as coisas do papel" é uma dor de cabeça crônica para os governantes de todas as tendências. Mas não tem paralelo na crônica da administração federal brasileira o contraste, sob o lulismo, entre a celebração exacerbada dos seus programas e a sua efetiva materialização - salvo, justiça se lhe faça, no caso do Bolsa-Família. A retórica presidencial, cada vez mais compartilhada pela pré-candidata Dilma Rousseff, daria a um marciano recém-chegado à Terra a certeza de que nunca antes na história deste país houve um governo tão operoso.

A rigor, é o que parecem achar os muitos milhões de brasileiros que endeusam o presidente, porque o seu carisma e talento incomum para a comunicação os levaram a crer que a ele devem tudo o que melhorou nas suas vidas nos últimos anos. Vá-se explicar àqueles novos membros da classe média que os correspondentes estrangeiros vivem entrevistando para ilustrar as mudanças no País que o seu ídolo, como ele próprio já se permitiu admitir, teve a sorte de estar no lugar certo no período de maior bonança da economia mundial, cujos principais beneficiados foram as nações chamadas emergentes, como o Brasil. Enquanto durou a idade de ouro, a Lula praticamente bastava o palanque; o dinamismo da economia global, na qual estamos inseridos, se incumbia do resto. Agora que, da noite para o dia, as coisas mudaram dramaticamente de figura, quando a ação governamental se torna crucial, o que se vê é mais do mesmo: tapumes de palavras escondendo a inaptidão em levar as mãos à obra.

Tome-se o programa de construção de 1 milhão de moradias até 2010, imaginado como a iniciativa por excelência do Estado para ativar a economia, criar empregos e reduzir o déficit de habitações para a população de baixa renda, fazendo girar ao todo cerca R$ 70 bilhões. O formato do programa deveria ter sido apresentado em 20 de janeiro. Depois de sucessivos adiamentos, fala-se agora na última semana de março, "se todas as pendências forem resolvidas", algo altamente improvável, segundo especialistas familiarizados com a profusão de questões ainda em aberto. Mas desde quando isso é problema para o governo contar vantagem? Em uma das três palestras de cunho eleitoral que promoveu na quarta-feira - esta para políticos do Nordeste -, a ministra Dilma Rousseff prometeu que as novas casas - pelas quais os mais pobres entre os futuros proprietários pagarão apenas uma prestação simbólica - serão entregues em 11 meses, em vez dos habituais 33, a contar da compra do terreno. Faltou explicar como se chegará a essa proeza.

O Planalto comemora por antecipação, mas, como diria Garrincha, ainda não combinou "com os russos" - construtoras, Estados e municípios, instituições como a Caixa Econômica e o BNDES. E as dúvidas decorrentes dessa decisão de abreviar para 11 meses o prazo de construção são mais numerosas e complexas do que os "detalhes técnicos" a que as fontes do governo querem reduzi-las. Nem sequer está claro o nível de renda, medido em salários mínimos, até o qual as famílias beneficiadas farão jus aos robustos subsídios de mais de R$ 20 bilhões no total, de que fala a ministra. Além disso, a intenção é tolerar inadimplência de até 36 prestações, mas não se decidiu a origem dos recursos do fundo garantidor do crédito que cobrirá os pagamentos não efetuados. Permanecem também nebulosas questões como a do seguro dos financiamentos e a da linha especial de crédito para a infraestrutura das áreas onde serão erguidas as casas.

A menção das dificuldades a superar não pretende sugerir que o programa seja necessariamente fantasioso ou inexequível. O ponto, que o retrospecto da era Lula obriga a ressaltar, é a desenvolta, irresponsável ligeireza com que os seus integrantes "inauguram" obras cuja concretização depende de um insumo notoriamente escasso nesse governo: competência.

Antes do tombo de 3,6% essa escassez era disfarçada com discurso. Agora, não dá mais.

Minas e São Paulo, força e fraqueza

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


Em qualquer cálculo que se faça em termos de oposição, com relação à disputa presidencial de 2010, duas premissas são indispensáveis: as chances são boas por que não se tem o Lula na chapa pela primeira vez em muitos anos, e a oposição tem a maioria em São Paulo e Minas, os dois maiores colégios eleitorais do país. Mas tudo indica que a força eleitoral de Lula terá muita influência e, por isso, não dá para a oposição perder um dos dois estados. Na reunião do governador José Serra com o DEM, foi levantada essa questão, e a sensação generalizada entre os democratas é a de que o governador Aécio Neves conseguiu a façanha de representar um sentimento mineiro "que é muito maior do que qualquer pessoa".

A questão política, agora, já não seria mais Aécio fazer "um bom acordo pessoal", pois os mineiros estariam impregnados pela idéia de ter novamente um presidente, "um novo JK". "O apoio de Minas ao Serra não depende mais de mim, mas da relação política que ele estabelecer com Minas. Não adianta me derrotar, ele tem que me conquistar", diz Aécio.

A análise do DEM é que, como no Nordeste, com o Bolsa Família, o governo tem uma estrutura muito forte, a oposição não pode perder o Estado de Minas. O Rio de Janeiro não é um estado simples, na definição do deputado Rodrigo Maia, presidente do Democratas: tem uma população pobre na Baixada que vota no Lula, mas o interior vota mais com a oposição.

O melhor cenário para Aécio Neves seria Serra concorrer à reeleição para governador de São Paulo, o que garantiria que os dois estados sairiam "fechados" com sua candidatura. Ele se considera em melhores condições que o governador paulista de fazer acordos políticos no Rio e no Nordeste.

O fato de Minas ter cerca de 150 municípios na área da Sudene, mais do que muitos estados nordestinos, seria uma afinidade a mais de seu estado com a região. Minas teria um discurso de integração regional para o país. "E, por não viver essa polarização paulista, talvez eu seja capaz de fazer um governo de união nacional em torno de uma agenda", avalia o governador mineiro.

Nas hostes que apoiam o governador paulista, essa tese de que a situação de Minas pode pôr em risco a eleição de Serra não passa de uma chantagem política, pois implica dizer que só a vitória de Aécio garantiria o apoio político de Minas. Nesse caso, também o discurso antipaulista do governador mineiro prejudicaria o PSDB e ampliaria o espaço para o PT em São Paulo, caso o candidato seja Aécio.

As indicações de que a Justiça Eleitoral não vai aceitar a reclamação da oposição de que o governo estaria antecipando a campanha presidencial estão criando um dilema para os partidos que formam a frente oposicionista: permanecer sem movimentações políticas pode dar uma vantagem grande ao governo, que conta com a popularidade de Lula e as brechas legais para alavancar a candidatura da ministra Dilma Rousseff.

O parecer do vice-procurador-geral eleitoral, Francisco Xavier, de que o Encontro Nacional de Novos Prefeitos e Prefeitas, em Brasília, em 10 e 11 de fevereiro, foi suprapartidário e não caracterizou compra de voto por parte dos petistas, é uma mostra de como a legislação pode ser condescendente com os detentores do poder.

A legislação é bastante rígida, mesmo, durante o ano eleitoral, e a figura do "abuso do poder político" é uma interpretação subjetiva, que dá aos juízes grande poder de decisão. Octavio Amorim Neto, cientista político da Fundação Getulio Vargas, lembra que o controle das campanhas remete a duas questões mais amplas: "O controle do Poder Executivo em regimes presidencialistas e as condições sob as quais é possível haver alternância no poder, questões intimamente ligadas".

Segundo ele, a proibição da reeleição imediata dos presidentes, um dos traços marcantes da política latino-americana no século XX, tinha como objetivo justamente limitar o Poder Executivo, de modo que não houvesse continuísmo. Por uma série de razões, a proibição da reeleição imediata dos presidentes (e governadores) começou a ser revogada em nossa região a partir de meados da década de 1990 (no Peru, em 1993; na Argentina, em 1994; no Brasil, em 1997; e, na Venezuela, em 1999).

"Nesses países, a questão, então, passou a ser o que fazer para que a permissão de reeleição imediata não trouxesse de volta as chagas do abuso do Poder Executivo e do continuísmo". Para tanto, é fundamental, para Octavio Amorim Neto, "em primeiro lugar, proibir por lei certos comportamentos oportunistas".

As chamadas "vantagens estruturais do titular do Poder Executivo" incluem o uso tático dos instrumentos da administração pública e uma maior exposição nos meios de comunicação do que os partidos de oposição.

Ele cita a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000, como "um grande avanço institucional", que visa justamente a coibir práticas predatórias em anos de sucessão política.

Além disso, diz ele, as recentes cassações dos governadores da Paraíba e do Maranhão mostram, também, que temos tribunais eleitorais independentes e capazes de punir governadores que violam a legislação. "O efeito demonstração dessas cassações será imenso e benfazejo para os nossos costumes políticos".

O governador Aécio está convencido de que o governo, com esse aval da Justiça Eleitoral, acelerará o plano de expor a ministra Dilma Rousseff ao eleitorado, usando como pretexto a fiscalização das obras do PAC.

Por isso, com o apoio do DEM, defende que a oposição encontre meios de se movimentar também, "questionando a movimentação pública do outro lado". "Vamos ter até autoridade moral de cobrar essa relação promíscua entre partido e governo", diz ele.

Me engana que eu gosto

Nas Entrelinhas :: Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


Num regime democrático, todo ato administrativo tem repercussão eleitoral. Isso só não ocorre na ditadura, porque não há eleições livres


Para o vice-procurador eleitoral Francisco Xavier, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, não fizeram campanha eleitoral durante o Encontro Nacional de Novos Prefeitos e Prefeitas realizado em Brasília, em 10 e 11 de fevereiro. Segundo ele, o encontro foi suprapartidário e não caracterizou compra de voto por parte dos petistas, como alegou a oposição ao representar no Tribunal Superior Eleitoral. Agora, o ministro Arnaldo Versiani, relator do caso, fará sua interpretação sobre o caso e o levará ao plenário do TSE.

Até os mármores do Palácio do Planalto sabem que Dilma é candidata à sucessão de Lula em 2010. Alavanca sua candidatura por meio de eventos e solenidades oficiais, mas Xavier atribui o fato à imprensa, que trata a ministra como futura candidata, como acontece aqui nesta coluna, embora Dilma nunca tenha se apresentado formalmente como candidata. Os elogios de Lula à sua pessoa não configurariam propaganda irregular, argumenta. O caso será apreciado pelo TSE num momento em que a Justiça acaba de cassar dois governadores, o da Paraíba e do Maranhão, por uso irregular da máquina pública durante a campanha. O primeiro caso já transitou em julgado, o segundo ainda aguarda julgamento de recurso. E ainda há mais seis governadores na berlinda pelo mesmo motivo.

Nova jurisprudência está sendo construída nesse jogo de esconde-esconde da candidatura de Dilma e na apreciação dos casos dos governadores acusados de usar a máquina pública em proveito eleitoral. Será uma forma de aperfeiçoamento do nosso sistema democrático. Como tenho destacado aqui, o Brasil tem a maior democracia de massas do mundo, com voto direto, secreto e universal, eleições limpas e apuração quase instantânea. É um exemplo nesse aspecto. Mas, em contrapartida, enfrenta uma crise de representação política e degenerescência partidária que tem várias causas.

Uma delas, com toda certeza, é o uso generalizado da máquina pública nas eleições, impondo à sociedade um perfil de político “fazedor de obras” e “prestador de serviços”. Esses é que cada vez mais se elegem, em detrimento daqueles que conquistam o mandato graças ao “voto de opinião”, por suas ideias políticas, valores morais e comportamento ético. O político comprometido com o bem-comum, sem uma base eleitoral fisiológica, é uma espécie em extinção nas eleições proporcionais. O que emerge é o candidato com “estrutura”, que cada vez mais vê a política como “negócio”. O que fazer diante disso? Talvez a única reforma eficaz seja a adoção do voto distrital puro ou misto, mas não existe massa crítica no Congresso para isso.

O poder

O presidente Lula chegou ao poder sem ter feito uma carreira no Executivo, nem sequer no parlamento. Apostou seu futuro político no movimento sindical, na construção de um partido de base operária e na disputa de sucessivas eleições presidenciais. Deu certo. Contraditoriamente, no “governo de compromisso” que construiu, operou a cooptação política da maioria das lideranças sociais e empresariais e utilizou com maestria a máquina pública para se reeleger. Agora, com experiência adquirida, impõe de cima para baixo a candidatura da ministra Dilma, gerente do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e mandachuva na Esplanada dos Ministérios.

Não faz nada muito diferente do que acontece nos governos estaduais e prefeituras do país, com maior ou menor cara de pau, numa franja da legislação eleitoral que não existe por acaso. Tanto o patrimonialismo, como o populismo, são práticas associadas ao Estado. O primeiro para privilégios das elites; o segundo, para cooptação da grande massa de eleitores. Qualquer governo, seja ele bom ou mau, se impõe à sociedade porque é a forma mais concentrada de poder. Enfeixa as atribuições essenciais do Estado: o poder “jurisdicional” de aplicar a lei; de impor tributos e arrecadar; e de usar a força para coagir. Numa eleição, é sempre uma força decisiva. Se for bom governo, será imbatível; se for um mau governo, aí então, pode ser derrotado. Isso virou quase uma regra com a reeleição.

Garantir a paridade de meios numa disputa eleitoral, portanto, não é nada fácil. Mas é para isso que existe a Justiça Eleitoral.No regime democrático, todo ato administrativo tem repercussão eleitoral. Isso só não ocorre na ditadura, porque não há eleições livres. De igual maneira, na democracia, existe imprensa livre para denunciar, dentre outras irregularidades, o uso indevido da máquina pública com fins eleitorais.

A bossa da conquista

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A cúpula do DEM se reuniu quinta-feira em São Paulo, anunciou que tanto pode apoiar o governador José Serra como pode ficar com o governador Aécio Neves na disputa pela candidatura a presidente em 2010 e foi jantar no Palácio dos Bandeirantes avisando que jantará em breve no Palácio das Mangabeiras.

Deu a impressão de que decidiu primeiro e foi jantar depois para comunicar a resolução.

Como o encontro com Serra estava marcado havia pelo menos sete dias, o mais provável é que o jantar no Bandeirantes não tenha sido fruto de uma decisão partidária unilateral, mas produto de uma estratégia conjunta.

Qual seja a de começar a arrumar o ambiente para a escolha pacífica do candidato da aliança PSDB-DEM e quem mais se disponha a se engajar na campanha presidencial de 2010 no terreno da oposição.

A fim de que o espírito da coisa ficasse patente mesmo, na sexta-feira o presidente do DEM, Rodrigo Maia, tratou de informar que havia se "equivocado" quando manifestou anteriormente preferência pelo nome de Serra.

Providência semelhante tomou o prefeito Gilberto Kassab, anfitrião da reunião de cúpula, cuja predileção pelo mentor de sua eleição ficou reduzida a mera "posição pessoal".

Não é. O DEM continua comprometido com a candidatura de José Serra. Assim como a direção do PSDB, aí incluídos Fernando Henrique Cardoso, Tasso Jereissati e o presidente do partido, Sérgio Guerra.

De novidade, o que aconteceu foi a necessidade de acelerar o início do jogo para valer. Uma, por causa do agravamento da crise econômica, que vai exigir um posicionamento da oposição. Outra, porque a campanha do governo corre solta e sozinha.

Ninguém faz campanha sem organização e não se organiza nada com movimentos isolados e erráticos. Um equívoco, dentro dessa nova percepção da realidade, é tomar o favoritismo do governador Serra como fato consumado.

Reconheceu-se, na seara oposicionista, que o governador de Minas Gerais não pode ser tratado como um dissidente. Não pode deixar de ter reconhecido o seu direito de querer ser candidato, lutar por espaço político e dar uma satisfação ao eleitorado de seu Estado que gostaria de tê-lo como candidato e detestaria vê-lo sendo apresentado pelo próprio partido como mero coadjuvante de um jogo já decidido.

O ex-presidente da República e presidente de honra do PSDB, Fernando Henrique Cardoso, considera a oposição franca favorita em 2010, mas põe um senão no raciocínio: "Se não fizer grandes besteiras."

Aí é que está, anda fazendo várias, de acordo com avaliações internas. A principal, ausência de unidade e uma atitude compassiva ante os atritos entre aliados de Serra e Aécio.

Ninguém acredita na possibilidade de o governador mineiro sair do PSDB nem na hipótese de ele incentivar conflitos regionais. Mas, se a Aécio não interessa comprar briga com o primeiro colégio eleitoral do País, a Serra não apetece atrair a ira do segundo maior eleitorado. É forte com São Paulo, mas fica fraco sem Minas.

Na interpretação dos oposicionistas, o grande trunfo seria juntar os dois na mesma chapa.

Ideia, aliás, propagada antes da hora, o que pôs Aécio Neves em segundo plano e o desgostou (para dizer de modo ameno) profundamente.

Acionado o freio de arrumação, o roteiro começa do zero com o trabalho de composição entre os pretendentes. O primeiro ponto é elevar o status de Aécio não apenas dentro do partido, mas em todos os atos para fora dele.

Daí o passo inicial ter sido dado pelo DEM, com o recuo tático do apoio explícito a Serra.

Posto em cena o equilíbrio de forças, parte-se para a definição sobre o que fazer: pôr logo os dois blocos na rua ou esperar mais um pouco, antecipar as prévias ou apostar numa escolha sem disputa.

A escolha por meio de eleição prévia não é um desejo genuíno de nenhuma parte. Mas, caso seja a melhor solução - inclusive para Aécio apaziguar seu grupo político -, há disposição de fazer. Se fossem realizadas hoje, seu mais ardoroso defensor perderia a disputa nos diretórios regionais.

Aécio carrega a bandeira porque é a única disponível para quem quer destaque sem abrir guerra contra o governo agora. Além disso, há sempre a expectativa de que um processo de debate interno possa mudar o quadro e a ação do imponderável que o obriga a estar preparado.

Serra aceitou formalmente a proposta para não criar um atrito insolúvel. Aécio disse "eu quero", Serra respondeu "façamos" e a coisa ficou parada por aí.

Até o gesto do DEM na última quinta-feira, aparentemente inspirado no entendimento de Fernando Henrique de que caberia a Serra o passo seguinte. Mas só depois de tudo combinado entre os interessados, Aécio Neves da Cunha incluído.

Mapa

A oposição joga tudo em Minas e São Paulo porque acha que Lula leva no Nordeste e, no Rio, só vê chance se Fernando Gabeira for candidato a governador.

Ainda é Cedo

Marcos Coimbra
Sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi
DEU NO ESTADO DE MINAS

A eleição de 2010 pode estar sendo antecipada além que qualquer outra. Querer adivinhar seu resultado, no entanto, é demais.

Está certo que não se faz política sem uma boa dose de autosuficiência. Se os políticos tivessem que pensar bem antes de falar, se fossem obrigados a levar os outros em consideração antes de agir, a vida política seria totalmente diferente.

Também está certo que a modéstia e a contenção não são as virtudes mais comuns entre os que dedicam a ela. Políticos, salvo as mais extraordinárias exceções, são animais desprovidos do sentido de proporção. Quando se olham no espelho, costumam se enxergar (e, às vezes, a seus amigos e projetos) como se nada mais existisse de bom no mundo.

Mesmo sabendo disso, ainda surpreende o que se ouve de alguns personagens, tanto do governo, quanto da oposição. Quando falam sobre as próximas eleições presidenciais, dizem coisas tão sem sentido que até os observadores mais calejados ficam impressionados.

Outro dia, o ex-deputado e ex-prefeito do Recife, João Paulo, nome fortíssimo do PT em seu estado, cotado para ser um dos coordenadores da campanha da ministra Dilma, não foi capaz de afirmar que, “se o PMDB estiver conosco, em 2010 venceremos no primeiro turno com votação elástica”?

Uma frase como essa só pode ser entendida como uma reação a outras igualmente desprovidas de lógica. Deve ser pensando em algumas delas, vindas de seu lado, que o governador Aécio Neves criticou, também recentemente, as figuras do PSDB que acham que “basta apenas termos um candidato para ganharmos as eleições”. Conhecendo como conhece seu partido, o governador de Minas sabe que não são poucos seus correligionários que pensam assim.

Bravatas de uns, contra bravatas dos outros, fazem parte do jogo. O debate político está cheio delas, mesmo quando são apenas brigas de crianças.

Mas há mais que isso nessas declarações. Nelas, muito se revela sobre como os dois partidos estão indo para as eleições de 2010.

Na frase de João Paulo, há uma condição que merece ser discutida. Quando diz que “se o PMDB estiver conosco...”, ele estabelece um cenário que qualquer pessoa apenas medianamente informada sobre a política brasileira (que não é o caso dele), sabe que é impossível. Ou alguém imagina que o PMDB marchará unido? Que contrariará sua história e suas características para estar inteiro com o PT na eleição? Por que faria isso, se o melhor dos mundos, para ele, é ficar sempre em condições de aderir ao vencedor (quem quer que seja)?

Quando, então, afirma que seria nessa condição que Dilma venceria no primeiro turno, o que ele diz é que isso não vai acontecer. Ou será que ele pensa, de fato, que, na hipótese implausível do PMDB se unir por alguma operação mágica, Dilma realmente ganharia a eleição no primeiro turno, por larga margem? Por quê? Como? Qual equação ele imagina? “Dilma+Renan+Jarbas = Dilma no primeiro turno, por larga margem”? Quem disse?

E os tucanos a quem Aécio puxa as orelhas? De onde supõem que basta ao PSDB ter um candidato para derrotar a indicada por Lula? Será que raciocinam com a tese de que falta a Dilma biografia e independência para ser percebida pelo eleitorado como uma verdadeira presidente da República? E quem consegue dizer se ela não supre suas carências com atributos que o eleitor valoriza mais?

A eleição de 2010 pode estar sendo antecipada além que qualquer outra. Ela já é, à distância em que estamos, a mais definida das que fizemos desde a redemocratização, pois, se forem verdade os sinais que o meio político emite, só falta saber o nome do candidato do PSDB (dentre dois).

Todo o restante se conhece: quem vai concorrer pelo PT, o que ela vai dizer e, até, o que dirá aquele que lhe vai fazer oposição.

Querer adivinhar seu resultado, no entanto, é demais.

PSDB monta agenda conjunta para Serra e Aécio

Julia Duailibi
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Para mostrar unidade, partido costura presença dos dois pré-candidatos lado a lado no Recife

O PSDB se mobilizou para sinalizar unidade no partido e conseguiu costurar a presença de seus dois pré-candidatos à Presidência em 2010, os governadores José Serra (SP) e Aécio Neves (MG), em uma agenda com líderes do partido amanhã no Recife.

Carregada de simbolismo, a viagem a Pernambuco é um fato político importante nas discussões internas do PSDB para a sucessão. Mostra um esforço dos tucanos para manter a unidade, num momento em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua candidata à sucessão, Dilma Rousseff, percorrem o Brasil juntos - ontem a ministra estava ao lado de Lula em encontro com o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, na Casa Branca.

Se não houver nenhuma surpresa em sua agenda administrativa até segunda, Serra deverá comparecer aos eventos agendados no Recife ao lado de Aécio. O governador mineiro já havia confirmado sua participação na semana passada. Para Aécio, a viagem integra o giro que pretende fazer pelo País a fim de divulgar seu projeto político de 2010. O mineiro defende a realização de prévias pelo partido para escolher o candidato tucano.

No Recife, os tucanos deverão participar do lançamento do livro Daquilo que eu sei - Tancredo e a transição democrática, do ex-deputado Fernando Lyra. Também haverá no fim do dia a inauguração do Auditório Ruth Cardoso, no Instituto Teotônio Vilela. O último compromisso marcado para a noite será um jantar na casa do presidente nacional do PSDB, senador Sérgio Guerra (PE), que juntará os principais líderes políticos do Estado.

A costura do encontro contou com grande empenho do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que se encontrou na sexta-feira com Aécio em São Paulo. Aécio havia manifestado aos líderes tucanos insatisfação com o posicionamento do ex-presidente. Notícias divulgadas no começo da semana mostraram que Fernando Henrique havia criticado as prévias e defendido a ideia de que Serra seja o candidato do partido nas eleições de 2010.

Aécio sentiu as declarações e chegou a responder publicamente, ao dizer na terça-feira que não se constrói um projeto de País "a partir de alguns gabinetes da Avenida Paulista".

UNIÃO
Líderes tucanos temem que a insistência de Aécio em disputar a indicação do partido na eleição do ano que vem possa levar a um racha. Isso porque parte significativa da legenda aposta no nome de Serra, mais bem posicionado nas pesquisas, para levar o partido de volta ao Planalto.

Para a direção nacional do PSDB, o ideal seria buscar um consenso entre os dois pré-candidatos.

Fernando Henrique, por exemplo, é um dos principais entusiastas do lançamento de uma chapa tucana puro-sangue, encabeçada por Serra e com Aécio na vice. O mineiro, no entanto, diz descartar essa hipótese.

Eleições 2009

Disputa pela Presidência já está nas ruas
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Onze dias de agenda de cotados para o Planalto mostram que a disputa não esperou 2010 nem o aval da Justiça Eleitoral

A 19 meses da primeira disputa presidencial sem o nome de Luiz Inácio Lula da Silva após a redemocratização (1985), José Serra, Dilma Rousseff e Aécio Neves, os três pré-candidatos mais cotados até agora, intensificaram as agendas e cumprem compromissos típicos de período eleitoral. Missas, feiras agropecuárias, reuniões com prefeitos, visitas a obras, caminhadas, entrega de casas e encontros com celebridades estão entre os eventos quase diários. Faltam os santinhos e jingles, mas sobram os gritos de "presidente!".

A Folha acompanhou a agenda pública dos governadores tucanos de SP e MG e a da ministra petista da Casa Civil no dia 3 deste mês, quando o trio se reuniu em Brasília, até sexta passada.

Todos negam estar em campanha, mas a antecipação da disputa preocupa a Justiça Eleitoral.

"Em março de 2001 e de 2005 não havia essa discussão. O processo está muito rápido", diz Serra. Dilma reage à oposição: "Inventaram que viajo muito". E Aécio pede "calma". Mas nenhum dos três aceita reduzir o ritmo.

Serra: "Eu escolho a minha parte"

José Alberto Bombig
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Tarde quente de quinta-feira. O governador José Serra está em pé em frente a uma sala lotada de alunos da quarta série da rede estadual de ensino na populosa zona leste paulistana:

"Quando eu era garoto, comprava um chocolate em sociedade com um amigo e, para não ser passado para trás, criei uma regra: "Você divide, mas eu escolho a minha parte"", diz o "professor visitante", sorridente, tentando ensinar porcentagem.

A estratégia revela muito sobre o momento de Serra, que completa 67 anos nesta semana. Líder nas pesquisas, ele quer evitar o debate antecipado, mas não pretende abrir mão da que pode ser sua última chance de chegar ao Planalto.

Para isso, intensificou sua agenda, apertou a cobrança sobre os assessores e, publicamente, decidiu apostar no discurso de "estou preocupado em trabalhar por São Paulo". "Não estou interessado em ti-ti-ti eleitoral", disse ele à Folha, após ter dividido um palanque com o ex-governador Orestes Quércia (PMDB) na feira agropecuária de Avaré.

Com o microfone à mão, Serra evita os temas nacionais e privilegia obras que serão possíveis vitrines. Cita feitos nas áreas de transporte, distribui escolas de ensino técnico e anuncia a criação de laboratórios de especialidades médicas. Com frequência, algum correligionário grita coisas como "vai fazer mais pelo Brasil" ou "nosso presidente". O tucano apenas sorri e desconversa.

Nas duas últimas semanas, Serra cumpriu compromissos de governador, mas muitos deles tinham clima de campanha. Palanques, fotos, faixas de saudação e pedidos para que posasse para fotografias, o que ele fez sempre sorrindo. A média foi de dois eventos por dia.Às 3h da manhã da segunda passada, por exemplo, ele estava na estação Brás de trem lançando o "Bilhete do Madrugador". Noctívago famoso, Serra, de bom humor, destoava da entourage de assessores.

No dia seguinte, foi à inauguração de um centro de treinamento em Porto Feliz. Falou sobre futebol, uma de suas paixões, e brincou com o locutor Galvão Bueno. Mas menos de 20 minutos após sair dali estava carrancudo dando uma blitz em uma escola estadual. "Infelizmente, todos os problemas que haviam sido apontados se confirmaram", disse ele à atônita diretora. A escola estava suja, e a sala de computadores, inativa.

Segundo avaliação do governo estadual, quase 80% dos alunos não têm o conhecimento esperado em matemática. "É preciso tomar tabuada", disse Serra aos professores da escola da zona leste onde deu aula na quinta. De saída, contou: "Preciso ir. Tenho cinco reuniões e um jantar no palácio". Naquela noite, ele recebeu a cúpula do DEM para tratar de política.

Aécio: "Faça pelo país o que faz por MG"

Paulo Peixoto
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Eraldo Eustáquio Soares (PR), prefeito de Chapada do Norte, e Nilton Coimbra (PDT), de Franciscópolis, discursaram no dia 3 no Palácio da Liberdade, sede do governo de Minas, na presença de Aécio:

"Gostaria de ver o senhor fazendo pelo Brasil o que faz por Minas", disse o primeiro. "O seu trabalho o credencia para ser a maior referência do país no atendimento aos municípios pobres", arrematou o segundo. Em outra cerimônia, foi a vez de o prefeito de Francisco Badaró, José João Teixeira (PDT), falar. "Que Deus ilumine seus passos na vitoriosa caminhada", disse ele, trilhando o discurso que fizera 13 dias antes, também na sede do governo, o prefeito de Setubinha, João Barbosa Neto (PSDB): "Agora queremos Aécio presidente".

As duas últimas semanas de Aécio foram marcadas por eventos palacianos sobre investimentos em cidades de regiões mais pobres de Minas e visitas a canteiros de obras, com as mangas da camisa dobradas, capacete na cabeça e com direito a cumprimentar operários e moradores vizinhos às obras.

Muitas vezes, ele fez críticas pontuais ao governo federal, uma delas, recorrente, sobre a falta de planejamento. Falou dos juros altos e bateu na condição das estradas federais.

Aécio tenta manter viva a disputa interna no PSDB e, para isso, articula sempre -anteontem, esteve em São Paulo, onde se encontrou com FHC e com Rodrigo Maia, presidente nacional do DEM. Nos últimos dias, falou bastante sobre 2010, porque a todo instante é questionado nas entrevistas que concede. Mas ele não toca no assunto quando discursa.

Menos cuidado, porém, foi notado nos discursos dos convidados para as últimas cerimônias no Palácio da Liberdade. Na última quarta, Aécio recebeu no palácio deputados e políticos do norte mineiro que lhe falaram sobre a intenção de lançá-lo candidato em Montes Claros, no próximo dia 6, durante reunião de governadores da Sudene na presença do presidente Lula e da ministra Dilma.

Na saída do encontro, os políticos, de vários partidos, deram entrevistas e disseram que Aécio não fez objeção ou apoiou, apenas sorriu. No dia seguinte, quando visitava um presídio de mulheres em Vespasiano, na região metropolitana, ele reprovou a ideia.

Apesar das duas últimas semanas mais palacianas, restritas a Belo Horizonte, Aécio começará a partir de amanhã a viajar pelo país para tentar convencer os tucanos de que sua pré-candidatura tem consistência e potencial de crescimento. Vai primeiro a Recife, onde encontrará deputados, prefeitos e vereadores tucanos. Ele pretende fazer esse tipo de viagens com mais frequência, esperando que o partido confirme a realização de prévias.

Dilma: "Ela é sincera, mas fala difícil"

Fernanda Odilla
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

A ministra Dilma enfrentou diferentes testes de popularidade nas duas últimas semanas. Discursou para empresários, sem-casa e sem-terra, estudantes de medicina, metalúrgicos, mulheres, profissionais da saúde, deputados e senadores nordestinos e bispos. Não perdeu oportunidade de antecipar, a conta-gotas, detalhes do novo programa habitacional do governo.

Nem hesitou em distribuir abraços, beijos, autógrafos e sorrisos.

Em redutos de esquerda ou entre beneficiários de programas federais, ela obteve respostas positivas. Foi recebida por 200 mulheres em Salvador com um "Brasil, urgente, Dilma presidente".

Só não foi mais aplaudida que Lula durante visita à periferia de Vitória (ES), onde ganhou um pingente, que colocou imediatamente no pescoço.

"Vejo isso como uma manifestação de carinho, não tem um significado maior. Não estamos num momento eleitoral", afirmou à Folha. Nem a fase "paz e amor" que incorporou junto com as marcas (ainda visíveis, em especial nas pálpebras) de uma plástica na face a afastam de alguns gestos mais "duros" quando o assunto é 2010. A ex-guerrilheira avisa que pensa em criar um grupo de perguntas sobre as quais não responde "nem amarrada". Mas acaba, enfim, dando a senha: "Isso [atitude de candidata] não é para agora".

Em Feira de Santana (BA), durante visita a obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), houve tumulto para abraçar, beijar e tirar foto com a ministra, que ganhou (mas não usou) boné do MST. Mas, mesmo prometendo casa grátis, não arrancou aplausos efusivos. Segundo seus estrategistas, ela precisa melhorar sua comunicação. "Ela é muito sincera, mas fala difícil", diz alguém do público-alvo, a dona de casa Euzani Gama, 65, após ouvir a ministra na Bahia.

Nas duas primeiras semanas de março, Dilma passou por nove cidades -sete delas sem o presidente- e foi para os EUA com Lula, carregando na bagagem a receita contra a crise: obras subsidiadas pelo Executivo. Se a estratégia funcionar, a ideia do PT é associar tal sucesso a Dilma. Ela está hoje na fase de "conhecer melhor" seu partido. A partir do dia 23, será a estrela de nove seminários da fundação petista Perseu Abramo sobre a crise. Fundadora do PDT gaúcho, Dilma só entrou no PT em 1999.

Nos últimos dias, enquanto esteve no Planalto, dedicou-se quase exclusivamente à confecção do novo plano habitacional do governo. Fora, aproveitou uma brecha na agenda das viagens para assistir a uma missa do padre Marcelo Rossi em São Paulo. Diante de 20 mil fiéis, leu um trecho na Bíblia sugestivo: "Põe em meus lábios um discurso atraente, quando eu estiver diante do leão".

Banalização do sagrado e da política

José de Souza Martins
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS


Governo se afasta da Igreja partidarizada, mas a populista se mantém firme na mescla de religião e partido

Dom Hélder Câmara, antecessor de dom José Cardoso no arcebispado de Olinda e Recife e de orientação pastoral radicalmente oposta à de seu sucessor, costumava distinguir entre primeira violência e segunda violência. A legitimidade da segunda violência decorre de sua inevitabilidade em face das consequências destrutivas da primeira. A vítima inocente e indefesa da primeira violência é uma vítima sem alternativa, sem condições de escapar à causação que decorre de uma violência sofrida previamente e sem possibilidade moral e até religiosa de não reagir, autodefensivamente, contra aquilo que a degrada, minimiza e machuca. Se a primeira violência desorganiza e destrói socialmente, a segunda violência procura restaurar o que foi dilacerado.

Inspirados nessas ideias, setores da Igreja Católica têm sido solidários com as vítimas das muitas iniquidades e perversidades que, como a que aconteceu agora em Pernambuco, são marcas atuais da sociedade brasileira. Não só solidários, mas ativos participantes de ações próprias da segunda violência. Bastaria lembrar da Pastoral Indígena e da Pastoral da Terra que, mesmo com suas confusas oscilações e vacilações, têm se engajado ativamente nas lutas sociais e partidárias, que muitos consideram violência. Não só em reação à vitimização dos desvalidos, mas até mesmo na construção de um projeto político para eles, o que extrapola o princípio da segunda violência. Eu lembraria do não menos confuso e difuso MST, nascido no interior da Pastoral da Terra e que tem tido apoio da Igreja.

Não foi apenas a questão do aborto protetivo, em defesa da saúde da menina violentada e engravidada pelo padrasto, que nestes dias trouxe a Igreja para uma pauta de discussão pública compreensível, mas problemática. Sobretudo na notória anomalia de excomungar a mãe da menina e os médicos e poupar o estuprador, que estuprou também a irmã da menina. Estupro, aliás, agravado no plano propriamente religioso porque simbolicamente incestuoso, praticado pelo pai putativo das crianças.

No outro extremo do cenário, o convite por encomenda para que a candidata de Lula à Presidência da República, Dilma Roussef, comparecesse à missa no Santuário do Terço Bizantino, em São Paulo, foi outro destaque problemático para a Igreja. Do lugar da celebração, que a mídia chamou de palco e que seria o presbitério, ao lado da imagem de uma santa, Dilma dirigiu ao público acenos de positivo, com o polegar levantado, como se estivesse num palanque. A visitante foi apresentada como presença ilustre na celebração.

Ora, ilustre numa missa é Nosso Senhor e ninguém mais, nem mesmo o celebrante. O altar é histórica e tradicionalmente o lugar da celebração do sacrifício de Cristo. Nem o sacerdote ali se exibe, já que o que entra no recinto sagrado é o seu carisma, por ele personificado, distinguido de sua pessoa física pelos atos preparatórios e rituais de sua purificação. O espaço da celebração católica, como o de outras religiões, é o espaço do sagrado, espaço hierarquizado. Mais sagrado, no templo, é o presbitério e no presbitério o sacrário, que é o sagrado do sagrado, porque lugar da eucaristia. A demarcação do território do rito, a ordenação sacerdotal do padre e os ritos envolvidos na celebração têm por objetivo, justamente, manter o recinto e os objetos sagrados longe de mãos e presenças impuras, destituídas do carisma do sacerdócio. Mesmo nas igrejas protestantes, a relação com o sagrado é uma relação mediada.

O círculo problemático se fecha com o conteúdo preocupante da entrevista que deu a Roldão Arruda o frei Betto, ex-assessor especial do presidente Lula. Ele foi coordenador da área de Mobilização Social do Programa Fome Zero e o principal instaurador e articulador da rede de agentes que é hoje a base de intermediação entre o governo e os 11 milhões de famílias e de eleitores beneficiados pelas doações governamentais. Preocupante porque confirma a denúncia do senador Jarbas Vasconcelos de que o Bolsa-Família é o maior programa de compra de votos do mundo. O frade dominicano entende que o Bolsa-Família representa o encolhimento do Fome Zero e sua redução à mera condição de instrumento eleitoral de um projeto de poder do PT e de Lula.

Na verdade, sua saída do governo pode ser vista de outro modo: o descarte da Igreja Católica pelo PT e pelo governo Lula. O primeiro episódio foi logo no início do primeiro mandato, quando o indicado pela Pastoral da Terra para a presidência do Incra, mandatário de uma reforma agrária mais agressiva, foi demitido e substituído por alguém mais identificado com o pacto de conciliação do governo com o grande capital e a grande propriedade. O segundo episódio foi, justamente o da saída do governo de frei Betto e seu principal auxiliar, Ivo Poletto, originário da Cáritas, da CNBB, e um dos fundadores da CPT e do MST. O terceiro episódio ocorre agora, com as medidas e articulações que o governo Lula está fazendo para enquadrar ou mesmo descartar o MST e sua reforma agrária radical e paralela.

Não obstante esse notório rompimento entre o governo e setores partidarizados da Igreja, o "evento" a que compareceu a ministra Dilma em São Paulo indica que uma igreja populista se mantém firme na mescla de religião com partido político. Por outro lado, em sua entrevista, o ilustre frade fez esta declaração esclarecedora: "Caso mude o governo - e queira Deus que não volte às mãos da oposição...", que representa a impugnação petista da concepção republicana da rotatividade de partidos no governo. Fica, então, muito claro, que o governo Lula repousa sobre um tripé estratégico: política econômica liberal, política social assistencialista e corporativismo político. Algo bem distante do que pensam e querem os setores mais petistas da Igreja e, certamente, muito distante do que precisa a democracia brasileira. Por trás da diversidade de acontecimentos desse cenário social e político temos a banalização do sagrado e a banalização da política.

*Professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)

Lula plantou sua crise em maio de 2008

Elio Gaspari
DEU EM O GLOBO


Foi exatamente no dia 1º, quando ele desistiu de trocar Meirelles por Belluzzo, a quem já convidara para o BC

LULA TOMOU a decisão que potencializou os efeitos da crise financeira mundial sobre a economia brasileira no dia 1º de maio do ano passado, antes mesmo que o céu começasse a desabar em Nova York. Ele recebeu a notícia de que o Brasil obtivera o "investment grade" da agência Standard & Poor e desistiu de trocar o presidente do Banco Central. Uma semana antes, havia convidado o economista Luiz Gonzaga Belluzzo para o lugar de Henrique Meirelles. Nos dias seguintes, confessara-se aliviado por ter resolvido um problema. Faltava apenas chamar o presidente do BC ao Planalto para o ritual da despedida. Com a boa notícia vinda de Wall Street (numa época em que ela ainda produzia boas notícias) a troca foi arquivada e em janeiro, para felicidade da torcida, Belluzzo assumiu a presidência do Palmeiras.

Não se pode dizer o que Belluzzo faria no Banco Central, mas pode-se garantir que derrubaria a taxa de juros. Dias antes do convite de Lula ao professor, o Copom elevara a Selic de 11,25% para 11,75%. Depois de altas sucessivas, em setembro ela chegou a 13,75%. Em outubro, depois da quebra da casa bancária Lehman e da propagação da crise pelo mundo, os sábios do Copom mantiveram a taxa e assim contribuíram para o desastre da contração de 3,6% do PIB no último trimestre do ano. Feito o estrago, a Selic voltou aos 11,25% e continua sendo a mais alta do mundo.

Lula não sabe, mas sua decisão de manter Meirelles e a turma do Copom seguiu o padrão dos erros políticos cometidos no Brasil ao longo dos últimos 50 anos. Ele se explica pela "teoria da goteira", exposta há tempo pelo economista americano Irving Fisher. O sujeito tem uma telha quebrada que pinga chuva na sala. Sempre que o sofá molha, pensa em fazer o conserto, mas a chuva passa e ele deixa para depois. É o erro do não fazer. Diferente de outro, que resulta da vontade de fazer. Por exemplo: a decisão dos comandantes militares japoneses e do imperador Hirohito para que se levasse adiante o plano de ataque à base americana de Pearl Harbor.

Fernando Henrique Cardoso criou a crise cambial de 1999 um ano antes, quando desistiu de tirar o economista Gustavo Franco da presidência do Banco Central, perseverando na sobrevalorização de real. O Plano Cruzado explodiu no final de 1986 porque José Sarney não mexeu nos preços congelados antes da eleição. A bancarrota de 1982, na qual o Brasil perdeu a capacidade de honrar seus compromissos externos, começou em 1978, quando Ernesto Geisel persistiu na política de captação de empréstimos externos atrelados à taxa de juros bancários americanos. Eles foram dos 6,8% do tempo das vacas gordas para 19% em 1981. No ano seguinte, começou a "década perdida", que durou pelo menos 12 anos.

Visões incompatíveis

Rubens Ricupero
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Em todos os temas, comércio, inflação, câmbio, sempre que o Brasil está numa posição, a Argentina se acha na oposta

DUAS DAS principais metas da política externa brasileira se encontram em rota de colisão: o fortalecimento do sistema multilateral de comércio por meio das negociações da OMC (Organização Mundial do Comércio) e a prioridade à integração comercial com a Argentina e o Mercosul.

Ao aconselhar 15 setores industriais brasileiros a negociarem a limitação "voluntária" de suas vendas ao vizinho, Brasília se resigna ao comércio administrado ("managed trade"), pelo qual se obtém um equilíbrio artificial mediante cotas e preços mínimos. Os acordos de restrição voluntária de exportação eram prática comum no comércio mundial até os anos 80, em aço e automóveis, sobretudo. Pareciam liquidados pela Rodada Uruguai, mas voltam em grande estilo no comércio bilateral com a Argentina.

É um dos tipos mais fechados de bilateralismo (mais que isso só na base da troca ou de moeda especial), incompatível com o espírito da OMC, que busca o equilíbrio num regime aberto, no qual déficits com alguns são compensados por superávits com outros. Trata-se de retrocesso aos anos 30, dos acordos de "marcos de compensação" com a Alemanha nazista ou aos 50, com o Leste Europeu comunista de moeda não-conversível.

O que causa perplexidade é que a posição seja aceita pelo mesmo governo que censura o protecionismo da cláusula "Buy American" e defende com ardor, inclusive no G20, a retomada e a rápida conclusão da Rodada Doha da OMC. Como se isso não fosse provocar novos problemas com os argentinos, que se recusam às concessões aceitas pelo Brasil em tarifas industriais.

Para quem chefiou como eu a delegação brasileira em Genebra durante a maior parte da Rodada Uruguai, a impressão é que os dois países ficaram de posições trocadas. Há 20 anos, era o meu colega argentino, o saudoso embaixador Leopoldo Tettamanti, quem dizia com todas as letras que, se a Argentina obtivesse o pleiteado em agricultura, estaria pronta a aceitar tudo nas demais áreas. Hoje somos nós os paladinos da liberalização agrícola, enquanto Buenos Aires tenta proteger interesses diversificados em indústria e outros setores.

Em todos os temas, comércio, inflação, câmbio, relações com os credores e o Fundo Monetário Internacional, sempre que o Brasil está numa posição, a Argentina se acha na oposta. O Mercosul foi fruto de raro momento em que os dois enxergavam a inserção no mundo de modo igual e relativamente aberto.

Sabe-se onde está a Argentina agora. Já em nosso caso, os sinais são confusos. Parece que há dois Brasis: um, o do presidente e do chanceler, prega o multilateralismo para o Primeiro Mundo; o outro, dos vice-ministros do Comércio e do Itamaraty, fala com os vizinhos a linguagem pragmática do comércio administrado.

A ambiguidade de Obama em comércio talvez obrigue a renunciar por ora a uma solução multilateral improvável. Quem sabe até justifique como realismo que o Brasil ceda a fim de preservar parte do mercado argentino (desde que a renúncia não abra espaço para a China ou o Chile).

Nesse caso, é preciso ser coerente e, em vez de insistir em veleidades multilaterais inexequíveis no momento, tentar explorar de modo pragmático o potencial do comércio dentro da região latino-americana e com outros parceiros.

Rubens Ricupero, 72, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.

Nau sem rumo

Panorama Econômico :: Miriam Leitão
DEU EM O GLOBO


A crise já atingiu o Brasil há meses, mas o governo ainda não formulou qualquer resposta à altura. Se o governo tivesse mantido suas despesas com pessoal e previdência em proporção do PIB, no patamar de 2003, teria R$75 bilhões a mais para investir. As decisões tomadas nos últimos anos limitam a resposta governamental, a tendência de subestimar a crise é um complicador a mais.

A conta acima foi feita pelo economista político Alexandre Marinis. Os gastos com pessoal subiram de 4,2% para 5% do PIB, as despesas previdenciárias, em parte pelos aumentos reais do salário mínimo, subiram de 5,9% para 7,2% do PIB. Como são despesas que não podem ser reduzidas, o governo não tem muita margem agora para fazer política contracíclica. E há mais gastos em andamento.

- Apenas para 2009, o Orçamento da União prevê que o Executivo [sem o Judiciário e o Legislativo] contratará mais 30.879 servidores, a um custo anual de R$1,8 bilhão. Além disso, prevê a substituição de mais 19.423 terceirizados, a um custo de R$678 milhões. Como o governo Lula aumentou o quadro de servidores civis e militares em 298.232 servidores, podemos dizer que as contratações custaram R$17,2 bilhões por ano aos contribuintes. Como a maioria das contratações foi efetuada a partir do ano eleitoral de 2006, temos um impacto total nas contas públicas de R$51,7 bilhões - diz Alexandre Marinis.

Números estarrecedores, que mostram exatamente o peso que o Estado brasileiro assumiu para os próximos anos e décadas e que, neste momento, limita a ação do governo.

Os aumentos salariais são outro peso.

- Só em 2008, conforme dados do Ministério do Planejamento, a reestruturação de cargos e carreiras teve impacto de R$30,5 bilhões nos gastos de pessoal - conta Marinis.

Isso impactará, no médio e longo prazos, os gastos da previdência pública, que já tem déficit anual de R$43 bilhões em 2009.

- Em síntese, os dados mostram que o governo Lula cometeu um tremendo erro de estratégia fiscal ao contratar um número excessivo de servidores e reajustar seus salários em demasia. Este erro custará caro ao país, já que agora não tem recursos para enfrentar o tsunami mundial que já varre emprego e crescimento no Brasil - conclui Alexandre Marinis.

Além da estratégia errada nos tempos do boom, o governo não tem estratégia agora para enfrentar a crise. Foram tomadas medidas tópicas, o Banco Central acudiu as emergências bancárias que estouraram em outubro, quando secou o crédito externo. O presidente Lula suou de palco em palco, desde o início da crise, em discursos em que apostava no improvável: o Brasil não seria atingido.

Um líder não pode dizer que o país será derrotado. Mas basta comparar com o que os outros presidentes dizem: todos admitem a gravidade da crise, todos avisam que esse é um ano terrível, todos alertam para os perigos, e a partir destas constatações é que passam a convocar o país para a superação da crise. Assim faz o presidente Barack Obama o tempo todo. Assim faz o presidente da França, o primeiro-ministro do Reino Unido. Mas para ficar num exemplo mais emergente, até o primeiro-ministro chinês, Wen Jiabao, de um país conhecido pela absurda capacidade de censurar as informações até na web, disse claramente, ao abrir a reunião anual do Congresso, que este seria "um dos anos mais difíceis da história da China".

A crise é grave, chegou há meses ao Brasil. Só nos últimos dias, o país soube que a produção industrial de janeiro caiu 17%, que o PIB teve queda de 3,6% no último trimestre de 2008, que o governo arrecadou R$10 bilhões a menos do que previa no primeiro bimestre, que o Ministério do Trabalho registrou quase 800 mil empregos perdidos de novembro a janeiro, que a Fiesp contou 235 mil postos de trabalho eliminados de outubro para cá. Ninguém precisa de um novo número para saber que a crise está entre nós. Cabe ao governo ter uma equipe que lide com o problema com seriedade, que se antecipe aos fatos, que saiba em que direção está indo. Não há uma ação que resolva tudo. Portanto, o plano habitacional que está sendo aguardado há meses, se for bem formulado, será uma parte da resposta. Mas não toda ela.

O governo Lula teve duas vantagens. Primeiro, recebeu de herança uma economia que tinha feito avanços importantes, como a estabilização, as metas de inflação, o câmbio flutuante, a Lei de Responsabilidade Fiscal e a autonomia do Banco Central. Segundo, o país passou a ser extraordinariamente favorecido pela onda internacional de crescimento, provocada em grande parte pela bolha de crédito americana. A alta das commodities metálicas, o boom de comércio de alimentos, o aumento do fluxo de comércio, a explosão do fluxo de capitais de toda a natureza.

Estar preparado para aproveitar uma boa onda é tão importante quanto saber que ela é temporária e leva a decisões sensatas. Foi o que alguns países fizeram, como o Chile, ao montar um fundo para acumular o excesso de receitas dos bons tempos. O governo Lula tomou algumas decisões certas, como a de manter o superávit primário, acumular as reservas, aumentar os gastos com os muito pobres. Mas ele desperdiçou o bom momento ao interromper o ciclo de reformas que preparariam o país para tempos mais duros e ao aumentar de forma extravagante as despesas que não pode cortar.

O improviso diário do presidente, as apostas do ministro da Fazenda, o ensaio de campanha da ministra da Casa Civil não vão resolver a crise. Podem aprofundá-la.