domingo, 21 de junho de 2009

O PENSAMENTO DO DIA

“Temos o dever de visar à construção de uma ordem internacional marcada por justiça e solidariedade, que conjugue pacífica convivência entre os povos. E de favorecer uma melhor definição das políticas de asilo.”

Giorgio Napolitano, PCI/PD, Presidente da Itália "Mensagem para o dia dos refugiados".
Fonte: L'Unità, 20 jun. 2009.

Esperando Obama

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


Nas discussões preparatórias para a reunião de Copenhague, em dezembro, quando serão definidas as novas metas de redução da emissão de gases de efeito estufa na atmosfera para 2013, em substituição ao Protocolo de Kyoto, a parte dos países desenvolvidos é a que se encontra mais atrasada. Na dos países em desenvolvimento já existe até mesmo um texto base para discussão, embora muito extenso e com diversos pontos incongruentes que terão que ser compatibilizados nas próximas reuniões.

O substituto do Protocolo de Kyoto, que está em vigor até 2012, está muito mal parado, na avaliação do embaixador extraordinário para mudança do clima Sérgio Serra, porque há países como o Japão que estão mesmo é querendo implodir o sistema de Kyoto; e, ao mesmo tempo, todo mundo está esperando para ver o que os Estados Unidos vão fazer.

O relatório da Global Change Research Project (Projeto de pesquisa sobre a mudança global), um consórcio de agências governamentais como a Administração Nacional Oceanográfica e Atmosférica, e da Environmental Protection Agency, (Agência de Proteção Ambiental), que estuda as alterações climáticas provocadas por emissões do dióxido de carbono geradas pelos seres humanos, divulgado nos Estados Unidos com a advertência de que os efeitos já estão sendo sentidos em diversos setores e regiões do país, é considerado um estudo sério.

Pode ter sido divulgado agora, na avaliação de analistas, para apoiar a posição do presidente Barack Obama, que encontra muitas resistências no Congresso para o projeto de lei que vai criar o marco regulatório da política do clima americano.

Ninguém sabe se os Estados Unidos chegarão a um acordo interno antes da reunião de dezembro em Copenhague. As informações são de que a lei passa na Câmara, mas que no Senado a situação é mais difícil.

O embaixador Sérgio Serra diz que a comunidade científica e diplomática que participa das negociações admite que, se houver um impasse, seja adiada um pouco a definição final para depois do recesso do Legislativo nos Estados Unidos, para o ano que vem.

Segundo ele, já está sendo pensado um plano B para a reunião de Copenhague, para que não se perca o impulso, sem, ao mesmo tempo, abrir mão da adesão dos Estados Unidos. "Talvez possamos chegar a parâmetros básicos, mas deixemos os números para serem definidos três meses depois, em uma nova conferência para aprovar as metas", avalia.

As reuniões preliminares continuarão em agosto, também em Bonn, onde se realizou a mais recente, que se encerrou na semana passada. Em começo de outubro haverá outra em Bangcoc e outra mais em novembro, em Barcelona.

Além disso, há a reunião do G8 + 5 na Itália em julho, quando a questão do clima entrará na pauta, embora a prioridade deva ser a crise econômica, e o secretário-geral da ONU está convocando uma reunião de alto nível para setembro, depois da abertura da Assembleia Geral, para tratar especificamente do tema.

Nesses encontros já havidos, há uma crítica latente à falta de ambição dos números que estão no projeto de lei em tramitação no Congresso americano, embora setores importantes do movimento ecológico considerem que as metas propostas são um bom começo, depois de oito anos de paralisação dos Estados Unidos.

O Congresso americano havia aprovado em 2007 uma lei que determinava melhora de 40% nos padrões de consumo de combustível de carros até 2020. Obama antecipou a meta em quatro anos, adotando os mesmos padrões que a Califórnia, estado que era boicotado pelo governo Bush em acordo com as montadoras.

Com essa medida, o consumo de petróleo dos Estados Unidos deverá cair, reduzindo as importações, e serão emitidos menos gases de efeito estufa.

O projeto de lei que tramita no Congresso americano prevê que as emissões de carbono dos Estados Unidos deverão cair cerca de 15% abaixo do nível de 2005, meta semelhante à adotada pela União Europeia.

O problema é que eles tomam por base o ano de 2005, mas, se a base for o ano de 1990, que é o paradigma para os países desenvolvidos, a redução proposta pelos Estados Unidos é muito tímida.

Os europeus estão dizendo que podem chegar a 20% de redução, e ir a 30% até 2020.

Tudo dependendo dos Estados Unidos, que, no entanto, não devem chegar até 30% de redução, o que seria dar um salto muito grande para quem não fez nada até agora por resistência do Congresso, que não ratificou o Tratado de Kyoto.

Mas pode ser que o governo Obama apresente um plano de longo prazo mais ambicioso. Em Bonn, a negociação está correndo em dois trilhos: um refere-se ao protocolo de Kyoto, as metas dos países desenvolvidos a partir de 2013, e o outro ao Plano de Ação de Bali, que trata dos países em desenvolvimento e suas ações de mitigação que vão negociar.

Os Estados Unidos entram nesse grupo porque estão atrasados no processo. No caso deles, há um parágrafo que diz que os compromissos que vierem a adotar devem ser comparáveis às metas dos países desenvolvidos.

O novo estudo do governo sobre aquecimento global - que confirma que a mudança climática causada pelo dióxido de carbono já tem um "impacto visível" nos Estados Unidos, e enumera graves problemas como as secas, o aumento no número de inundações e de pragas como mosquitos como consequências do aquecimento global - pode estimular a que o Congresso americano tenha uma posição mais favorável à política climática do governo Obama.

Tanto vale quanto pesa

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Desde a famosa entrevista do senador Jarbas Vasconcelos à revista Veja, em fevereiro, dizendo que o PMDB "não tem bandeiras" e, em sua maioria, só se interessa por corrupção e fisiologismo, dirigentes do partido passaram a se preocupar com uma possível queda no valor de suas ações no mercado eleitoral.

Até então, o PMDB era visto como o mais cortejado, o mais poderoso, mais espetacular e fundamental aliado das eleições de 2010, disputado por candidatos de governo e de oposição.

Saíra das eleições municipais valorizado por importantes e abundantes vitórias, acabara de eleger os presidentes da Câmara e do Senado, em suma, um troféu intensamente cobiçado.Naquele momento ninguém falava dos seus decantados defeitos, só se celebravam suas qualidades de legenda mais bem organizada e presente em todo o País. Era a glória.

Mas aí veio Jarbas Vasconcelos e lembrou em detalhes explícitos a metodologia pela qual o PMDB galgara degraus em direção ao topo.

Na ocasião, houve mesmo quem interpretasse a manifestação como um ato deliberado do senador, um assumido aliado da candidatura José Serra no PSDB, para afastar o governador de Minas, Aécio Neves, que, segundo a direção do PMDB, naquela altura retomava conversas sobre a possibilidade de se filiar ao partido para se candidatar à Presidência.

Aécio, na época, negou não só a intenção de abandonar a seara tucana, como também a existência de qualquer conversa nesse sentido com o PMDB.

O tempo tanto confirmou a versão de Aécio, quanto corroborou as preocupações dos dirigentes do PMDB.

As desventuras desabaram em série sobre o partido: denúncia de corrupção na Funasa, na voz do ministro da Saúde, repúdio dos funcionários de Furnas às investidas pemedebistas sobre o fundo de pensão da empresa, reclamações do PT contra a ambição do companheiro de aliança e, para completar a fase infernal, a crise no Congresso.

Os escândalos sem fim pegaram o PMDB no comando das duas Casas. Não havia, portanto, como empurrar a conta para o vizinho. Na Câmara, o presidente licenciado do partido, Michel Temer, ficou à frente das cobranças sobre a farra das passagens aéreas. E, no Senado, José Sarney viu seu sonho de coroar a carreira em figurino de majestade virar um pesadelo de infortúnios.

Os concorrentes de 2010 continuam a cobiçar o PMDB. O partido segue sendo um parceiro valioso. A questão que se impõe internamente, no entanto, é a seguinte: até que ponto seu cacife foi desvalorizado?

Há valor na conquista do PMDB. Mas, tirando o tempo de televisão proporcional ao tamanho de suas grandes bancadas no Congresso, o que tem o partido a oferecer?

Será ainda uma boa companhia de palanque ou já terá se tornado um parceiro pesado, dono de má fama difícil de carregar?

Depende do uso pretendido. Para as funções de cozinha, o horário gratuito, vale muito. Mas, para apresentar às visitas (o eleitorado), há fortíssima controvérsia.

Sinuca

A solução para o caso dos atos secretos, reconheça-se, não é fácil. Requer firmeza e certa dose de ousadia.

Pelo seguinte: os atos existem, as assinaturas dos executores estão expostas, mas ainda falta apontar os mandantes. Senadores, obviamente.

Como há parlamentares que realmente os desconheciam, não faz sentido responsabilizar o colegiado que, no entanto, está levando a fama. Isso tende a aumentar a tensão interna e a pressão pela identificação dos culpados.

Tempo que ruge

Depois de decidir à revelia do partido que Dilma Rousseff seria a candidata presidencial do PT, Lula invocou o direito de resolver, em nome do PMDB, que o candidato a vice na chapa, deve ser Michel Temer.

Como já absorveu também a tarefa de escolher os Estados onde o PT terá, ou não, candidato a governador, não seria surpreendente se o presidente pretendesse também interferir nas candidaturas estaduais do PMDB.

Lula centraliza a armação do jogo de 2010, a fim de evitar que os partidos envolvidos percam tempo e energia em processos de discussão e até disputa internas. Teria, com isso, uma vantagem em relação à oposição, cuja decisão - pelo menos em tese - ainda depende da composição de forças no PSDB.

Do ponto de vista estritamente pragmático, o sistema pode ser eficaz. Mas, sob a ótica da autonomia e, portanto, do fortalecimento dos partidos, o modelo autocrático resulta em retrocesso.

De todo modo, Lula luta contra o tempo, pois uma coisa é a docilidade dos partidos aliados agora, a 15 meses da eleição. Em anos anteriores, nessa altura não havia candidatos dados como certos.

Outra situação bem diferente é aquela pauta pela conta de conveniência feita à medida que esse prazo encurta na proporção direta da redução do tempo de permanência no poder do governante em fim de mandato. Daí a pressa.

Democratizar a democracia

Marco Maciel
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

A democracia que temos e a democracia que queremos dependem sobretudo de nós e de nossa participação

POUCO MAIS de dez anos antes de sua morte, o professor Norberto Bobbio enumerava uma longa lista de "promessas não cumpridas" da democracia.

Entre elas, destacava a supremacia dos interesses sobre a representação política, a persistência das oligarquias, a limitação do espaço público da democracia, a existência de poderes invisíveis e a falta de educação política dos cidadãos. Parodiando os principais autores que abordam o problema, poderíamos dizer que, muito provavelmente, as democracias são tão mais democráticas quanto mais intensa é a participação política. Em "Os Fundamentos da Democracia", Hans Kelsen afirma que a característica essencial desse regime é a participação no governo.

Democracia, diz ele, "não é uma fórmula particular de sociedade ou uma concreta forma de vida, mas sim um tipo específico de procedimento ou de técnica, em que a ordem social é criada e aplicada pelos que estão sujeitos a essa mesma ordem, para assegurar a liberdade política, entendida como autodeterminação".

Os conceitos de Kelsen nos levam, necessariamente, à distinção entre democracia representativa e democracia participativa. A teoria da representação é calcada na premissa de que os que tomam as decisões na democracia representativa são os representantes livremente escolhidos pelos eleitores. Mas isso apenas não afiança que essas leis sejam justas e equitativas e expressem o interesse comum. Justiça, equidade e interesse comum são predicados cuja presença se dá na exata proporção em que o processo adotado é o da democracia participativa.

Considerado sob esse aspecto, o fundamento ético da representação política e seu papel insubstituível consiste na necessidade de enfrentar e superar as novas demandas sociais. Em outras palavras, o desafio reside em perseguir sistemas melhores e mais eficientes, capazes de responder de forma eficaz às demandas da sociedade. Quando isso não corre, o resultado é o surgimento de crises que se sucedem sem que, muitas vezes, saibamos qual a sua causa.

E, como dizia Ortega y Gasset na crise dos anos 30 em seu país, quando "não sabemos o que se passa conosco, isso é precisamente o que se passa: não sabemos o que se passa conosco". As relações entre democracia e participação política guardam intensa relação com a distinção formulada por Georges Burdeau entre o que ele chamou de democracia governante e democracia governada. A primeira é a democracia representativa, em que os cidadãos não decidem as questões de seu interesse, mas escolhem os que devem decidir por eles. E a democracia governada é aquela em que a representação política se dobra à vontade popular, tornando-a, como ele definiu, "demo dirigida".

O que faz a diferença entre ambos os conceitos é que, em um, o eleitor escolhe os que decidem e, no outro, o eleitor decide e não escolhe. O que Burdeau chama de democracia governante, os demais especialistas chamam de democracia plebiscitária. Com toda razão, Stuart Mill, na crítica à obra de Tocqueville, argumenta que de nada servem o sufrágio universal e a participação no governo nacional se o indivíduo não foi preparado para essa participação a um nível local, já que é nesse nível que se aprende a governar.

Em outras palavras, para que os indivíduos em um grande Estado sejam capazes de participar efetivamente do governo da "grande sociedade", as qualificações necessárias subjacentes a essa participação devem ser fomentadas e desenvolvidas no plano local.

Essa advertência serve em especial para um país como o Brasil, em que as sucessivas experiências de reformas políticas jamais se consumam, por não serem as inovações testadas nos municípios e só depois estendidas às demais esferas do poder.

Só a democracia garante a liberdade, busca a igualdade e tem como pressuposto a ética como princípio, as eleições como meio e o aperfeiçoamento da sociedade como fim. A democracia que temos e a democracia que queremos dependem sobretudo de nós e de nossa participação. Como participar é outra lição que espero seja útil a todos nós. Só se aprende a participar participando.

É isso que defendo, porque essa é a minha mais profunda convicção.

Marco Maciel, 68, é senador pelo DEM-PE e membro da Academia Brasileira de Letras. Foi vice-presidente da República (1995-1998 e 1999-2002), ministro da Educação (governo Sarney) e governador de Pernambuco (1978-1985).

Lula Colunista

EDITORIAL
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O presidente Lula é um reconhecido "fenômeno de comunicação" graças à sua capacidade de falar ao povo numa linguagem que o povo entende - o que sua popularidade recorde comprova. Desde que o líder metalúrgico do ABC começou a aparecer nos veículos de comunicação de massa - a partir de sua famosa entrevista no programa Vox Populi da TV Cultura -, tornou-se ele um fenômeno de mídia, ocupando mais espaço na imprensa do que qualquer outra personalidade de nossa história política contemporânea, batendo outros fortes concorrentes midiáticos, como Jânio Quadros e Juscelino Kubitschek - e é claro que aqui não se consideram a forma e a substância do discurso de nenhum deles.

Isso não bastasse, o investimento em publicidade do governo Lula tem crescido de forma espantosa. Estes são dados divulgados pelo ministro da Comunicação Social, Franklin Martins. Até 2003 as verbas de publicidade do governo federal estavam concentradas em 499 veículos de comunicação - jornais e rádios - de 182 municípios. Em 2008, essas verbas foram distribuídas para nada menos do que 5.297 órgãos de comunicação, em 1.149 municípios - um aumento, portanto, da ordem de 961%! Como tudo isso - e os mais de 80% de popularidade - ainda parece insuficiente ao Planalto, o presidente Lula estreará, no dia 7 de julho, sua coluna semanal das terças-feiras, com o título O Presidente Responde.

Segundo anuncia a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), a coluna terá o formato de perguntas e respostas. Os jornais que se cadastrarem no Planalto, tendo ou não interesse em publicar a coluna presidencial, podem enviar perguntas de leitores (devidamente identificados), três das quais serão semanalmente selecionadas para serem respondidas pelo presidente. Segundo o Planalto, as perguntas "devem tratar de temas relacionados às políticas públicas e de relevância e interesse jornalísticos", uma vez que a coluna presidencial será "um instrumento de prestação de contas à sociedade das ações do governo federal".

É evidente que o presidente não terá condições de redigir de próprio punho sua coluna jornalística. Como também não é dado ao hábito da leitura - e já confessou que os jornais lhe causam indisposição gástrica -, o problema é saber o tipo de controle efetivo que terá sobre o que escreverão em "sua" coluna, por mais competentes que sejam os especialistas que o façam. Se já há tanta divergência entre seus Ministérios - e a disputa que opôs o ministro do Meio Ambiente aos ministros da Agricultura e dos Transportes foi apenas a briga ministerial mais recente -, será que isso não se refletirá na coluna das terças-feiras?

Mas essa será uma preocupação secundária, pois certamente a coluna do presidente tratará de questões mais transcendentes, como a do País que ele prepara para os brasileiros, depois das eleições de 2010. Afinal, se fosse para ser um instrumento de "prestação de contas", essa coluna seria - no mínimo - bastante limitada. As respostas a apenas três perguntas - escolhidas por região e pelo que o Planalto julgue ser mais "jornalístico" - estarão bem longe de satisfazer a necessidade de informação da sociedade em relação a políticas públicas governamentais.

Anuncia-se também que, além da coluna jornalística, o governo prepara um blog especial só para o Planalto se comunicar de maneira mais coloquial com os eleitores - repetindo, no Brasil, o padrão de comunicação inaugurado pelo então candidato a presidente dos EUA, Barack Obama.

Considere-se, porém, que o presidente Lula já desenvolve uma estratégia de comunicação que o mantém de maneira permanente no noticiário da mídia eletrônica. De 1º de janeiro até 16 de junho, o presidente fez 113 discursos, cada um com duração média de 45 minutos. Assim, discursou ao todo por 84 horas e 45 minutos. É como se passasse três dias e meio fazendo um discurso ininterruptamente!

Tamanho esforço de "comunicação com a sociedade" nada tem a ver com a devida transparência e publicidade que devem ter os atos da administração pública. É, sim, o coroamento de uma incessante campanha de proselitismo político-partidário. Não bastou o presidente Lula, desde o primeiro dia de seu primeiro mandato, manter-se cotidianamente em campanha eleitoral. Agora, aperfeiçoa-se uma máquina estatal de propaganda, obviamente com os olhos nas eleições de 2010.

Ode ao homem comum

Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)
O gatilho mais rápido do hemisfério sul: dos inúmeros atributos do presidente Lula começa a evidenciar-se uma temerária capacidade de atirar antes de perguntar “quem vem lá?”. O ajuizado político, o “cara” que possui o senso da oportunidade e da prudência, de repente deixou-se dominar pelo instinto de defesa, assustado com a própria sombra.

A intempestiva intromissão nos assuntos internos do Irã proclamando a correção do pleito que deu a vitória a Mahmud Ahmadinejad colocou o Brasil na contramão do movimento reformista que tomou conta das ruas de Teerã. Lula entregou a imagem de progressista que construiu com tanta habilidade e, em troca, ganhou a faixa de repressor e antilibertário.

Foi ultrapassado pelo próprio núcleo conservador do Irã que decidiu rever os resultados do pleito, sobretudo a extraordinária velocidade com que foi apurado. Mirou naqueles que contestam a surpreendente maioria obtida por Ahmadinejad imaginando que assim desestimularia aqueles que no Brasil poderão animar-se a reclamar contra o uso da máquina estatal em benefício da sua candidata. Errou: o bom atirador não revela os próximos passos e, principalmente, os seus receios.

Não contente com a estrepolia internacional saiu em socorro do aliado José Sarney atirando em todas as direções, inclusive com peças grosso calibre. Para salvar o presidente do Senado da desmoralização integral conviria algo mais sofisticado do que a destemperada diatribe contra o denuncismo da imprensa. Conseguiu o milagre de incomodar a própria bancada do seu partido que defende uma ação mais efetiva e rigorosa no saneamento da Câmara Alta.

Ao proclamar que um ex-presidente da República não é uma pessoa comum, por isso merece tratamento especial Lula obriga-se a estender a mesma deferência a todos os antecessores. E não apenas isso: declara-se fervoroso adepto da tradição elitista brasileira que confere aos coronéis e aos poderosos privilégios que os verdadeiramente comuns jamais sonhariam.

O popularíssimo Lula, protagonista do sonho brasileiro, protótipo do homem comum que alçou-se às mais altas esferas coloca-se frontalmente contra a isonomia, contra a igualdade de direitos e deveres, contra os princípios da igualdade e a democracia.

José Sarney pode subverter a ordem, a moral, pode implantar a clandestinidade e o secretismo no poder da República mais comprometido com a transparência. O generoso atestado de idoneidade que lhe foi conferido poderá dar alguma sobrevida ao vice-rei do Brasil com a vantagem de, eventualmente, no futuro, ser usado em benefício próprio.

Armado com uma metralhadora portátil o presidente Lula esquece a sua função de árbitro, abdica da função moderadora, prefere ser o agente provocador. Não se poupa, convidado ou não se mete em todas as rixas, esquecido do imponderável processo de desgaste e da inevitável fadiga dos materiais.

Vai entrar para a história o patético discurso de Sarney nesta terça-feira no plenário do Senado que preside. A peça representa o momento culminante do cinismo, paroxismo da hipocrisia nacional. Nunca neste País viu-se tanto despudor, tamanho descaramento.

Lá no Cazaquistão, quase antípoda, envergando um deslumbrante traje azul bordado com ouro típico dos cazaques, o presidente Lula entendeu-o de forma equivocada. Até então aquele tiroteio no Senado – iniciado em fevereiro por Tião Viana, companheiro de partido – não atingia o presidente, apenas o preocupava. Para o homem comum, esse que silenciosamente constrói nações e potências, Lula esqueceu-o. Agora é fiador de uma prevaricação que se torna visível mesmo dos remotos grotões do País.

» Alberto Dines é jornalista

Mordomo de Roseana ganha R$12 mil do Senado

DEU EM O GLOBO
Governadora admite que técnico legislativo, pago com dinheiro público, faz serviços domésticos em sua casa
BRASÍLIA. Amaury de Jesus Machado, de 51 anos, conhecido como "Secreta", é funcionário do Senado e ganha cerca de R$12 mil mensais, entre salários e gratificações. Mas não trabalha no Senado. Amaury é o mordomo da casa de Roseana Sarney, ex-senadora e atual governadora do Maranhão, filha do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP).

De acordo com reportagem publicada ontem no jornal "O Estado de S. Paulo", "Secreta" dá expediente a sete quilômetros do Senado, na residência que Roseana mantém no Lago Sul de Brasília. É uma espécie de faz-tudo, que cuida dos serviços de copa e cozinha, dá orientações aos outros funcionários e organiza as recepções oferecidas por Roseana em Brasília. Tudo pago com dinheiro público.

"Ele vai à minha casa duas ou três vezes por semana"

Oficialmente, "Secreta" ocupa o cargo de técnico legislativo do Senado, com função comissionada. Entrevistada por telefone pelo "Estado", Roseana deu a seguinte descrição para as funções de seu mordomo: "Ele é meu afilhado. Fui eu quem o trouxe do Maranhão. Ele vai à casa quando preciso, umas duas ou três vezes por semana. É motorista noturno e é do Senado. E lá até ganha bem."

É só mais um caso de uso de dinheiro público para custear despesas privadas da família Sarney.

O presidente do Senado tem nove parentes supostamente trabalhando na Casa. "Secreta" era lotado no gabinete de Roseana desde que ela tomou posse como senadora, em 2003. Como Roseana deixou o Senado em abril deste ano para assumir o governo do Maranhão, muitos dos nomeados para assessorá-la foram mantidos como assessores do senador Mauro Fecury (PMDB-MA), que assumiu a vaga dela no Senado.

O mordomo nem sempre trabalha em Brasília. Na sexta-feira, o empregado que atendeu na casa da governadora, em Brasília, informou que "Secreta" estava há dez dias em São Paulo, acompanhando Roseana, que se recupera de uma cirurgia para a retirada de um aneurisma. Outros funcionários da casa confirmaram as funções privadas do servidor público do Senado.

Em abril, Roseana assumiu o governo do Maranhão no lugar de Jackson Lago (PDT), cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). "Secreta" é tão ligado a ela que chegou a ter filiação partidária. Assinou a ficha do PFL quando a governadora ainda estava no partido. Hoje, Roseana é filiada ao PMDB, assim como o pai.

Mordomo também trabalhou no Palácio do Alvorada

O mordomo também já foi funcionário do governo federal: trabalhou no Palácio do Alvorada na década de 1980, quando Sarney era presidente da República. Nos anos 90, com o fim do mandato de Sarney, "Secreta" passou para o Senado e foi inicialmente lotado no departamento de segurança e transportes. Oficialmente, ele exercia a função de motorista do Senado, embora os antigos colegas não tenham se lembrado de vê-lo dirigindo os carros da Casa.

A lotação mais recente é de fevereiro de 2003. Logo após tomar posse como senadora, em 2003, Roseana levou "Secreta" para seu gabinete. O ato foi assinado por Agaciel Maia, na época diretor-geral da Casa, em 21 de fevereiro. O mordomo ganha como técnico legislativo e pela função comissionada.

Assessora de senadora do PT mora há 2 anos nos EUA

DEU EM O GLOBO

Magno Malta usou ato secreto para pôr espião no Conselho de Ética
SOLANGE: temporadas no Brasil

BRASÍLIA. A servidora do Senado Solange Amorelli, lotada no gabinete de Serys Slhessarenko (PT-MT), mora há dois anos nos Estados Unidos, na cidade de Bethesda, perto de Washington.

Assim como "Secreta", recebe um salário de R$12 mil no Senado, além de horas extras. Ontem, depois que a notícia foi divulgada no blog de Ricardo Noblat, no site do GLOBO, Serys informou que Solange será dispensada e posta à disposição do Departamento de Recursos Humanos do Senado.

Em nota, Serys confirmou que a servidora está lotada em seu gabinete, mas alegou que ela se encontrava de licença funcional. Noblat apurou, no entanto, que a licença funcional de Solange expirou há mais de um mês. Solange é casada com um diretor do Banco Mundial e ingressou nos quadros do Senado há mais de 20 anos, em 1988. Nos EUA, ela acompanha senadores que visitam Washington, atendendo a pedido da senadora. O procurador da República Marinus Marsico também investigará o caso.

Solange visita o Brasil a cada quatro meses, e se hospeda em Brasília. Entre suas atividades em Bethesda está a participação em eventos realizados por uma entidade que presta assistência a latinos. A servidora também se dedica à entidade The Maryland Federation of Women"s Clubs.

Serys alegou, antes de divulgar a nota, que Solange está sempre no Brasil, prestando serviços, mas sem especificar que tipo de trabalho exerce nestas temporadas. A senadora disse que Solange chega ao Brasil amanhã e entrará com pedido de férias no Senado. "Informo, ainda, que colocarei a referida servidora à disposição do departamento de Recursos Humanos do Senado nessa segunda-feira, órgão que deferiu a licença e a quem cabe avaliar a regularidade do fato", diz a nota.

Segundo a Agência Estado, o senador Magno Malta (PR-ES) usou um ato secreto para plantar um espião no Conselho de Ética da Casa, enquanto estava em análise o processo de cassação de seu mandato. Malta acabou absolvido. O pastor evangélico Nilis Castberg, segundo suplente de Malta, foi nomeado em 23 de novembro de 2005 como assistente parlamentar do Conselho de Ética, com salário de R$2,3 mil, e admitiu que tinha a função de olheiro de Malta.

A forma particular de existir do Senado

Renato Lessa*
DEU EM O ESTADO DE S.PAULO / ALIÁS

O problema não é a instituição em si, mas o padrão da política brasileira, que deixa a Casa na mão de quem representa o que há de mais atrasado

Não é de espantar o fato de que, a esta altura, estejam a perguntar por toda parte: o Senado, para que serve? Uns o fazem por legítima e humana vulnerabilidade à dúvida e à incerteza. Alguns a isso acrescentam uma espécie de inadaptação a um desenho de mundo no qual um dos mais promissores gigantes do planeta Bric tem como operadores políticos no mínimo relevantes gente como Renan Calheiros e Romero Jucá. Há ainda os que fazem da pergunta o invólucro da resposta: para eles, a indagação serve tão somente de gatilho retórico para a defesa do fim do Senado e pela adoção do unicameralismo (será que não ocorre a essa gente que é melhor ter duas casas legislativas ruins do que apenas uma péssima? Quem nos garante que, eliminada uma das casas, restará a melhor?).

Há, ainda, conservadores e estetas institucionais, adeptos da intocabilidade e da sacralidade das instituições. Hão de ter ficado, eles sim, tocados com os apelos solenes do presidente do Senado à excelência institucional da Câmara baixa, digo alta, rivalizada em grandeza apenas pela honra pessoal autoatribuída de seu chefe. Imagino-os a ouvir com satisfação as promessas de aperfeiçoamento institucional - que é tudo que devemos almejar, certo? - ditadas pelo presidente da Casa. Daqui para a frente, tudo vai ser diferente. É mesmo graças ao atraso que todos avançamos.

A resposta à primeira questão pode ser tratada de modo pouco dramático. O Senado está inscrito na estrutura da federação, e esta, por sua vez, consta da Carta de 1988 como cláusula pétrea. O desenho constitucional da República brasileira a define como democrática e federativa.

Quer isso dizer que encerra em seu ordenamento um duplo princípio de representação: de um lado, a representação popular, materializada na Câmara dos Deputados, de outro, a representação federativa, concretizada no Senado.

A primeira busca certa proporcionalidade no que diz respeito à relação matemática entre número de eleitores e quantidade de representantes eleitos. O fato de a razão eleitor-representante ser distinta em cada Estado deve-se à definição de um piso e de um teto legais para cada um deles.

Nenhum Estado terá menos do que oito deputados federais ou mais do que 70. Na verdade, opera aqui um critério federativo que incide sobre a matemática pura da proporcionalidade. Os eleitores de Estados pequenos, ou de baixa densidade demográfica, possuem a garantia de uma representação mínima, capaz de sustentar alguma competitividade (imaginem o Acre reduzido a apenas um deputado federal, como querem alguns geometras: a redução na competitividade e na diversidade política seria brutal). Os eleitores de Estados mais populosos - São Paulo, por exemplo - são limitados por um teto, para impedir que a unidade federativa na qual estão inscritos tenha poder excessivo diante das demais.

Há, por certo, outro complicador que faz com que a Câmara, por princípio não federal, acabe por se federalizar: a coincidência territorial entre Estados e distritos eleitorais, o que faz com que se perca a noção de que são os cidadãos os representados, e não os Estados. Há mesmo um ato falho corrente na linguagem dos analistas, a de designar a Câmara como Federal, o que é simplesmente um equívoco. A solução para o sarilho seria uma redistritalização radical do País, com base em critérios mais aproximados ao de um ideal de proporcionalidade, pela qual os distritos não mais se confundiriam com unidades político-administrativas. Mas imaginem a viabilidade disso.

O Senado nesse arranjo é a casa constituída por um princípio completo de federalização. Embora assimétricas e desiguais do ponto de vista de suas "sociedades reais", as unidades da federação são equivalentes no que toca a sua representação nacional. Se queremos uma federação democrática não há como evitar a representação senatorial.

O problema não é o Senado, mas sim o que nele se faz. A crise não está associada a sua existência, mas a uma forma particular de existência, cuja inteligibilidade exige a consideração do longo prazo, pois escapa à perspectiva de tempo curto. Em outros termos, a chamada crise do Senado é indissociável do padrão geral da política brasileira. José Sarney, a esse respeito, mais do que um analista da crise, pode ser tomado como um de seus sintomas. Mas, antes de tratar de seu contributo analítico e existencial para a crise, importa considerar alguns pontos.

A legião de falcatruas e bizarrias dispostas na história recente do Senado pode em chave ingênua ser percebida como um conjunto de problemas práticos que podem ser tratados por medidas de aperfeiçoamento. Tal como em um maquinismo sem espírito, substituem-se as peças e as coisas seguem adiante. No entanto, há que as considerar como possibilidades de um padrão de política, que faz do Senado uma casa cujos principais operadores representam o que há de mais atrasado e deletério no País.

Há, com efeito, um escandaloso descompasso entre a imagem de país presente nas avaliações do governo federal a respeito de seus feitos - reconhecidos até mesmo por opositores e com imensa aprovação popular -, que inscrevem o País em dinâmicas internas e internacionais promissoras e a qualidade de seu modo de operar legislativo. Ao mesmo tempo que frequentamos o mundo Bric e planetas ainda mais glamourosos, testemunhamos a ação de operadores políticos senatoriais assentados sobre os piores índices sociais da nação. Vejamos. O Estado de Alagoas ocupa a pior colocação em várias classificações do IDH para o conjunto dos Estados: 27º colocado no que diz respeito a longevidade, educação, analfabetismo, mortalidade infantil (5%). Cede o último posto ao Maranhão no quesito renda. Nos demais quesitos, o Maranhão é o vice-campeão nesse triste e invertido torneio.

O mínimo que se dirá é que, do ponto de vista da vida comum, ou da sociedade real, o Senado parece não ter qualquer serventia para alagoanos e maranhenses. De qualquer forma, Renan Calheiros e José Sarney custam ao País cerca de R$ 34 milhões por ano, cada um. Que mantenham com seus eleitores uma relação típica da dos oligarcas, parece ser da vida, mas que isso tenha impacto político sobre a condução da política geral do País, tal coisa parece ser injustificável.

A questão, pois, parece ser esta: que lógica demencial expõe o País ao controle de próceres de Estados com indicadores sociais, culturais e econômicos inaceitáveis para uma sociedade que se quer democrática? Que exemplo impõem ao País senão o de uma ética hierárquica, fundada em práticas secretas e na convicção de que não podem ser confundidos como pessoas comuns, com "qualquer um"?

A avaliação da crise, por parte do senador Sarney, deve ser também considerada. Pelo seu diagnóstico, a crise do Senado inscreve-se em uma dupla e contraditória lógica.

Por um lado, trata-se de uma crise cósmica, compartilhada pelas demais democracias representativas. Para sustentar o ponto, toma como evidências escândalos parlamentares no Reino Unido e na França, esquecido do fato de que escândalos parlamentares não são necessariamente sinônimos de crises do Parlamento.

Por outro lado, trata-se de crise fabricada pelos que querem "enfraquecer as instituições legislativas". Os interessados nessa obra de lesa-instituições compõem uma listagem heteróclita e de baixa inteligibilidade agregada: "grupos econômicos, alguns setores radicais da mídia e radicais corporativistas que passam a exercer, pressionar e ocupar o lugar das instituições legislativas".

Para além das lógicas díspares, o senador sabe que ele não atende pelo nome de crise. O que o imuniza é a afirmação da incolumidade de sua honra, um tropo retórico típico de sociedades de não-iguais e carentes de esfera pública. Nelas, a república não está entre nós, mas cada um de nós é, como dizia Padre Vieira, uma república autárquica, dirigida pela crença na honra pessoal. Se ela não está no meio de nós, cada um condensa em si, como quer, as virtudes republicanas. Não há que provar ou demonstrar os juízos que fazem de si seres dessa natureza.

A perspectiva do longo prazo cairia bem em uma tentativa de elucidação do quadro. Para tal, a autoinocência de José Sarney talvez saia arranhada. Não tanto pelo envolvimento com as falcatruas e bizarrias correntes, mas pelo fato de que, como presidente da República, foi co-autor de um experimento de associação entre o Executivo e o Legislativo no qual entre as vítimas deve ser arrolado o instituto da representação política. Um padrão predatório de política foi implantado, segundo o qual os dois poderes aproximam-se para benefícios mútuos - para um, base parlamentar para alterações na ordem legal, para outro, usufruto de benesses e do botim público. É tão simples quanto isso. Um partido - o de Renan, Sarney e Jucá - simboliza à perfeição essa lógica: o PMDB.

A interpretação de José Sarney não elucida a crise. Ela é, antes, um de seus sintomas. Ademais, a crise não é do Senado, mas do padrão que depende da sobrevida política dos operadores aqui mencionados.

*Professor-titular de filosofia política do Instituto Universitário de Pesquisas do RJ (Universidade Candido Mendes) e da Universidade Federal Fluminense e presidente do Instituto Ciência Hoje

Controle de capitais

Celso Ming
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Sempre que o dólar desliza no câmbio interno aparecem empresários e economistas pregando a adoção de restrições à entrada de capitais.

O diagnóstico é o de que esses capitais vêm só especular, derrubam as cotações do dólar no câmbio interno e tiram competitividade do produto brasileiro. Por um simples efeito da lei da oferta e da procura, mais moeda estrangeira estimula o produto importado e prejudica as exportações.

Há vários instrumentos que podem desestimular a entrada de moeda estrangeira. Pode-se, por exemplo, impor uma quarentena, ou seja, deixar os recursos parados sem render nada em um banco ou no Banco Central. Pode-se cobrar pedágio (imposto) que reduzirá a rentabilidade nas aplicações feitas por esse capital. Pode-se, ainda, exigir que só sejam investidos nas modalidades previstas pela política de governo.

Em geral, essas restrições não funcionam, ou porque são inócuas ou porque têm efeitos colaterais mais prejudiciais do que o que se pretende evitar. São inócuas porque a globalização inventou e vai inventar mil atalhos que permitem o drible dos capitais a essa marcação.

Mas vamos falar dos efeitos colaterais indesejados. Não dá, por exemplo, para taxar a entrada de capitais de longo prazo, porque são investimentos. O Brasil é uma economia de baixo índice de poupança (cerca de 18% do PIB) e precisa de muito investimento estrangeiro. Tem vários projetos para tocar, tem o pré-sal a explorar, uma enorme infraestrutura a desenvolver e muito emprego para criar. Não pode inibir a entrada de capitais de longo prazo.

Também não se pode prejudicar a entrada de recursos no mercado de ações, porque as empresas brasileiras precisam reforçar seu capital e isso só se consegue com desenvolvimento do mercado secundário de ações (Bolsa), que abre o caminho para novas subscrições aqui e no exterior. Restringir as aplicações na Bolsa seria condenar a empresa brasileira ao nanismo.

O ex-ministro da Fazenda Luiz Carlos Bresser-Pereira, por exemplo, é um dos que defendem a taxação da entrada de capitais porque entende que o Brasil sofre de doença holandesa. O problema é que, se o mal é a doença holandesa, não pode ter como remédio a taxação de capitais. Doença holandesa é o forte crescimento das exportações de produtos primários (commodities) num volume tal que provoca grandes superávits comerciais, e essa entrada de dólares derrubaria o câmbio, que, por sua vez, tiraria competitividade do produto industrializado. Se fosse para combater a doença holandesa, seria preciso restringir exportações, e não a entrada de capitais.

Mas, em geral, quem quer barrar a entrada de capitais está pensando no afluxo de recursos de curto prazo que vêm para cá, dão uma beliscada e logo vão embora. Restringir esses capitais parece bobagem porque, se são de curto prazo, permanecem pouco tempo por aqui. Na entrada, podem derrubar o dólar no câmbio interno, mas, se forem logo embora, contribuirão, também no curto prazo, para a reversão da excessiva valorização do real.

Por isso, é preciso desconfiar sempre dessas providências artificiais, que não resolvem nada.

O ministro da Fazenda, Guido Mantega, garante que o governo não estuda medidas desse tipo, seja porque podem prejudicar os investimentos para o crescimento econômico, seja porque não há entrada significativa de capitais de curto prazo.

ConfiraUm ano - O estouro da bolha financeira que iniciou a crise global completa um ano. É cedo para conclusões. O que se pode dizer é que nunca o contra-ataque a crises teve tantos recursos e participação do Estado.

As crises anteriores, principalmente a Grande Depressão dos anos 30, foram consideradas devastadoras porque não houve pronta ação dos Tesouros e dos bancos centrais.

Mas não está nem um pouco claro se a pronta intervenção do Estado e a nunca vista injeção terão só consequências positivas. O medo que prevalece é o de que provocarão inflação e destruição de patrimônio.

O desgoverno do mundo

Rubens Ricupero
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Os Brics são unânimes em querer mais poder no FMI, mas não são harmoniosos na questão agrícola na OMC

"COMO EXPLICAR a desordem do mundo?", a frase de Gustavo Corção foi um dos temas que o embaixador João Guimarães Rosa nos propôs no exame de ingresso ao Itamaraty meio século atrás, em 1958. A desordem, a ausência de autoridade central, aprendi mais tarde, caracterizava o sistema internacional, o que um clássico da disciplina, Hedley Bull, intitulou "A Sociedade Anárquica".

Por um par de anos após o fim da URSS criou-se a falsa impressão de que algum tipo de "ordem" podia ser imposta pelo poder unilateral dos Estados Unidos. Contudo, a somatória do desastre do Iraque, do colapso da ordem econômica e do fracasso em liquidar o terrorismo marcou os limites do poder norte-americano.

Obama herdou poder debilitado por muitos golpes simultâneos. O ponto de partida de sua estratégia é uma posição de fraqueza, talvez temporária: a necessidade de reconstruir o poder e a vontade.

Enquanto a tarefa não se conclui, a última coisa que deseja é envolver-se em nível mais grave de conflito com a Coreia do Norte e o Irã. Ou tomar iniciativa internacional que exija engajar as reservas de poder que lhe restam. Não é apenas por livre opção e convicção idealista que o novo governo se mostra amistoso, conciliador, multilateralista, modesto em deixar a outros o centro do palco. É também porque precisa "fazer da necessidade uma virtude". Esse semivácuo de poder favorece a ressurreição de agrupamentos desejosos de ocupar espaço: G7, G8, G20, Brics etc.

O que todos eles pretendem é contribuir para o que se chama de "governança" do mundo. Não é que o mundo careça de governo ou leis, embora imperfeitas e incipientes. O que seriam o sistema das Nações Unidas, com a ONU propriamente dita, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio (OMC), os organismos especializados, suas constituições, convenções, tratados?

A questão é que essas organizações são vistas como ingovernáveis, incapazes de tomar decisões efetivas pelo tamanho (a Assembleia Geral da ONU tem 193 membros) ou pelo caráter não representativo de órgãos como o Conselho de Segurança.

Tenta-se assim escapar para grupos menores, supostamente coesos, onde se definiriam consensos a serem convertidos em decisões nas instituições competentes. É como se, diante da disfuncionalidade do nosso Congresso, decidíssemos partir para grupos pequenos de governadores ou partidos poderosos, a fim de resolver impasses na reforma tributária ou previdenciária. Estou vendo daqui o sorriso de ceticismo de nossos leitores. O que ele me diz é que o problema maior não está tanto nos defeitos de desenho e funcionamento do Congresso, apesar de numerosos, mas nas divergências profundas sobre a própria substância das matérias.

O mesmo ocorre na vida internacional. É isso que explica porque viram letra morta os compromissos do G-20 para concluir a Rodada Doha de comércio ou evitar o protecionismo. Ou porque o G7 se desmoralizou após décadas de fiasco em coordenar os mais ricos acerca de medidas para evitar crises econômicas, ajudar a África ou concordar sobre a invasão do Iraque.

Não se pense que será diferente com os Brics, unânimes em querer mais poder no FMI, mas não tão harmoniosos em agricultura na OMC, no ingresso da Índia e do Brasil no Conselho de Segurança ou em utilizar o foro para abrir o mercado russo à carne suína do Brasil.

Rubens Ricupero, 72, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.

O BNDES é amigo da motosserra?

Vinicius Torres Freire
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Luciano Coutinho critica ação de procuradores contra vacaria que pasta na ruína amazônica, mas problema é mato por lá

LUCIANO Coutinho, presidente do BNDES, pode passar por aliado da motosserra e da vacaria que pasta nas ruínas da Amazônia. "Lamentavelmente, o Ministério Público iniciou ação que não tem fundamento", disse. Tratava de procuradores federais do Pará que acusam fazendas, frigoríficos e outras empresas de criar bois e vender carne e derivados em área de desmatamento ilegal, entre outro pepinos. Ação similar será movida por procuradores de Mato Grosso, em breve.

Os procuradores ameaçaram multar e processar os revendedores do que dizem ser subprodutos do desmatamento, acusação partilhada pelo Ibama. Assim, Pão de Açúcar, Wal-Mart e Carrefour, entre outros, interromperam a compra de produtos das empresas acusadas.

Se Coutinho sabe dos erros dos procuradores, deveria torná-los públicos. De outro modo, faz algo pior do que propaganda de parte interessada. Tão interessado na criação de grandes conglomerados multinacionais brazukas, deveria ter noção do perigo. Coutinho parece patrocinar o desmatamento ilegal a fim de que frigoríficos associados ao governo (BNDES) ou por ele subsidiados ganhem fatias do mercado mundial de carne, em que empresas brasileiras já são dominantes. Trata-se de uma combinação letal de acusações, prato feito para protecionistas.

Seria irrelevante se apenas o nome de Coutinho estivesse em jogo. Mas Coutinho põe em risco a imagem do agronegócio exportador e dos programas de fomento de um banco público. Coutinho uniu-se, sem mais, a entidades do agronegócio. Porém, nem empresários nem seu sócio BNDES se ocupam de criar um sistema de auditoria e rastreamento da produção pecuária. Cadê a "autorregulação"? Se os produtos dos rebanhos fossem honestamente certificados não haveria o zunzum que permite aos inimigos do agronegócio levantarem barreiras, sanitárias ou outras, contra os produtos do país, de má-fé ou não.

O BNDES, as associações empresariais e o governo sabem muito bem qual a origem do rolo. A terra ficou cara no Centro-Sul do país, em especial em São Paulo, onde de resto há mais exigências legais. Parte da pecuária brasileira é ineficiente, demora para engordar um boi, depende de criação extensiva e abate de modo clandestino. Onde há mais terra barata e sem lei? Na Amazônia, campo de grilagem, de terra ocupada à matroca, à base de jagunçagem, desmatamento e corrupção, vide a falsificação de títulos de propriedade e de guias para comerciar madeira, boi e o diabo. Faltam, pois, polícia, política, Estado e eficiência.

Os procuradores do Pará têm documentos que indicam irregularidade nas terras das empresas acusadas: embargadas, griladas, multadas por crimes ambientais e trabalho escravo. Advogados das empresas acusadas já negociam "termos de ajustamento de conduta" com o Ministério Público. O governo do Pará se ofereceu para intermediar as negociações. Problemas, pois, há.

Mas Coutinho lamenta apenas as investigações, tal como um czar do crédito subsidiado e da "aliança Estado-empresa". Ameaça, assim, mudar o nome do banco que provisoriamente preside: para Banco Nacional de Desenvolvimento e Estabelecimento de Serrarias. Na Amazônia.

Temas cruzados

Míriam Leitão
DEU EM O GLOBO

Na semana passada estive em São Paulo em um debate do Ethos, sobre combate à corrupção e crise econômica; e em Goiás Velho, no Festival Internacional de Cinema Ambiental (FICA), em que o tema era crescimento acelerado e meio ambiente. Nesse circuito do empresariado paulista à cidade de Cora Coralina, constatei que os assuntos se cruzam e ganham densidade.

Tanto no Ethos quanto no FICA houve espaço para apresentações técnicas, participantes internacionais, busca de informações precisas. Em São Paulo, o holandês Ernst Ligteringen, do Global Reporting Initiative (GRI), explicou que o programa, conhecido por formular ferramentas de transparência das emissões de carbono e sustentabilidade ambiental das empresas, agora tem fórmulas de prevenção da corrupção. Em Goiás, o italiano Andrea Cattaneo, pesquisador sênior do Woods Hole Research Center, explicou o possível impacto futuro do REDD na prevenção do desmatamento na Amazônia e no Cerrado.

REDD é a proposta de um mecanismo financeiro para incentivar a Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (Reduction of Emissions from Deforestation and Degradation). Segundo Cattaneo, ele foi considerado complicado demais no passado, mas agora começa a avançar. Ainda está em discussão se esse mecanismo será via mercado, tipo créditos de carbono, ou não, por meio de um fundo financiado por uma taxa carbono a ser paga pelos países desenvolvidos. O objetivo é compensar pelo desmatamento evitado, pela restauração florestal e pelos serviços ambientais prestados pelas florestas tropicais (chuva, umidade, biodiversidade, entre outros).

Ambos os programas são ferramentas, com falhas e méritos, mas estão indo na mesma direção. Querem dar substância, desenvolver tecnologia e base econômica em questões decisivas para o Brasil e a humanidade: a redução das emissões dos gases que ameaçam o planeta e a luta para proteger os cofres públicos dos assaltos e dos conluios. O que me impressionou foi isso: a busca de objetividade numa luta que antes parecia ser apenas subjetiva e heróica.

O Ethos firmou um pacto pela integridade e contra a corrupção entre empresários e o governo que estabelece uma série de compromissos. Que importância tem um documento num momento em que a corrupção parece aumentar e estar a ponto de engalfinhar nossas instituições? Tanto o ministro Jorge Hage, da Controladoria-Geral da União (CGU), quanto o empresário Ricardo Young, do Ethos, combateram meu ceticismo com números e argumentos. Segundo Hage, mais de dois mil funcionários já foram demitidos do serviço público nos últimos anos como medida punitiva, por corrupção. Mas, o que faz qualquer cidadão duvidar da eficácia dessas medidas é que as punições parecem clandestinas. Ninguém fica sabendo delas. Não pegam grandes nomes. Os casos exemplares do mundo pegaram até chefes de governo, como no caso alemão de Helmut Kohn.

Que capacidade de impor novas práticas tem mais um pacto do Ethos? Young e Paulo Itacarambi, também do Instituto, acham que em cada pacto se avança um pouco mais. Como no que foi feito contra o trabalho escravo, que, apesar dos contratempos, fez empresas líderes se comprometerem a não comprar de fornecedores que tivessem sido apanhados nesse delito ou que comprassem de fornecedores flagrados. De fato, isso faz pressão, mas é preciso haver punição para o mau comportamento. Quem assina pacto porque é bonito e é apanhado em caso de corrupção tem que enfrentar publicidade negativa.

O Brasil está no meio desses embates, como mostra o caso da carne. O Ministério Público do Pará fez o cerco a frigoríficos e a pecuaristas que produzem carne desmatando a Amazônia. Apesar dos defensores da lavoura arcaica continuarem ameaçando sustar a ação do Ministério Público e processar quem denuncia a prática, a campanha é exemplar. Ela pode pôr a força do consumidor sobre empresários que sempre proclamaram práticas sustentáveis, sempre tiveram unidades exemplares para mostrar para a imprensa, mas sempre infringiram a lei quando estiveram na Amazônia. Pode ser um divisor de águas.

Ouvido na CBN, o procurador da República no Pará Daniel Azeredo disse que algumas das empresas foram flagradas com gado em áreas de conservação e em terras indígenas. Alguns casos são de 2006. E que está sendo negociado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com eles. Duas das exigências são as mesmas feitas pelos supermercados: uma auditoria independente e o uso das ferramentas de rastreabilidade para saber a origem do gado. A Associação Paulista de Supermercados começa a orientar seus associados a também seguirem a mesma tendência de barrar a carne de desmatamento.

O futuro de menos desmatamento, práticas realmente sustentáveis, contratos transparentes entre setor público e setor privado, respeito aos trabalhadores em áreas remotas, será conseguido com um novo comportamento dos produtores. Conversei com o biólogo americano Eric Davidson, do Woods Hole Research Center, que estava em Goiás, e ele contou a história de alianças entre produtores que estão adotando boas práticas. Tomara que elas vençam a luta dentro do velho ruralismo.

No Ethos, a pergunta era se a crise criaria uma oportunidade no combate à corrupção. Infelizmente não se pode dizer isso. No FICA, a pergunta era se o país poderia crescer de forma acelerada respeitando os limites ambientais. Todo o desmatamento e degradação dos últimos anos não trouxeram crescimento sustentado. Só isso já mostra que o país deveria tentar outra trilha.