Renato Lessa*
DEU EM O ESTADO DE S.PAULO / ALIÁS
O problema não é a instituição em si, mas o padrão da política brasileira, que deixa a Casa na mão de quem representa o que há de mais atrasado
Não é de espantar o fato de que, a esta altura, estejam a perguntar por toda parte: o Senado, para que serve? Uns o fazem por legítima e humana vulnerabilidade à dúvida e à incerteza. Alguns a isso acrescentam uma espécie de inadaptação a um desenho de mundo no qual um dos mais promissores gigantes do planeta Bric tem como operadores políticos no mínimo relevantes gente como Renan Calheiros e Romero Jucá. Há ainda os que fazem da pergunta o invólucro da resposta: para eles, a indagação serve tão somente de gatilho retórico para a defesa do fim do Senado e pela adoção do unicameralismo (será que não ocorre a essa gente que é melhor ter duas casas legislativas ruins do que apenas uma péssima? Quem nos garante que, eliminada uma das casas, restará a melhor?).
Há, ainda, conservadores e estetas institucionais, adeptos da intocabilidade e da sacralidade das instituições. Hão de ter ficado, eles sim, tocados com os apelos solenes do presidente do Senado à excelência institucional da Câmara baixa, digo alta, rivalizada em grandeza apenas pela honra pessoal autoatribuída de seu chefe. Imagino-os a ouvir com satisfação as promessas de aperfeiçoamento institucional - que é tudo que devemos almejar, certo? - ditadas pelo presidente da Casa. Daqui para a frente, tudo vai ser diferente. É mesmo graças ao atraso que todos avançamos.
A resposta à primeira questão pode ser tratada de modo pouco dramático. O Senado está inscrito na estrutura da federação, e esta, por sua vez, consta da Carta de 1988 como cláusula pétrea. O desenho constitucional da República brasileira a define como democrática e federativa.
Quer isso dizer que encerra em seu ordenamento um duplo princípio de representação: de um lado, a representação popular, materializada na Câmara dos Deputados, de outro, a representação federativa, concretizada no Senado.
A primeira busca certa proporcionalidade no que diz respeito à relação matemática entre número de eleitores e quantidade de representantes eleitos. O fato de a razão eleitor-representante ser distinta em cada Estado deve-se à definição de um piso e de um teto legais para cada um deles.
Nenhum Estado terá menos do que oito deputados federais ou mais do que 70. Na verdade, opera aqui um critério federativo que incide sobre a matemática pura da proporcionalidade. Os eleitores de Estados pequenos, ou de baixa densidade demográfica, possuem a garantia de uma representação mínima, capaz de sustentar alguma competitividade (imaginem o Acre reduzido a apenas um deputado federal, como querem alguns geometras: a redução na competitividade e na diversidade política seria brutal). Os eleitores de Estados mais populosos - São Paulo, por exemplo - são limitados por um teto, para impedir que a unidade federativa na qual estão inscritos tenha poder excessivo diante das demais.
Há, por certo, outro complicador que faz com que a Câmara, por princípio não federal, acabe por se federalizar: a coincidência territorial entre Estados e distritos eleitorais, o que faz com que se perca a noção de que são os cidadãos os representados, e não os Estados. Há mesmo um ato falho corrente na linguagem dos analistas, a de designar a Câmara como Federal, o que é simplesmente um equívoco. A solução para o sarilho seria uma redistritalização radical do País, com base em critérios mais aproximados ao de um ideal de proporcionalidade, pela qual os distritos não mais se confundiriam com unidades político-administrativas. Mas imaginem a viabilidade disso.
O Senado nesse arranjo é a casa constituída por um princípio completo de federalização. Embora assimétricas e desiguais do ponto de vista de suas "sociedades reais", as unidades da federação são equivalentes no que toca a sua representação nacional. Se queremos uma federação democrática não há como evitar a representação senatorial.
O problema não é o Senado, mas sim o que nele se faz. A crise não está associada a sua existência, mas a uma forma particular de existência, cuja inteligibilidade exige a consideração do longo prazo, pois escapa à perspectiva de tempo curto. Em outros termos, a chamada crise do Senado é indissociável do padrão geral da política brasileira. José Sarney, a esse respeito, mais do que um analista da crise, pode ser tomado como um de seus sintomas. Mas, antes de tratar de seu contributo analítico e existencial para a crise, importa considerar alguns pontos.
A legião de falcatruas e bizarrias dispostas na história recente do Senado pode em chave ingênua ser percebida como um conjunto de problemas práticos que podem ser tratados por medidas de aperfeiçoamento. Tal como em um maquinismo sem espírito, substituem-se as peças e as coisas seguem adiante. No entanto, há que as considerar como possibilidades de um padrão de política, que faz do Senado uma casa cujos principais operadores representam o que há de mais atrasado e deletério no País.
Há, com efeito, um escandaloso descompasso entre a imagem de país presente nas avaliações do governo federal a respeito de seus feitos - reconhecidos até mesmo por opositores e com imensa aprovação popular -, que inscrevem o País em dinâmicas internas e internacionais promissoras e a qualidade de seu modo de operar legislativo. Ao mesmo tempo que frequentamos o mundo Bric e planetas ainda mais glamourosos, testemunhamos a ação de operadores políticos senatoriais assentados sobre os piores índices sociais da nação. Vejamos. O Estado de Alagoas ocupa a pior colocação em várias classificações do IDH para o conjunto dos Estados: 27º colocado no que diz respeito a longevidade, educação, analfabetismo, mortalidade infantil (5%). Cede o último posto ao Maranhão no quesito renda. Nos demais quesitos, o Maranhão é o vice-campeão nesse triste e invertido torneio.
O mínimo que se dirá é que, do ponto de vista da vida comum, ou da sociedade real, o Senado parece não ter qualquer serventia para alagoanos e maranhenses. De qualquer forma, Renan Calheiros e José Sarney custam ao País cerca de R$ 34 milhões por ano, cada um. Que mantenham com seus eleitores uma relação típica da dos oligarcas, parece ser da vida, mas que isso tenha impacto político sobre a condução da política geral do País, tal coisa parece ser injustificável.
A questão, pois, parece ser esta: que lógica demencial expõe o País ao controle de próceres de Estados com indicadores sociais, culturais e econômicos inaceitáveis para uma sociedade que se quer democrática? Que exemplo impõem ao País senão o de uma ética hierárquica, fundada em práticas secretas e na convicção de que não podem ser confundidos como pessoas comuns, com "qualquer um"?
A avaliação da crise, por parte do senador Sarney, deve ser também considerada. Pelo seu diagnóstico, a crise do Senado inscreve-se em uma dupla e contraditória lógica.
Por um lado, trata-se de uma crise cósmica, compartilhada pelas demais democracias representativas. Para sustentar o ponto, toma como evidências escândalos parlamentares no Reino Unido e na França, esquecido do fato de que escândalos parlamentares não são necessariamente sinônimos de crises do Parlamento.
Por outro lado, trata-se de crise fabricada pelos que querem "enfraquecer as instituições legislativas". Os interessados nessa obra de lesa-instituições compõem uma listagem heteróclita e de baixa inteligibilidade agregada: "grupos econômicos, alguns setores radicais da mídia e radicais corporativistas que passam a exercer, pressionar e ocupar o lugar das instituições legislativas".
Para além das lógicas díspares, o senador sabe que ele não atende pelo nome de crise. O que o imuniza é a afirmação da incolumidade de sua honra, um tropo retórico típico de sociedades de não-iguais e carentes de esfera pública. Nelas, a república não está entre nós, mas cada um de nós é, como dizia Padre Vieira, uma república autárquica, dirigida pela crença na honra pessoal. Se ela não está no meio de nós, cada um condensa em si, como quer, as virtudes republicanas. Não há que provar ou demonstrar os juízos que fazem de si seres dessa natureza.
A perspectiva do longo prazo cairia bem em uma tentativa de elucidação do quadro. Para tal, a autoinocência de José Sarney talvez saia arranhada. Não tanto pelo envolvimento com as falcatruas e bizarrias correntes, mas pelo fato de que, como presidente da República, foi co-autor de um experimento de associação entre o Executivo e o Legislativo no qual entre as vítimas deve ser arrolado o instituto da representação política. Um padrão predatório de política foi implantado, segundo o qual os dois poderes aproximam-se para benefícios mútuos - para um, base parlamentar para alterações na ordem legal, para outro, usufruto de benesses e do botim público. É tão simples quanto isso. Um partido - o de Renan, Sarney e Jucá - simboliza à perfeição essa lógica: o PMDB.
A interpretação de José Sarney não elucida a crise. Ela é, antes, um de seus sintomas. Ademais, a crise não é do Senado, mas do padrão que depende da sobrevida política dos operadores aqui mencionados.