domingo, 26 de abril de 2009

PENSAMENTO DO DIA

“Após demonstrar que todos são filósofos, ainda que a seu modo, inconscientemente – já que, até mesmo na mais simples manifestação de uma atividade intelectual qualquer, na “linguagem”, está contida uma determinada concepção do mundo - , passa-se ao segundo momento, ao momento da crítica e da consciência, ou seja, ao seguinte problema: é preferível “pensar” sem disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e ocasional, isto é, “participar” de um concepção do mundo “imposta” mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos muitos grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente (e que pode ser a própria aldeia ou a província, pode se originar na paróquia e na “atividade intelectual” do vigário ou do velho patriarca, cuja “sabedoria” dita leis, na mulher que herdou a sabedoria das bruxas ou no pequeno intelectual avinagrado pela própria estupidez e pela impotência para a ação), ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira consciente e crítica e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de se mesmo e não mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade?”

(Antonio Gramsci, nos “Cadernos do cárcere”, volume 1, págs. 93-94 – Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 4ª edição, 2006)

Na caderneta, o dilema de alterar as regras

Geralda Doca
DEU EM O GLOBO


Analistas dizem que recuo de juros não dá opção ao governo, exceto reduzir rendimento da aplicação mais popular do país

BRASÍLIA. Com a taxa básica de juros Selic em queda, a poupança - o investimento mais simples e popular do Brasil, que é isento de tributos e tem rendimento fixado em lei - está prestes a se tornar uma das mais rentáveis aplicações do país. Isso poderá provocar desequilíbrios profundos no mercado, que vão desde a dificuldade de a União se financiar até possíveis prejuízos aos bancos. Inverter esta equação é um dos principais objetivos do Ministério da Fazenda e do Banco Central (BC) hoje. A operação, porém, não será fácil.

Além da resistência natural a mudanças numa instituição de 148 anos, a sociedade ainda tem viva na memória o confisco do governo Collor. Como a alteração da forma de remuneração terá que ser aprovada pelo Congresso Nacional, o governo federal terá que ser exímio jogador se quiser levar adiante a proposta.

A poupança, por lei, tem que render ao menos 0,5% ao mês, o equivalente a 6,17% ao ano, mais um indexador, a Taxa Referencial (TR), que fechou 2008 a 1,63% e este ano deve ficar abaixo de 1%. Os fundos de investimento, em geral, compram títulos públicos, que têm alto giro e remuneração elevada. O balizador deste mercado de título, grosso modo, é a Selic, hoje a 11,25% ao ano.

O vice-presidente do Conselho Regional de Economia de São Paulo (Corecon-SP), professor Manuel Enriquez Garcia, dá o pontapé inicial na explicação do dilema. Se a Selic cair para 10% - o que pode acontecer já na próxima quarta-feira, quando se reúne o Comitê de Política Monetária (Copom) - um aplicador de fundo de investimento com menos de R$20 mil dificilmente receberá este percentual cheio, pois seu poder de negociação com o banco é pequeno.

Além disso, ele terá de descontar 2%, em média, de taxa de administração e recolher no mínimo 20% a título de Imposto de Renda. Ou seja, o ganho da sua aplicação ficará praticamente empatado com a poupança - que, além de isenta de tudo o que ele paga no fundo, honra depósitos de até R$60 mil.

- As pessoas são racionais e vão migrar mesmo para a poupança - diz Garcia.

Migração para poupança pode afetar dívida pública

O professor do Ibmec-SP José Dutra Vieira Sobrinho vai além. Cerca de 80% das carteiras dos fundos estão aplicadas em papéis do governo. A migração trará, portanto, consequência para o financiamento da dívida pública, que é rolada com a emissão de títulos:

- Com a poupança rendendo mais, esses aplicadores vão se desfazer dessas operações, obrigando o administrador do fundo (o banco) a vender os títulos do governo para pagar o cliente. Isso não interessa ao Tesouro Nacional, que passaria a ter dificuldades para rolar a dívida pública, que supera R$1 trilhão.

O restante das carteiras é composto por aplicações em títulos privados (debêntures e Certificado de Depósitos Bancários-CDBs), comercializados por agentes financeiros para buscar recursos para emprestar às pessoas físicas e empresas.

- Por outro lado, se nada for feito, a poupança ficará cada vez mais gorda, e os bancos poderão ter prejuízos, pois 65% das captações são direcionadas ao setor imobiliário, com limite de taxas de juros (dos empréstimos) definido - afirma o professor.

A poupança faz parte do Sistema Financeiro de Habitação (SFH), no qual os bancos pagam 6,17% aos poupadores e cobram 12% nos contratos imobiliários.

- Por isso, não interessa a ninguém que a poupança renda mais que fundos. Por mais que doa, o governo não tem alternativa a reduzir os rendimentos dos poupadores - diz Dutra.

Autoridades ainda avaliam o que será mudado

DEU EM O GLOBO

Eliminação da Taxa Referencial chegou a ser considerada

BRASÍLIA. Uma das alternativas em estudo pelo governo seria acabar com a Taxa Referencial (TR). Esta decisão, porém, além de não resolver a questão da migração de recursos, pois a TR já está quase zerada, traria uma série de repercussões indesejadas, que podem inclusive acabar nos tribunais. Isso porque a TR é usada em milhares de contratos habitacionais e nas contas do FGTS.

- São novos tempos. As pessoas precisam entender que as discussões sobre a mudança no rendimento da poupança é por uma boa causa - defende Moreira Franco, vice-presidente de Fundos de Governo e Loterias da Caixa Econômica Federal, instituição com o maior número de cadernetas do Brasil.

O governo ainda não sabe o que fazer. Há consenso de que os ganhos dos pequenos poupadores (até R$15 mil) sejam preservados, mas como isso poderá ser feito - criação de faixas de remuneração diferenciadas ou de uma contribuição do tipo imposto - ainda é ponto de divergência. (Geralda Doca)

Retrocesso ou sintonia?

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO

A semana política que se inicia terça-feira em Brasília será fundamental para definir se a Câmara dos Deputados acompanha o sentimento da sociedade brasileira e acata a decisão da Mesa Diretora de restringir o uso de passagens aéreas ao parlamentar em serviço, ou se vai se colocar acima dela para defender interesses fisiológicos dos que querem manter privilégios inaceitáveis. A tese de que os meios de comunicação não refletem necessariamente a opinião média do eleitorado, mas apenas o pensamento das elites brasileiras, que já foi usada com êxito como argumento para que a grande maioria dos deputados envolvidos no mensalão fosse absolvida pela corporação, transforma os deputados em parceiros do nivelamento por baixo de nossa política, e em interessados em que a sociedade não avance, para que seus interesses pessoais permaneçam intocáveis.

Para frustração dos que, na Câmara, consideravam vencida a batalha, a medida "cirúrgica" da Mesa Diretora - que nunca abriu mão da prerrogativa de baixar essas normas - se transformou em Projeto de Resolução, a ser votado em plenário.

O próprio presidente da Câmara, Michel Temer, embora eleito por parte dos que agora se insurgem contra a medida, liderou o movimento de necessária renovação dos hábitos, depois de ter tentado uma solução a La Tancredi, do Leopardo: mudar para permanecer tudo na mesma.

Um recomeço sob novas regras de austeridade e transparência, que já defendi aqui nessa coluna, abrigaria até mesmo um "acordo tácito" que já está em vigor na Câmara, onde os pouquíssimos que não fizeram usos irregulares, mesmo os justificáveis pela tradição, ou ofertaram voos internacionais, não esticam a corda com acusações, para criar um ambiente de entendimento (aliás, está na hora de os jornais fazerem uma lista dos que não utilizaram suas cotas de maneira abusiva).

Parece, no entanto, que uma maioria não abre mão do uso das passagens "a critério exclusivo do parlamentar". Por isso tudo, essa votação de uma questão interna, administrativa, ganhou um peso imenso para a vida futura desta Legislatura e para a credibilidade da política institucional, novamente no fundo do poço.

Esse comportamento retrógrado da Câmara dos Deputados, portanto, afasta ainda mais nossos representantes do Estado moderno, surgido em consonância com a "opinião pública" no século XVIII. O que dizer, então, da moderna democracia digital, que permite que a sociedade acompanhe passo a passo a atuação dos funcionários públicos, que é o que são nossos deputados e senadores?

A legislação de acesso à informação, ferramenta indispensável para o exercício de uma democracia moderna na definição de Rosental Calmon Alves, professor da Universidade do Texas em Austin, hoje é um assunto que mobiliza todos os governos.

Há 20 anos, era assunto apenas dos Estados Unidos e dos países escandinavos. Os países europeus demoraram muito, mas em alguns casos os países pós-comunistas da Europa do Leste foram mais rápidos do que os da Europa Ocidental porque estavam instalando uma democracia nova e esses conceitos eram necessários.

Segundo Rosental, o projeto de lei brasileiro, que o governo promete apresentar até o fim do mês, é bom, mas o ponto polêmico será a necessidade de uma agência reguladora. Ao contrário, o projeto prevê que a Controladoria Geral da União vai assumir esse papel o que seria "como colocar a raposa tomando conta do galinheiro", na definição de Rosental.

Em todos os lugares, a hora do conflito é quando um cidadão quer saber quanto um ministro gastou na viagem que fez à Europa, e em que ele gastou, por exemplo. Ou como nossos parlamentares usaram suas verbas .

A base da lei, segundo Rosental, é que "tudo o que tem a ver com dinheiro público a gente tem direito de saber, e aí alguém vai ter que arbitrar quando um funcionário público recusar a informação".

Nos Estados Unidos, é a Corte Federal que decide se a instância administrativa não quiser divulgar uma informação. As leis mais modernas prevêem uma agência independente, como o México, que é o país que tem a melhor legislação.

Na eleição de 2000, com a sociedade empolgada com a possibilidade de ter o primeiro presidente que não era do PRI, todos os candidatos se comprometeram com isso.

Outro problema grave vai ser o custo, pois cada ministério, cada agência, tem que ter pelo menos uma pessoa encarregado da operação, que exige uma estrutura permanente, pois são milhões de pedidos.

O cidadão paga o custo da digitalização, ou da fotocópia, e a lei nos Estados Unidos especifica que não se pode cobrar pelo serviço nada além do custo da cópia.

Rosental Calmon Alves diz que também evoluiu muito o conceito no Brasil, pois há uns anos havia muita relutância, inclusive dos que, embora favoráveis, achavam que não precisaríamos de uma lei específica, pois já havia o preceito constitucional.

Mas não adianta ter a lei se não é regulamentada, ressalta Rosental, lembrando que o mais importante é o prazo. Um funcionário público que receber um pedido de qualquer pessoa sobre uma informação tem que ter um prazo máximo estabelecido por lei e precisa ser responsabilizado se não obedecê-lo na tentativa de não dar a informação.

Mas será esse Congresso que se agarra a mordomias e se irrita com a revelação de suas irregularidades que vai aprovar uma lei de transparência total de informação pública? Vamos começar a ter a resposta a partir desta semana em Brasília.

Quadros

Tela da artista plástica
Cristina Paraguassu

Unidade dos contrários

Nas Entrelinhas :: Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


Lula acredita que a doença não atrapalhará a ministra-chefe da Casa Civil, cuja candidatura até pode se beneficiar da forma corajosa como ela enfrenta a situação

Há mais coisas entre o céu e a terra do que os aviões de carreira, diria o mais gozador dos gaúchos, Apparício Torelly, o Barão de Itararé (parafraseando o genial dramaturgo inglês William Shakespeare). Enquanto o Congresso chafurda nas mordomias e tropeça nas próprias pernas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva constrói o que considera o cenário ideal para a sucessão presidencial de 2010. Em sua estratégia eleitoral, o adversário ideal é aquele que hoje aparece como favorito na disputa, o governador paulista José Serra (PSDB). A ministra Dilma Rousseff (PT) seria candidata única da base governista, com o apoio do PMDB, do bloco de esquerda (PSB, PDT e PCdoB) e dos partidos do “centrinho” (PTB, PR, PP e PSC). Para quem quiser ouvir, Lula aposta o outro mindinho que Dilma derrotará o tucano se essa for a polarização da disputa. Para o presidente da República, Serra seria um freguês de carteirinha.

Por gravidade

O PMDB saiu das urnas com vontade de comer caviar no segundo mandato de Lula, mas corre o risco de terminar o banquete arrotando mortadela. A cúpula da legenda conquistou com grande habilidade as presidências do Senado e da Câmara e parecia disposta a tutelar o governo. Mas, desde que assumiram o comando das duas Casas, o senador José Sarney (PMDB-AP) e o deputado Michel Temer (PMDB-SP) foram levados às cordas. Porta voz da opinião pública, toda a mídia nacional, inclusive o Correio, cobra a renovação dos costumes parlamentares. Há que se destacar que o site Congresso em Foco, que há anos acompanha diariamente sessões plenárias, comissões e bastidores da Câmara e do Senado, repetiu o feito de seu congênere Contas Abertas em relação ao Executivo e devassou, de forma avassaladora, os gastos com viagens ao exterior de deputados federais, parentes e agregados.

No turbilhão da crise, a potencial candidatura de Temer a vice-presidente da República, na chapa de Dilma, está sendo volatilizada. Lula assiste de camarote o naufrágio peemedebista e se prepara para recolher os sobreviventes. Devido ao rumo dos acontecimentos, acredita que o apoio da legenda à candidatura de Dilma virá por gravidade. Essa é a propensão natural de governadores e prefeitos da legenda. A única alternativa para o PMDB recuperar a iniciativa na sucessão seria a candidatura própria, mas o partido perdeu o rumo, não tem projeto próprio nem unidade para atrair o governador de Minas, Aécio Neves para a legenda. Se o PMDB indicar o vice de Dilma, será aquele que Lula escolher. Mesmo assim, antes terá que disputar a vaga com o bloquinho de esquerda.

O imprevisto

O ex-ministro da Integração Nacional e cacique político cearense Ciro Gomes, candidato do bloquinho, é um fio desencapado no jogo sucessório. Na avaliação do Palácio do Planalto, o destempero verbal já vitimou Ciro em duas eleições presidenciais e está se encarregando de jogar por terra a tese que tanto defende: duas candidaturas da base do governo na sucessão de 2010. Lula nunca descartou a possibilidade de Ciro ser vice de Dilma, contentando o PMDB com o apoio do PT à reeleição de seus governadores, mas essa alternativa começa a ser vista como um risco na campanha eleitoral por causa do temperamento explosivo de Ciro. Ele é uma espécie de terceiro vértice no triângulo de fogo de uma campanha eleitoral (oxigênio, combustível e temperatura de ignição). O mesmo raciocínio começa a ganhar corpo na cúpula do PSB, partido de Ciro, que prefere reeleger o governador Eduardo Campos em Pernambuco, com apoio do PT. Ou seja, a candidatura de Ciro está morrendo na praia.

Curiosamente, Lula aposta que Aécio será o vice de José Serra no PSDB, contra todas as declarações em contrário. Esse é o sonho do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, mas, mesmo assim, Lula seca a candidatura do governador mineiro a presidente da República, sufocando-a como pode, num jogo tacitamente combinado com o governador paulista José Serra. Essa estranha dialética de unidade dos contrários, porém, enfrenta um grave imprevisto: o linfoma de Dilma, que começou delicada quimioterapia. Lula acredita que a doença não atrapalhará a ministra-chefe da Casa Civil, cuja candidatura até pode se beneficiar da forma corajosa como ela enfrenta a situação. O câncer foi diagnosticado em estágio inicial e, segundo seus médicos, tem cura.

O dia em que frearam a democracia brasileira

Roldão Arruda
DIRETAS JÁ
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Há 25 anos, a emenda Dante de Oliveira – que propunha a realização de eleições diretas para a escolha do presidente da República – era derrotada na Câmara e, com ela, o sonho de milhões de brasileiros

Eram quase duas horas da madrugada do dia 26 de abril de 1984, quando a notícia foi confirmada em Brasília. Acabara de ser derrotada a proposta das Diretas Já, emenda constitucional que propunha a realização de eleições diretas para a escolha do próximo presidente da República. O jejum eleitoral para o cargo de mais alto mandatário do País, que durava longos 20 anos, desde o golpe militar de 1964, iria prosseguir. O jornal O Estado de S.Paulo, que atrasou a impressão da edição daquela quinta-feira para poder informar o resultado dos votos dos deputados, deu na primeira página: “Diretas Derrotadas na Câmara”.

Foi uma quinta-feira com gosto de ressaca. Dez dias antes, cerca de 1,5 milhão de pessoas havia se reunido no Vale do Anhangabau, em São Paulo, no comício de encerramento da campanha nacional pela aprovação da emenda – campanha que em menos de um ano empolgara o País inteiro e unira todos os setores de oposição à ditadura.

O encontro do Anhangabau foi uma das maiores manifestações cívicas da República, e muita gente saiu de lá em estado de euforia, com a certeza de que o Brasil estava a um passo da virada democrática.

Mas a virada não veio – as diretas só emplacariam em 1989, quando o alagoano Fernando Collor de Mello foi eleito presidente – e hoje, passados exatos 25 anos da ressaca cívica e com o País mergulhado em sucessivas crises institucionais, vale perguntar, mesmo que a contrapelo dos métodos de análise histórica: o que teria acontecido se a emenda tivesse sido aprovada? O deputado Ulysses Guimarães, que, à frente do PMDB e da frente das oposições, capitaneou a campanha pela aprovação da emenda, com esforço tão notável que lhe valeu o apelido de Senhor Diretas, teria sido eleito o primeiro presidente do período democrático? O Brasil teria escapado do atabalhoado governo de José Sarney e do desastre Collor? O PT, partido que estava se consolidando e ganhou enorme espaço político naquela campanha, teria tido a trajetória que teve? O sistema democrático brasileiro estaria melhor hoje?

Diante dos questionamentos, o professor e historiador Ronaldo Costa Couto, da Universidade de Brasília, começa respondendo que esse tipo de exercício especulativo não faz parte de sua atividade e a quantidade de variáveis envolvidas é tão grande que torna praticamente impossível qualquer previsão. Mas em seguida diz não ter dúvida de que o País teria ficado melhor com a emenda, por uma razão simples: “Democracia, quanto antes melhor.” Na época campanha pelas diretas, Costa Couto era secretário de Planejamento em Minas, sob o comando do governador Tancredo Neves – peemedebista moderado que apoiou a emenda, mas sempre com um olho no colégio eleitoral do Congresso, consciente de que, caso ela fosse derrotada, aquele colégio continuaria a eleger o presidente da República pela maneira indireta. Tanto foi assim que, menos de um ano depois daquela quinta-feira, ele disputou e conquistou a Presidência pelo voto indireto, derrotando o deputado paulista Paulo Maluf, que votara contra as diretas.

Tancredo e Ulysses, a disputa pela presidência

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

BRASÍLIA – Tancredo Neves venceu a eleição indireta, mas não chegou a governar o País. Morreu logo após ser eleito, deixando o cargo para o vice, José Sarney, que presidira o PDS, partido de apoio do regime militar no Congresso. A pergunta é: se a emenda constitucional, apresentado pelo jovem deputado Dante de Oliveira, tivesse sido aprovada, Tancredo teria apoiado a candidatura de Ulysses à Presidência? Reza a lenda que sim.

Mas o historiador Costa Couto, que também foi amigo e confidente de Tancredo, tem outra versão. Ele acredita Tancredo disputaria com Ulysses o direito de sair candidato: “Acho que, depois de passar 51 anos sonhando chegar à Presidência, Tancredo não desistiria sem luta. Disputaria com Ulysses e com qualquer outro.”

O cientista político Bolívar Lamounier não vê tanta importância no nome. O mais importante na opinião dele é que, logo após aquela campanha nacional, que pusera a bandeira da mudança nos corações e nas mentes dos brasileiros, o presidente teria uma carga de legitimidade imensa: “Uma legitimidade que Sarney não teve e nem Tancredo teria tido. Eu me inclino a crer que esse candidato, carregando a bandeira da mudança, conseguiria unificar a frente de oposições e conseguiria governar – o que Sarney não conseguiu. Teríamos apressado a solução do nó da democracia, que demorou mais alguns anos, e também da crise econômica. Teríamos economizado quatro ou cinco anos.”

A propósito, é bom lembrar que o regime militar naufragava em meio a uma depressão econômica, com taxas de inflação sem rédeas. Ainda segundo Lamounier, a aprovação da eleição direta em 1984 teria causado certa “coagulação” dos partidos – ou seja teríamos um quadro partidário mais estável, em vez da fragmentação que se viu a seguir: “Uma medida do nível de desagregação partidária a que chegamos foi o fato de termos 22 candidatos a presidente em 1989, todos eles de oposição. Havendo um presidente legitimado, haveria um partido forte do presidente.”

Nesse contexto, o PT teria tomado outro rumo na vida, segundo o cientista político: “Com um presidente sagrado, o PT, o principal partido do ‘não’, teria menos poder de fogo para ficar só bloqueando, como fez na Constituinte e, mais tarde, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Nesse jogo, não iria crescer como o partido do ‘não’. Seria forçado a ir para o mercado do voto mais cedo – em vez de só jogar pedra na vidraça.”

Banzé no Centro-Oeste

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O empurra-empurra verbal entre o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, e o ministro Joaquim Barbosa não foi edificante nem inédito.

Mas foi a primeira evasão de temperamentos, entre as várias recentemente ocorridas naquela corte, a ser enquadrada na categoria "crise institucional" em algumas interpretações da cena.

Isso não acontece à toa nem por acaso. Há motivos certamente. Eles podem refletir desconhecimento sobre o verdadeiro significado de uma ruptura nas instituições, perda da noção do que seja crise, falta de discernimento na análise de episódios distintos ou, o que é mais provável, uma confusão completa na mente do espectador, tantos são os espetáculos em cartaz na República.

Uma coisa é um magistrado repreender o outro em plena sessão de julgamento no STF - Nelson Jobim, quando presidente do tribunal, era useiro e vezeiro em desqualificar em público a tese alheia - quando o ambiente é de razoável normalidade.

Outra é isso acontecer, nos termos em que aconteceu, com acusações pesadas, enquanto se assiste à exposição das feias entranhas do Congresso. A tendência, claro, é de se amplificar a impressão de bagunça.

Isso não quer dizer que, por serem agora habituais, os bate-bocas entre ministros do Supremo sejam normais ou aceitáveis. Não são. Entre outros e óbvios motivos, porque se a prática vira regra termina por contaminar o conteúdo dos julgamentos.

Sem falar do péssimo exemplo de que o exercício da divergência dispense a presença da civilidade.

Tampouco, como disse o presidente Luiz Inácio da Silva, ajudam "a sociedade e a democracia". Muito menos, conforme o entendimento de Lula, podem ser comparados a "brigas em campo de futebol".

O presidente quis colaborar com água fria na administração do episódio. Intencionalmente não iria depreciar o valor da liberdade de expressão, da transparência nos atos de Poder e, sobretudo, da dimensão do STF e seus integrantes.

Mas acabou depreciando, com uma metáfora que não facilita a compreensão do fato. Antes, subtrai cerimônia das instituições já tão carentes de solenidade e empanturradas de informalidades.

Há determinadas situações em que a simplificação complica. Dá margem ao maniqueísmo que tem se mostrado cada vez mais ativo e disseminado na separação dos fatos e das pessoas entre representantes do "bem" e delegados do "mal".

Exemplo bem recente e nítido ocorreu a partir da Operação Satiagraha, seus desdobramentos e repercussão na CPI dos Grampos. O delegado Protógenes Queiroz tornou-se o santo guerreiro combatente do dragão da maldade incorporado na figura do banqueiro Daniel Dantas.

A partir daí, estabeleceu-se um esquema segundo o qual quem critica as ilegalidades cometidas pelo delegado na investigação em nome do "bem" é aliado do satã, identificado em toda e qualquer pessoa que tome decisões - ainda que sustentadas na legalidade - formalmente favoráveis a Dantas.

Isso apesar de as irregularidades detectadas no inquérito contra o banqueiro terem fornecido bons, senão definitivos, argumentos à defesa de Daniel Dantas.

Entre os satanizados, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes. E por quê? Porque concedeu habeas corpus ao banqueiro, porque reagiu a uma ofensiva de desmoralizar o Judiciário que levou o ex-ministro Sepúlveda Pertence - de temperamento diferente - a refugiar-se no abatimento, porque denunciou a existência (comprovada) de um esquema paralelo no aparato de segurança do Estado.

Por causa da exorbitância nos métodos, pagou o preço do carimbo de defensor dos poderosos. Basta pensar dois segundos para perceber que a ação de grampeadores clandestinos não atende exatamente às causas dos fracos e oprimidos.

E o que tem a ver o reducionismo da imagem de Gilmar Mendes a uma caricatura "maligna" com a briga no Supremo e a confusão geral de percepções?

Tem a ver com a boa imagem do ministro Joaquim Barbosa, justamente construída em sua atuação na relatoria do processo do mensalão, sua identificação com o presidente "operário" que o indicou (em contraposição à nomeação de Gilmar pelo intelectual Fernando Henrique Cardoso) e o fato de ser o primeiro, e único, ministro negro do STF.

Nada disso guarda relação direta e objetiva com esse e outros atritos protagonizados por ele no Supremo. Mas, para efeito de opinião pública, Barbosa começa encarnar a representação do "bem" no tribunal em oposição a Gilmar Mendes.

Como se um firmasse fileira com Protógenes, outro lutasse na trincheira de Daniel Dantas e ambos desfilassem seus atributos para gáudio das respectivas torcidas.

Nada mais artificial, nada mais pernicioso, nada mais maniqueísta e prejudicial a uma sociedade que se pretende autônoma em sua capacidade de decidir seu destino que a tutela da patrulha imbecilizante, infantil e passadista que condena ou absolve sem julgar por preguiça de pensar.

Regras e normas

Marcos Coimbra
Sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE

Para não afrontar um país onde as pessoas recebem salários baixíssimos, os políticos fingem que ganham pouco, mas criam complementos disfarçados para aumentar seus vencimentos. As passagens são apenas um deles
Qualquer sistema político, em qualquer lugar, funciona pautando-se por regras. É uma coisa óbvia, mas, em dias como os que estamos vivendo, precisa ser lembrada.

Não o fazendo, poderíamos pensar que o noticiário revelaria o inverso, que o sistema político brasileiro chegou a tal ponto de anomia que é como se todas as normas tivessem desaparecido. A farra das passagens aéreas seria a mais nova e a mais escandalosa evidência dessa ausência.

O uso privado da cota de passagens dos parlamentares, que tanta indignação causou, não mostra que o Congresso se tornou uma espécie de casa de mãe Joana, onde cada um faz o que quer. Seu repúdio, que levou as lideranças das duas Casas a fixar novas regras sobre o assunto, apenas sugere que havia uma norma que precisava mudar.

Também como em todos os lugares, no Brasil existem regras escritas e não escritas que regulam o funcionamento do sistema político. As primeiras são explícitas e podem ser conhecidas por todos, enquanto as outras são menos.

Dessas, há algumas praticamente secretas, às quais apenas os iniciados têm acesso. Elas dizem respeito a aspectos nada nobres da vida das instituições e das pessoas que as fazem funcionar. Conta-se que Bismarck, ilustre chanceler alemão do século 19, dizia que “para preservar o respeito pelas salsichas e as leis, não devemos observar de perto como são feitas”.

Outras não são conhecidas pelo grande público, mas todos que atuam no sistema político sabem que existem. Jornalistas, assessores, funcionários do Executivo, por exemplo, estão cansados de conhecê-las.

Dentro do sistema político, espera-se que elas sejam tão respeitadas quanto as escritas. Por isso, são normas de adesão compulsória, cujo descumprimento implica em sanções, proporcionais à gravidade da falta.

Ou seja, o que estamos chamando regras não escritas não escondem atos ilícitos. Quando um político as segue, ele não acoberta condutas que o sistema considera criminosas. De acordo com suas regras, elas são legítimas.

Quase todas dizem respeito a dinheiro. Por exemplo, sobre como são feitas e financiadas as eleições. Sobre quanto recebem os parlamentares.

Às vezes, não se fala delas para não assustar os cidadãos. Às vezes, para não encorajar hostilidades para com os políticos. Em qualquer caso, faz parte de sua natureza permanecer não ditas. Elas resistem mal à luz do sol.

Lembremos o que aconteceu em 2005, com o mensalão. Lá, algo que era (e continua sendo) uma regra não explícita universal do sistema político, a liberdade para arrecadar recursos e fazer despesas não contabilizadas nas campanhas, se tornou a prática ilícita de alguns indivíduos, depois da revelação escandalosa. Todo mundo que não foi explicitamente denunciado fingiu que nunca tinha feito aquilo, enquanto boa parte da imprensa fingia estar estupefata com as “descobertas”.

Agora, com as passagens aéreas, algo de parecido acontece. Todos sabemos que os vencimentos de deputados e senadores não se limitam ao que recebem nominalmente. Aliás, se fossem, seriam inferiores ao que profissionais com funções muito menos relevantes ganham no Brasil moderno.

Para não afrontar um país onde as pessoas recebem salários baixíssimos, os políticos fingem que ganham pouco, mas criam complementos disfarçados para aumentar seus vencimentos. As passagens são apenas um deles.

A norma não explícita sobre as passagens as considera parte do salário, portanto algo que o parlamentar pode gastar como quiser. Nenhum dos que as usou dessa maneira cometeu um crime ou sequer uma irregularidade. Ninguém pode ser penalizado por seguir uma regra, mesmo se não estiver escrita.

Não se está aqui defendendo o modo como o sistema opera nesse particular. Sua disfuncionalidade é visível, até mesmo pelo desgaste que o episódio provocou. Mas nada se ganha com o moralismo das críticas que ouvimos nos últimos dias.

O primeiro passo para sair do problema é discuti-lo às claras. Que tal parar de fingir?

Risco democrático

Panorama Econômico :: Míriam Leitão
DEU EM O GLOBO

A coluna de quarta-feira começou assim: "A democracia brasileira está funcionando muito mal". Era otimismo. O barraco no Supremo, no dia seguinte, foi um sintoma de que o país pode estar em situação pior. Crises institucionais são normalmente conflitos entre os poderes. No nosso caso, a crise institucional é dentro de cada um dos poderes. Eles estão se perdendo em seus labirintos.

O Senado tem, atualmente, quase o mesmo número de senadores biônicos que tinha no governo militar. A Câmara dos Deputados não parece ter função institucional, vive em torno de si mesma, discutindo e defendendo seus vários benefícios e salários indiretos. O Supremo Tribunal Federal toma decisões confusas, seus ministros têm refregas públicas desconcertantes e seu presidente tem falado demais. O Executivo tem uma lista extensa e perigosa de erros e omissões.

O episódio do bate-boca entre os ministros do Supremo foi grotesco e marcou a semana. Mas ele foi apenas um sintoma do mau funcionamento da instituição. Pior que isso são as decisões estranhas dos tribunais superiores tomadas nos últimos tempos, como a proibição de uso de algema, a interpretação de que o criminoso só vai preso depois de esgotado o último recurso - que abre caminho para as chicanas e manobras dos advogados habilidosos e caros - e a ideia esdrúxula de que o derrotado na eleição deve ser empossado no lugar de governadores afastados.

O ativismo judicial da Suprema Corte deveria se limitar aos casos que estão sendo julgados, que já são muitos. Os casos das células-tronco ou da demarcação de terras indígenas mostraram uma decisiva atuação do órgão máximo do Judiciário. Nestas e em outras situações em que o país esteve dividido, a Corte falou pelos autos e encaminhou a solução.

O Supremo Tribunal Federal fala pelos autos, não pelos cotovelos. Concordando-se ou não com ideias defendidas pelo presidente Gilmar Mendes, o fato é que, quando ele emite tantas opiniões sobre assuntos tão diferenciados, acaba criando uma confusão institucional. Pelo cargo que ocupa, cada palavra dele é ouvida como uma manifestação do Judiciário.

Por outro lado, o Judiciário sofre o efeito da omissão do governo em áreas pantanosas. Agora, por exemplo, estão sendo julgadas - diante de uma espantosa omissão do Executivo - as ações dos correntistas contra os bancos por causa das decisões tomadas pelos planos econômicos. Elas exigem dos bancos indenizações equivalentes a 65% do patrimônio liquido de todas as instituições financeiras, inclusive as estatais, como Banco do Brasil e Caixa Econômica. O governo lavou as mãos porque o assunto é impopular e quer que o Supremo tire a brasa do fogo. Governos não podem se omitir num caso que põe em risco a solidez do sistema bancário no meio de grave crise financeira internacional.

O Legislativo é fonte de escândalos e dissabores. No governo Geisel, em abril de 1977, o Congresso foi fechado e um pacote autoritário estabeleceu que um terço dos senadores seria indicado pelo governo. Atualmente, quase 20% dos senadores não receberam voto algum dos eleitores, mas apenas o do titular da cadeira. E como diz o indigesto biônico Wellington Salgado, é melhor ser suplente do que disputar eleições.

A Câmara dos Deputados discute a defesa de si mesma e de suas várias formas de remuneração: o uso extravagante da verba de passagens aéreas, a aplicação da verba indenizatória, a manutenção dos mais variados "auxílios". Tudo é estranho ao cidadão comum. Como entender que, no Brasil, paga-se um volume mensal de dinheiro para "indenizar" os deputados pelo exercício do mandato. Melhor acabar com a hipocrisia, definir-se o salário do parlamentar, revogando-se os ganhos indiretos e suas falsas justificativas.

Um taxista me disse recentemente:

- O Maradona disse que cada gol da Bolívia foi um "golpe em mi corazón". Pois eu digo: cada decisão desse Congresso é um "golpe em mi corazón".

Os parlamentares fazem as mais disparatadas declarações que só mesmo um coração forte para conseguir aguentar. "Estamos ferrados", disse um deputado sobre o controle das passagens aéreas. "Ele não vem trabalhar aqui porque é muito feio", disse um senador sobre seu funcionário fantasma. Soterrado por medidas provisórias, olhando para o seu próprio umbigo, fora de qualquer agenda relevante, o Congresso Nacional hoje, para o cidadão, é desimportante. Amanhã, será visto como um estorvo.

No Executivo, a coleção de impropriedades ditas pelo presidente da República é imensa. Com os ditos, quase já nos acostumamos. Piores são os feitos. Os gastos excessivos com despesas de custeio, os 300 mil funcionários públicos contratados, a ocupação partidária da máquina pública que não respeita nem os melhores centros de pesquisa, o uso das estatais para sustentar um projeto partidário, o uso dos bancos públicos no socorro a empresas que tomaram decisões empresariais erradas.

O cidadão que tudo paga, e tudo vê, pode se perguntar se vale a pena manter isso. A História não se repete. Os militares não sairão dos quartéis. Isso já vivemos e foi o começo de uma longa noite. Agora, o risco é o desinteresse e a revolta silenciosa pelos contínuos golpes no corazón. Isso cimenta a pista de algum aventureiro, algum "salvador da pátria", que tenha eloquência populista, soluções simplistas e maus propósitos.

Lembranças do nazi-fascismo

Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO(PE)

A Era da Demonização encontrou o intérprete ideal e a vitrine perfeita para ser entendida e visualizada. O insano discurso do presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, em Genebra, na abertura da conferência da Organização das Nações Unidas sobre o racismo, é uma das peças mais racistas e mais intolerantes desde o suicídio de Joseph Goebbels em maio de 1945.

Na véspera da rememoração dos 70 anos do início da Segunda Guerra Mundial (deflagrada pelo delírio racista), esta afronta à noção da igualdade dos seres humanos exemplifica o nível de ressentimento que ainda prevalece em certas partes do mundo, apesar dos avanços da ciência, do conhecimento e da razão.

A arenga do líder iraniano negou e minimizou o Holocausto – obra máxima do racismo hitlerista –, retomou a viciosa comparação entre o nacionalismo judeu – o sionismo – com racismo e verberou os valores ocidentais. Foi prontamente repudiada por mais de 30 países e também pelo secretário-geral da ONU que chegou a ameaçar o orador com "medidas disciplinares".

Ahmadinejad ignora que a Declaração Universal dos Direitos Humanos é um produto do odiado Ocidente, assim também a criação da Organização das Nações Unidas, no fim da Segunda Guerra Mundial, com o objetivo precípuo de erradicar do cenário mundial a alternativa da guerra e obrigar os estados-membros a conviver pacificamente apesar de eventuais divergências.

A resposta firme do governo brasileiro talvez obrigue o pequeno déspota a comportar-se como chefe de Estado quando aqui chegar dentro de duas semanas. A convocação do embaixador do Irã ao Itamaraty para receber uma nota formal de repúdio tem na linguagem diplomática um grau de veemência que não deve ser desconsiderado. O que não significa um apoio brasileiro às equivocadas e nocivas posições do governo israelense no tocante à imperiosa necessidade de se criar um Estado Palestino.

A delirante demonização embutida no discurso de Ahmadinejad no dia 20 de Abril não é uma iniciativa isolada. Faz parte de uma ardilosa investida iniciada pouco antes (26 de março), no Conselho de Direitos Humanos da ONU patrocinada pelo Paquistão, Venezuela e Bielorússia para coibir o que designaram como "difamação religiosa".

O democrático trio e seus invisíveis apoiadores (entre os quais se alinha o Irã), pretende, na realidade, considerar como "blasfêmia" e "heresia" grande parte do ideário da rede mundial de defensores dos direitos humanos.

Com a justificativa de proteger a liberdade religiosa tenta-se santificar o despotismo teocrático. Demonizar a democracia e incapacitá-la como defensora do direito de crer e descrer, essa é a manobra. Como no Ocidente forjou-se e consagra-se o princípio democrático e isonômico da separação entre Religião e Estado, o Ocidente tornou-se o alvo preferencial de fanáticos como Ahmadinejad.

E quanto mais se obsoleta se torna no Ocidente a teoria da inevitabilidade do "choque das civilizações" mais insistem em perseguir e satanizar os que advogam a secularização e a democratização dos Estados. A expressão atribuída ao americano Samuel Huntington, na realidade, comanda a lógica dos novos cruzados e velhos dogmáticos espalhados pelo mundo afora.

Antes de embarcar para o Brasil convém que o presidente Ahmadinejad faça um programa de imersão para encontrar a paz de espírito que tanto carece. Será aqui recebido com respeito, mas antes é preciso que exorcize os seus próprios demônios.

Não usamos sapatadas, mas sabemos repudiar com firmeza a tentativa de reviver as doutrinas que deveriam ter sido sepultadas no bunker de Berlim em maio de 1945.

» Alberto Dines é jornalista

Governo pode ganhar tempo para mexer na caderneta

Sérgio Gobetti, Fábio Graner e Tânia Monteiro, Brasília
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Um corte mais moderado da taxa de juros na próxima reunião do Copom pode dar mais tempo para o governo decidir o que fazer com as regras de correção da caderneta de poupança.

Hoje, a poupança tem rendimento fixo de 0,5% ao mês mais variação da Taxa Referencial (TR). No ano, essa regra está rendendo cerca de 7,3% ao ano, livre de impostos, enquanto a maioria dos fundos de renda fixa disponíveis aos investidores está rendendo cerca de 9% ao ano após o desconto do Imposto de Renda (IR) e das taxas de administração.

Se a Selic cair de 11,25% para 9,75%, é provável que os fundos oferecidos pelos bancos empatem em rentabilidade com a poupança. E a queda da Selic até junho deve ser maior ainda. Por isso, o governo cogita restabelecer a cobrança de IR sobre depósitos de poupança maiores que um determinado piso, entre R$ 5 mil e R$ 20 mil.

De acordo com os dados do BC, 92% dos poupadores têm menos de R$ 5 mil aplicados na caderneta. Esse porcentual sobe para 96% ou 97% nas aplicações até R$ 15 mil. Ou seja, a princípio, a maioria dos poupadores estaria protegida.

O problema é que a medida é extremamente delicada politicamente e já rendeu ataques públicos ao governo, como no programa de TV do PPS, que comparou a proposta do governo Lula ao confisco realizado pelo governo Collor. Em 1990, o ex-presidente bloqueou os depósitos de poupança e de outras aplicações financeiras acima de determinado valor para tentar reduzir a moeda em circulação e conter a hiperinflação.

O Palácio do Planalto classificou como "irresponsabilidade" as declarações dos parlamentares do PPS. Mas o episódio serviu para chamar a atenção do presidente sobre a repercussão que a mudança de regras da poupança poderia ter.

Se o Copom decidir reduzir a Selic em 1 ponto porcentual, o governo pode esperar um pouco mais para preparar o anúncio de sua decisão ao público. O temor é que, sabendo da eminência da decisão, muitos investidores troquem os fundos pela poupança até o nível de isenção de imposto.

Meirelles vê ''excesso de otimismo'' no Brasil

Rolf Kuntz, Washington
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, voltou a advertir para o que considera "excesso de otimismo" no Brasil. Segundo ele, ainda não há sinais suficientes de retomada da economia brasileira, apesar dos indicadores positivos de alguns setores. "Devemos esperar mais sinais para falar em recuperação. É cedo para declarar que o trabalho está pronto."

O Brasil, segundo Meirelles, deverá retomar o crescimento antes de vários outros países, porque sua economia está resistente e medidas estão sendo tomadas para estimular a atividade. Mas ele não se arriscou a opinar sobre a situação da América Latina, como havia feito na véspera o diretor do Departamento do Hemisfério Ocidental do FMI, Nicolás Eyzaguirre. Para o diretor do FMI, a região, incluindo o Brasil, já bateu no fundo do poço. Quanto ao País, Meirelles lembrou o perigo dos surtos ciclotímicos de otimismo e de pessimismo.

Meirelles participou na sexta-feira da reunião de ministros de Finanças e autoridades monetárias do G-20, evento paralelo à reunião do FMI. Foi o primeiro encontro em nível técnico depois da conferência de chefes de governo realizada em Londres no dia 2. É cada vez mais clara, segundo ele, a importância do G-20 na formulação de políticas. Decisões de importância sistêmica, acrescentou, não podem mais ser tomadas num fórum restrito como o G-7 (formado por EUA, Japão, Canadá, Alemanha, Reino Unido, França e Itália).

À noite, os presidentes de bancos centrais reuniram-se na sede do Federal Reserve e discutiram sobre políticas de recuperação do setor bancário e de regulação do sistema financeiro.

Da necessidade à virtude

Rubens Ricupero
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Qual será o evento definidor que porá Obama à prova? Um novo atentado nos EUA, um ataque israelense contra o Irã?

"QUIERO PAZ , quiero paz, quiero paz", a peroração do imperador Carlos 5º poderia servir de modelo a todos os discursos que o presidente Obama tem feito sobre temas internacionais. Se o antecessor se autodesignava "war president", ele teria razão para se chamar de presidente de paz.

Não se trata apenas da opção pela diplomacia como método preferencial de resolver conflitos ou da vocação pessoal para o diálogo e a cooperação. A onipresença paralisante da crise econômica, a prioridade de recompor a coesão social duramente provada por 20 anos de desigualdade crescente, a corda dos recursos militares esticada até a ruptura no Iraque e no Afeganistão não lhe deixam alternativa no fundo. Até agora as circunstâncias ajudaram. Não houve ataque terrorista como o do 11 de Setembro nem operação do tipo do desembarque em Cuba nos primeiros dias do governo Kennedy, mas estamos só no começo. Com Bush filho, os seis meses inaugurais davam a impressão de governo desinteressado dos assuntos mundiais. Foi Bin Laden quem mudou o rumo da história e criou as condições que ajudaram a imprimir àquele governo seu caráter indelével.

O atentado obrigava a uma reação avassaladora, mas não predeterminava a forma que ela assumiria. Tanto assim que, a princípio, Washington se valeu da natural solidariedade mundial para que o Conselho de Segurança da ONU autorizasse a invasão do Afeganistão como primeiro passo da cooperação internacional contra o terrorismo. A guinada para o unilateralismo e o catastrófico erro estratégico de priorizar a guerra contra o Iraque ocorreram somente meses depois, no famoso discurso sobre o "eixo do mal".

O precedente serve para demonstrar que não é a circunstância externa a que define o caráter da estratégia de um governo. A coerência e a efetividade da resposta às circunstâncias dirão em última análise se o governo esteve à altura do desafio. Posto à prova, Bush fracassou em tudo. Deixou inacabada a liquidação da ameaça terrorista, desonrando-se com a tortura. Apesar de estar durando mais que a Segunda Guerra Mundial, a ocupação não estabilizou o Afeganistão e começa a desestabilizar o Paquistão. O desastre se completa com o predomínio regional do Irã, saldo estratégico da Guerra do Iraque.

A reconstrução da estratégia passa pela atual etapa discursiva de Obama, que é a parte mais fácil. Depois de um governo extremista, não custa muito repor o pêndulo na posição normal da qual não devia ter saído. Os discursos e os gestos em direção à Rússia, à China, ao Irã, os emissários para a questão palestina e o Afeganistão, os acenos à Cuba, à Venezuela logo esgotarão a fase simbólica.

O problema é que isso não basta para mudar a realidade. O míssil da Coreia do Norte, as provocações iranianas, a deterioração no Paquistão e no Afeganistão, o endurecimento do novo governo israelense, o agravamento do aquecimento global preparam a hora da verdade de Obama. Qual será o evento definidor que o porá à prova? Um novo atentado no coração dos EUA, um ataque preventivo israelense contra o Irã, um fato consumado nuclear nesse país? O teste virá, cedo antes que tarde. Só então é que começaremos a perceber se a esperança despertada pela eleição e pelos primeiros tempos de Obama frutificará em soluções verdadeiras para os problemas que afligem o mundo.

Rubens Ricupero, 72, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.

O Copom afia a tesoura

Celso Ming
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Se na sua reunião de quarta-feira o Copom confirmar novo corte de 1 ponto porcentual ao ano, como aparentemente espera a maioria dos analistas, os juros básicos (Selic) cairão a 10,25% ao ano, nível mais baixo desde a instituição do regime de metas de inflação, em 1999.

Terá sido um corte total de 2,5 pontos porcentuais desde janeiro deste ano, quando se iniciou o atual ciclo de afrouxamento monetário. Como a inflação deste ano aponta para alguma coisa entre 4,0% e 4,5%, conclui-se que os juros reais vão agora para a casa dos 6% ao ano.

O Brasil continua entre os países que praticam os juros mais altos do mundo. Mas, apesar das renitentes reclamações de excesso de conservadorismo do Banco Central (BC), não dá para dizer que os cortes foram irrelevantes. Juros altos não impediram o forte crescimento da atividade econômica em 2008 e não são a causa da desaceleração deste ano.

Anteontem, o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, reconhecia que o Copom vai praticando uma política monetária anticíclica. Essa não deixa de ser uma afirmação que tem seu lado surpreendente, uma vez que o entendimento normal dessa expressão é de que se trata de usar instrumentos de política econômica para compensar um desequilíbrio na atividade produtiva, e não propriamente para compensar desequilíbrios no comportamento dos preços. Assim, se o momento tende à retração da atividade econômica, acionam-se políticas destinadas a reativá-la. Também é política anticíclica frear a produção quando ela está forte demais.

É uma afirmação surpreendente na medida em que o mandato do Banco Central se limita a usar a política monetária (política de juros) para empurrar a inflação para dentro da meta: aumentar os juros quando a inflação tende a subir; e reduzir os juros quando tende a resvalar para um ponto muito abaixo do centro da meta que, neste ano, é de 4,5%.

Boa pergunta consiste em saber por que o Copom não repetirá quarta-feira a dose mais acentuada de corte dos juros, de 1,5 ponto porcentual, decidida no dia 11 de março. Razões para isso parecem fortes: a inflação anual está mais fraca e a queda das exportações e o crescimento moderado do consumo contribuem para isso; a indústria opera com crescente capacidade ociosa e o desemprego, como mostrou o IBGE, está aumentando. Enfim, se não se nota nenhuma pressão inflacionária significativa, por que não baixar ainda mais os juros?

O Banco Central vai defender a posição de cortes mais moderados com o argumento já conhecido: o de que o afrouxamento providenciado até aqui ainda não produziu seus efeitos, na medida em que levam em torno de seis meses para aparecer.

Certamente omitirá a motivação principal, a de que executa uma estratégia que procura garantir uma inflação declinante às vésperas das eleições presidenciais de 2010. Seria eleitoralmente prejudicial ao governo se lá por agosto ou setembro (ou mesmo antes) o BC tiver de voltar a puxar pelos juros para combater uma estocada da inflação. Daí o cuidado de adotar uma dosagem dos juros mais atenuada agora e, principalmente, nos próximos meses. Se nada de surpreendente acontecer, provavelmente já em sua reunião de junho o Banco Central preferirá guardar a tesoura e esperar para ver.

Confira

Resolvido - O presidente da GM do Brasil, Jaime Ardila, informou que a GM americana resolveu problemas tecnológicos e econômicos para a produção de etanol de celulose e de lixo.

Assim, a produção de etanol de milho ganha concorrência e desaparecerá a principal razão (custos altos de produção) para que os Estados Unidos continuem protegendo seu mercado interno do etanol importado.

Até agora, experiências brasileiras não foram conclusivas. Quando a nova tecnologia estiver disponível, usinas brasileiras usarão o bagaço da cana para produzir etanol, o que aumentará ganhos de escala.

Ação estatal evitou pânico no Brasil

Vinicius Torres Freire
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Subsídio ao consumo, crédito de bancos estatais, ajudas do BNDES e dinheiros vários do BC evitaram colapso recessivo

O BRASIL teria mergulhado em parafuso recessivo não fosse a parte mais certeira da intervenção estatal -sim, do governo Lula. Os bancos públicos sustentam 80% do aumento do crédito desde outubro. Sem subsídio ao consumo, por meio de corte de impostos, teria havido colapso maior no emprego industrial. O pânico que se alastrava em dezembro, com o colapso das vendas e do emprego nas montadoras, foi contido. Mesmo com o investimento público a passo de cágado.

Sem os dólares do Banco Central e garantias de empréstimos para bancos menores, haveria crise também na banca nacional (perigo que, "nas internas", se admite agora, passado o susto). Teria sido maior a asfixia de empresas endividadas no exterior e das metidas em aventuras cambiais.

Mais controverso, via BNDES o governo socorreu alguns grandes grupos empresariais; via salário mínimo e INSS, transfere renda para pobres, mais propensos a consumir.

Mas a ação responsável da banca estatal tem limite; o gasto público está no limite da responsabilidade. Divertido: a crítica da banca à lassidão fiscal baixou bem de tom. Quando falta pão, o governo tem razão?

Dados de março indicaram despiora relativa. O crédito saiu do pântano em que viveu de novembro a fevereiro, mas cresce em ritmo bem inferior ao dos meses de 2008 anteriores à crise, mesmo descontada a parte insustentável dessa balada.

O emprego ainda cai em relação a 2008, mas em ritmo menor (dados do IBGE, vide gráfico). Mas o IBGE cobre apenas seis metrópoles. Não conta agruras do Centro-Oeste e do Sul dos frigoríficos, por exemplo; de Minas, Rio e Pará de minérios e siderurgia; do interior paulista exportador de aviões e da abalada indústria metal-mecânica, de calçados etc. No caso do trabalho formal, dados nacionais, março ficou num modesto azul; mas em março de 2008 foram criados 171 mil empregos a mais.

O desemprego industrial ainda vai contagiar serviços e comércio. O estímulo fiscal à indústria não deve ajudar tanto daqui por diante. Em março, a indústria deve ter crescido de 1,5% a 2% ante fevereiro, mas recuado 8,5% ante março de 2008. Nesse passo, no final de 2009 a indústria terá crescido nada sobre 2008. A queda do valor das exportações industriais está em 30% (até meados de abril; e em 18% para o total das exportações). O comércio mundial deve cair de 9% a 11%.

A primavera dos mercados desponta, alardeia a banca global. Mas o FMI previa em novembro crescimento de 1,7% para o mundo; em abril, vê queda de 1,3% (a "Economist Intelligence Unit", EIU, prevê baixa de 3%). O crescimento do Brasil foi revisto para baixo: -1,5% (EIU) e -1,3% (FMI). Os brasileiros mais sensatos acreditam em PIB estagnado; no governo, alta de 1% a 2%.

São divergências brutais. Mas não há dúvida sobre o seguinte: não é hora de reduzir o ritmo de queda de juros.