segunda-feira, 22 de junho de 2009

Gramsci no seu tempo

Giuseppe Vacca
Tradução: A. Veiga Fialho
Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

Desde 1957, a cada dez anos, o aniversário da morte de Gramsci é a ocasião de seminários de estudos nacionais e internacionais, quase sempre promovidos pelo Instituto que traz seu nome e preparados com muito cuidado. Poder-se-ia dizer que constituem uma “tradição”, caracterizada tanto por constantes quanto por variações. Entre as primeiras, pode-se sublinhar o método histórico, vale dizer, o esforço de relacionar o pensamento de Gramsci com o contexto histórico; o debate entre estudiosos das mais diferentes inspirações culturais e campos de investigação, influenciados pela leitura de Gramsci, mas não necessariamente especialistas do seu pensamento e frequentemente “antigramscianos”; o objetivo de fazer um balanço da difusão dos seus escritos e de promovê-la; o envolvimento de figuras eminentes de estudiosos estrangeiros influenciados, de modo variado, pelo pensamento de Gramsci. Entre as segundas, podemo-nos limitar a indicar o objetivo de formular uma interpretação deste pensamento e de promover um diálogo entre os estudiosos de Gramsci italianos e estrangeiros.

Os elementos indicados repetem-se em todos os seminários a cada dez anos, diferentemente combinados entre si. A incidência maior ou menor de um ou de outro elemento pode ser referida principalmente aos seguintes fatores: a relação do Instituto Gramsci com o PCI; a situação política e cultural do período; os desdobramentos dos estudos gramscianos e o debate, até mesmo acalorado, entre as diferentes interpretações.

A relação do Instituto Gramsci com o PCI deve ser especificada. Até 1982, o Instituto era uma seção de trabalho do comitê central do partido. Mas só o primeiro seminário, inspirado por Togliatti e intitulado “Estudos gramscianos” (Roma, janeiro de 1958), pode ser considerado uma projeção direta da política cultural do PCI. Na sua realização, os elementos indicados apresentavam um notável equilíbrio, mas prevalecia a intenção de inaugurar uma nova interpretação de Gramsci atribuída principalmente ao texto de Togliatti e coerente com a inovação política que ele tentava promover (a via italiana para o socialismo). Além disso, dava-se grande impulso à historicização do pensamento de Gramsci e ao debate entre os intérpretes italianos e estrangeiros.

No entanto, o segundo seminário, “Gramsci e a cultura contemporânea” (Cagliari, abril de 1967), foi promovido por um grupo de professores das universidades de Cagliari e de Sassari. Não se pode dizer que não estivesse em sintonia com a política cultural do partido, que, de resto, compartilhava a iniciativa, mas o seminário se caracterizou principalmente por um balanço e uma promoção da presença de Gramsci na cultura acadêmica, repetindo suas divisões disciplinares e distanciando profundamente o Gramsci “pensador” e “homem de cultura” do político.

O terceiro seminário, “Política e histórica em Gramsci” (Florença, dezembro de 1977), foi promovido e preparado cuidadosamente pelo Instituto Gramsci, mas não se pode dizer que fosse inspirado pela direção do partido. Na sua estruturação prevaleceu a marca do grupo de intelectuais mais diretamente empenhados nas atividades do Instituto. Eram ao mesmo tempo estudiosos e dirigentes de partido claramente críticos em relação à formulação do seminário de Cagliari, e, valendo-se sobretudo da edição crítica dos Cadernos publicada no ano anterior, deslocaram a ênfase para a unidade da figura de Gramsci como pensador e homem de ação, e sobretudo como teórico da transição ao socialismo. Não é fácil dizer em que medida a iniciativa fosse compartilhada pela, ou imposta à, direção do partido; o certo é que, entre o volume que recolhe os textos preparatórios e que foi publicado com notável antecipação em relação ao seminário, e o volume que recolhe os textos do próprio seminário, aparecem consideráveis assimetrias, provavelmente originadas pela exigência de diluir o impacto da formulação inicial do seminário sobre a orientação política do PCI, que naquele período estava empenhado nas difíceis vicissitudes dos governos de solidariedade nacional.

Também o quarto seminário foi idealizado e promovido pelo Instituto Gramsci, neste meio-tempo transformado em Fundação, e tinha uma conotação predominantemente interpretativa. O tema “Moral e política em Gramsci” (Roma, junho de 1987) e a estruturação do seminário, cujos textos não foram publicados, ressentiam-se das incertezas e do ecletismo da orientação do partido, no qual a própria noção de “política cultural” já estava em desuso.

Entre os anos setenta e oitenta, graças à edição crítica dos Cadernos e sua crescente fortuna internacional, Gramsci já era geralmente considerado um clássico do pensamento político do século XX e, no entanto, sua influência na cultura italiana decaíra drasticamente.

Paradoxalmente, foi 1989 o que favoreceu a retomada de interesse, depois da longa agonia do PCI que acompanhara o eclipse e a marginalização do seu pensamento. A iniciativa mais relevante do Instituto foi a proposta de uma Edição Nacional dos escritos de Gramsci, que, entre outras coisas, confirma seu reconhecimento como clássico. A proposta teve uma gestação atribulada, e o projeto só começou em 1998. Mas seu lento amadurecimento já influenciara o modo de estruturar as celebrações decenais.

O seminário de 1997, “Gramsci e o século XX” (Cagliari, abril de 1997), propunha-se mais uma vez “interrogar” o pensamento gramsciano “a partir do presente”, mas o fazia de modo diferente do passado. Já a escolha do tema sugeria a intenção de uma historicização mais ponderada. Em segundo lugar, os temas das intervenções originavam-se das novas pesquisas estimuladas pelo seminário de 1977, que enfatizara os conceitos de “revolução passiva” e “crise orgânica”, deslocando o foco para a interpretação gramsciana do moderno, do americanismo e do fascismo, e inovara o conceito de hegemonia. Portanto, o seminário de 1997 permitia propor aos intérpretes, tanto italianos quanto estrangeiros, sondagens de amplo espectro sobre nós cruciais da história do século XX, empregando como reagentes as categorias fundamentais dos Cadernos. Repropor a leitura de Gramsci focalizando a relação entre seu pensamento e o século XX era um modo de relançar o método histórico como sua chave interpretativa, mantendo distância, no entanto, das disputas ideológicas e das leituras voltadas para a política contingente de uma facção ou de outra.

Nesta trilha trabalhamos no seminário de 2007, cujo título manifesta a intenção de uma historicização integral. Parece-nos útil um esclarecimento de tal propósito. A escolha de promover uma Edição Nacional dos escritos de Gramsci pretendeu corresponder a uma redefinição das tarefas fundamentais da Fundação. Entre os primeiros a reconhecer a Gramsci o status de clássico, o mais respeitado foi Valentino Gerratana, que não casualmente propôs este conceito justamente no momento em que publicava a edição crítica dos Cadernos. Em seguida, Gerratana voltou a esta definição e, em 1991, especificou-a do modo seguinte: “clássico é um autor que vale a pena reler e reinterpretar à luz de novas exigências e de novos problemas”. É uma das definições possíveis, certamente legítima para o “filósofo individual”, mas seria válida para uma fundação cultural que traz o nome de Gramsci? Seria válida depois dos progressos realizados pela crítica gramsciana em setenta anos? Gramsci é um autor póstumo que não deixou “obras”, mas uma imensa quantidade de escritos jornalísticos, de intervenções políticas, de cartas e apontamentos inéditos que constituem o calhamaço de manuscritos do cárcere. É, pois, um “clássico” inteiramente particular, cujos escritos tornam-se “obras” através do atento trabalho dos editores e cujo pensamento vive e muda segundo os progressos e as diferenças das suas edições (não há edição de um “clássico” que dele não proponha também uma ou mais interpretações, e isso é verdade sobretudo para um autor como o nosso).

A Fundação Instituto Gramsci iniciou o projeto da nova edição crítica de todos os escritos de Gramsci porque os desenvolvimentos da documentação e da pesquisa demonstravam a necessidade e sugeriam os critérios para superar as edições anteriores: dos escritos jornalísticos e políticos, que requeriam uma verificação das atribuições e um aparato crítico que permitisse sua melhor contextualização; do epistolário, que não podia mais ser limitado às cartas escritas por Gramsci entre 1908 e 1937, mas devia também compreender as cartas dos seus correspondentes e as “correspondências paralelas”: em particular, entre Piero Sraffa e Tania Schucht, e entre Tania e seus familiares, ambas essenciais para a biografia do prisioneiro; e, enfim, dos Cadernos, porquanto a exclusão dos cadernos de tradução da edição Gerratana revelava-se cada vez mais manifestamente injustificada e critérios mais precisos de datação dos parágrafos foram elaborados neste meio-tempo. Por outro lado, o crescente desenvolvimento das traduções das Cartas e dos Cadernos, a difusão dos estudos gramscianos no mundo, sua diferenciação disciplinar, política e cultural faziam-nos perceber como uma responsabilidade da cultura italiana preparar uma edição crítica integral dos escritos de Gramsci, a mais cuidadosa que o progresso das pesquisas e da documentação pudesse permitir: uma tarefa que só a “cultura nacional” que tinha dado origem ao seu pensamento podia realizar e que a Fundação Instituto Gramsci devia assumir, tornando-a seu principal desafio.

Nesta escolha talvez haja um modo diverso de conceber o caráter “clássico” de Gramsci. Poder-se-ia dizer assim: “clássico” é um pensador com cujo pensamento todo aquele que, depois dele, enfrentar os grandes problemas em torno dos quais se atormentou sua reflexão não pode — ou pelo menos não deve — deixar de debater. Não é uma definição inconciliável com aquela proposta por Gerratana. Certamente, “clássico é um autor que vale a pena reler e reinterpretar à luz de novas exigências e de novos problemas”, mas fornecer os instrumentos que permitam relê-lo em bases filológicas e críticas mais sólidas é uma garantia para respeitar seu “ritmo de pensamento em desenvolvimento” e imunizar o intérprete contra a tentação de “forçar os textos”. Isso é ainda mais verdade quando são novas exigências e novos pensamentos que nos fazem voltar às páginas iluminadoras de um clássico da filosofia da práxis. Historicizar não é relativizar e muito menos neutralizar. Quanto mais se historiciza, tanto mais se multiplicam e se enriquecem, mas também se redefinem e encontram fundamento as perspectivas de leitura dos textos, e o intérprete pode verificar a pertinência e a validade das “novas exigências” e dos “novos pensamentos” que o levam a reinterrogar o autor.

O trabalho de mais do que uma década para a Edição Nacional está na base do seminário de 2007. A nova investigação biográfica começada em 1990, a aquisição de novos documentos relativos à vida de Gramsci, à história do PCI e do comunismo internacional, os progressos dos estudos gramscianos na Itália e no exterior, o refinamento dos instrumentos filológicos marcaram as pesquisas de um número significativo de estudiosos jovens e não tão jovens. A dispersão dos documentos nos arquivos italianos e estrangeiros, bem como a complexidade do trabalho dos organizadores dos volumes não nos permitiram proceder mais celeremente, mas isto será possível agora que as pesquisas estão substancialmente ultimadas. Através da preparação da Edição Nacional formaram-se novos estudiosos e novas investigações.

O conjunto da experiência acumulada nos permite tentar uma historicização geral da obra de Gramsci que não se poderia arriscar nos seminários anteriores. Portanto, em conclusão, convém dizer algo sobre os critérios seguidos na estruturação do seminário e do modo pelo qual se apresentam seus resultados. Em 2007 ocorreram dezenas de seminários dedicados a Gramsci na Itália e no mundo, para cuja realização a Fundação contribuiu e de muitos dos quais participou. Da sua parte, não se limitou a promover, em colaboração com a Fundação Gramsci da Puglia, o encontro de Bari-Turi, mas também dedicou um denso seminário internacional à influência de Gramsci sobre os Cultural Studies, Subaltern Studies e Postcolonial Studies, promovido com a International Gramsci Society-Itália (Roma, abril de 2007).

“Gramsci no seu tempo”, em vez disso, foi reservado aos pesquisadores italianos com o objetivo de verificar o amadurecimento dos estudos gramscianos diante da tarefa de reconstruir os contextos do seu pensamento, a rede das suas interações e, sobretudo, a relação entre teoria e biografia. Quisemos assim pôr à prova nossa capacidade de contribuir para aquela tarefa da cultura italiana de que falamos a propósito da Edição Nacional, e não é um acaso que muitos dos estudiosos que dela participam apareçam entre os relatores do seminário. Naturalmente, reconstruir os contextos do pensamento e da ação de Gramsci requer a cooperação de estudiosos de várias disciplinas humanistas que interagem com sua obra mesmo quando não se trate de “especialistas” desta mesma obra. O limite dos nossos conhecimentos e do espectro dos investigadores de que podíamos dispor não nos permitiu cobrir todos os lados de uma figura tão poliédrica como a de Gramsci. No entanto, parece-nos que realizamos um significativo passo adiante para lançar as bases de uma biografia gramsciana de que a cultura italiana e a comunidade científica internacional ainda não dispõem.

O seminário requereu uma longa preparação e um trabalho intenso de coordenação das pesquisas e dos dias em que elas foram apresentadas. A ordem em que foram recolhidas nos parece melhor do que aquela seguida durante os trabalhos do seminário. Além disso, as intervenções foram reelaboradas pelos autores, tendo em conta o debate ocorrido no seminário e realizando um elogiável esforço para conter o próprio texto nos limites permitidos pelo volume, ainda que alentado, dos anais.

Não nos cabe avaliar os resultados alcançados; de todo modo, não podemos deixar de sublinhar que o conjunto dos textos constitui uma proposta de biografia política e intelectual de Gramsci muito mais rica e articulada — quanto aos temas e à periodização — do que aquilo de que se dispõe até agora. Muitas investigações realizadas para o seminário apresentam novidades de leitura particularmente significativas. No conjunto, parece-nos que o enquadramento histórico mais preciso do pensamento de Gramsci produz inovações teóricas múltiplas que não se referem só à interpretação do autor, mas são ricas de sugestões para a investigação histórica, filosófica e crítica em geral. Portanto, vale o critério segundo o qual quanto mais se historiciza o pensamento de um clássico, tanto mais se regenera sua validade, abrindo sua obra para inovações heurísticas plurais, como é justo que seja. Por isso, são muito sentidos os agradecimentos aos estudiosos que contribuíram para o seminário, aos colaboradores da equipe técnica da Fundação Instituto Gramsci e da Fundação Instituto Gramsci da Puglia, bem como à Região da Puglia, que, graças à sensibilidade do presidente Nichi Vendola e da secretária de Cultura e de Mediterrâneo, Silvia Godelli — aliás, valorosos intelectuais de formação gramsciana, além de políticos —, nos permitiram realizá-lo. O agradecimento que a eles dirigimos é ainda mais sentido na medida em que nos permitiram realizar o seminário inclusive na cidadezinha [Turi] em que Gramsci, recluso, concebeu e escreveu a maior parte dos cadernos e das cartas do cárcere.

Entre aqueles que aderiram com entusiasmo à iniciativa estava Giorgio Sola, finíssimo estudioso de ciência política, que deveria apresentar um texto sobre as relações de Gramsci com o elitismo, mas veio a falecer poucos meses antes do seminário. Era um interlocutor sensível dos nossos estudos gramscianos e um dos poucos politólogos italianos a carregar Gramsci na própria bagagem teórica e cultural. Além disso, era um amigo, sóbrio e reservado, mas intensamente participante da comum paixão ético-civil. Recordamo-lo brevemente na abertura do seminário e o recordamos mais uma vez, dedicando-lhe a publicação dos anais.

Giuseppe Vacca é presidente da Fundação Instituto Gramsci, em Roma, e autor, entre outros, de Por um novo reformismo. Esta é a introdução de Gramsci nel suo tempo. Organizado por Francesco Giasi. 2v. Roma: Carocci, 2008. 943p.

Uma invasão de banco

José de Sousa Martins
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / Metrópole

– Dá um tiro nele! Dá um tiro nele! – berrava a mulher de meia idade, apontando na direção por onde ele entrara no recinto do banco, afundando-se no meio do numeroso grupo de pessoas que esperava atendimento. Era a tarde de 5 de fevereiro de 2007. Ela estava na minha frente, na fila, quando, de um pulo, subiu numa das cadeiras e começou a gritar com o segurança indeciso, a poucos passos de nós.

– Dá um tiro nele! – insistia ela, com uma expressão de pavor. Estava fora de si.

– Ele está doente – gemia o pobre segurança, a mão no revólver, ainda no coldre, dividido entre o dever e a compaixão. – Senão, ele não estaria assim tão calmo – esclareceu.

Ali na Cidade Universitária, um certo tumulto já havia se formado na entrada da Nossa Caixa quando o intruso fizera as primeiras tentativas de encostar a cara no vidro e olhar para dentro. Parecia procurar alguém. Era jovem e simpático. Era também inteligente, como o rapaz que, me agarrando pelo pescoço, comandara um assalto numa agência do Banco do Brasil, anos antes, em que fui refém e escudo no tiroteio. Percebeu que, para entrar, as pessoas tinham que esperar uma vaga na porta giratória. Respeitou a fila e, na primeira vaga que abriu. pulou para dentro dela. Todos vimos a giratória rodando, ele caminhando calmo para acompanhar-lhe a rotação, como um cliente normal. Já dentro do banco, enfiou-se no meio da pequena multidão que ali esperava há um bom tempo. Alarmadas com os gritos da mulher, outras pessoas gritavam também, empurravam-se, tentavam subir nas cadeiras e olhavam cada uma para um lado, já que ninguém conseguia vê-lo.

– Pra onde ele foi?! Gritou outro sujeito ali perto, um cliente, cheio de valentia. – Me mostra, que eu mato ele!

Lá no fundo, em face do tumulto e da gritaria, do “atira nele” e do “eu mato ele!”, o outro segurança, sem saber muito bem o que estava acontecendo, levou a mão ao revólver, olhando rapidamente o banco muito cheio, por cima da cabeça das pessoas, tentando ver a cara de um suspeito.

Ao grito de “me mostra, que eu mato ele”, do cliente valentão, quinhentas mãos, finalmente, apontaram para uma mesma direção no meio do banco. O sujeito continuava gritando, numa valentia incrível. Mas, em vez de avançar, recuava de costas, auto-defensivo, para a parede protetora, junto à qual, de pé na cadeira, a mulher de meia idade também gritava, pedindo violência e sangue. Valentes e covardes se irmanaram nos mesmos gestos de horror e medo. Foi um milagre que os seguranças, atônitos, não tivessem iniciado um tiroteio.

No dia seguinte, fui à procura de notícias. Uma contristada funcionária, com verdadeiro pesar, disse-me, então, que o invasor havia sido encontrado e morto, altas horas da noite, pelo pessoal da faxina. Nesta sociedade do medo nem rato escapa.

A hora é de aproveitar, sem fazer marola

Marco Antonio Rocha
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Bric. O leitor já se fartou dessa sigla nos noticiários. Mas ainda há o que dizer.

Em primeiro lugar, que ela é apenas isto, uma sigla, criada na imprensa.

Por extenso se traduz por Brasil-Rússia-Índia-China, quatro países chamados "emergentes", que têm em comum a enorme extensão territorial de cada um e muita gente. Nos quatro vivem entre 42% e 45% da população do mundo. Nada mais eles têm em comum.

É bom frisar bem isso, para que as pessoas não se animem a pensar que esse bloco vai, unido, cuidar da salvação do futuro da humanidade e do combate aos países ricos. Não vai. Cada um dos quatro está tratando de salvar o futuro dos seus próprios habitantes - se tanto e se possível - e de conseguir uma beirinha no banquete dos ricos, para melhorar o passadio. Apenas o governo do Brasil, tendo à frente a dupla Lula-Celso Amorim, parece acreditar numa valente jornada dos quatro para "mudar tudo isso que está aí!" - como não se cansa de apregoar nosso presidente, repetindo o slogan de quando aspirava à Presidência da República e que tratou de engavetar tão logo a conquistou.

No começo do século passado, a economia mundial se dividia entre países ricos e países atrasados. Os ricos eram os mesmos que hoje formam o G-7 (EUA, Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Canadá e Japão), mais alguns da Europa ocidental, como Áustria, Holanda, Bélgica, Espanha e Portugal (com alguma benevolência). A Rússia dos czares estava se acabando naquela época e ninguém sabia o que viria a ser. Hoje, aderiu ao G-7 - é o "oitavo dos sete", diz a piada. O Japão apenas colhia os primeiros resultados da Restauração Meiji - essa, sim, uma revolução que arrancou o país da sua Idade Média e abriu caminho para o que ele é hoje.

O resto era, então, o resto. Países "atrasados" ou países pobres, que não tinham lugar no pôquer internacional. Brasil entre eles, com sua iniciante e desorganizada República.

Mais adiante, já depois da 2ª Guerra Mundial, os atrasados começaram a ser chamados de países "de desenvolvimento médio"; os pobres, de "subdesenvolvidos"; e os ricos, de "plenamente desenvolvidos". Palavrório diplomático para distinguir quem dita cartas de quem não dita nada. Mais recentemente ainda, um grupo dos "de desenvolvimento médio" passou a ser chamado de "emergentes".

Entre estes, há os "novos", principalmente da América Latina, como Brasil, México, Argentina, Chile, Venezuela, etc., e também África do Sul, Austrália, Nova Zelândia, etc. E há os "velhos", alguns velhíssimos, como a China, a Índia, a Rússia e o Egito, sobre os quais cabe perguntar por que cargas d?água ainda não "emergiram", se são tão velhos. Ficarão milenarmente "emergentes"?

A China deve ter tido o seu período de esplendor fulgurante, digno de escolas de samba, na época em que Marco Polo foi lá buscar sedas, bússola, pólvora e macarrão. Hoje tem o terceiro ou quarto PIB do planeta, mas um contingente de habitantes maior que a população do Brasil vivendo na linha da pobreza ou abaixo dela. Porém com uma classe média também maior que a população brasileira, o que a torna um lucrativo mercado. E com o PIB crescendo a 9% ou 10% ao ano, a classe média consumidora chinesa deve estar aumentando bem mais do que a do Brasil.

O que acontece num país de economia muito pobre que começa a se desenvolver? Investimentos relativamente pequenos resultam, em pouco tempo, em aumentos significativos da renda média da população e, portanto, do consumo de bens que exigem pouco input de capital. Isso ocorreu no Brasil na época da instalação da indústria automobilística, que gerou muitos empregos nela própria e nas indústrias e serviços periféricos. Os novos trabalhadores da indústria ou de empresas de serviços, vindos da roça ou de atividades precárias, recebendo agora salários mensais regulares - Lula pode falar disso, pois foi um deles -, tornam-se consumidores vorazes de bens para a casa, desde camas, colchões, mesas e cadeiras até eletrodomésticos, o que alimenta novas empresas e a construção civil.

As economias da China e da Índia estão nessa fase de modernização e de mobilização para o trabalho assalariado já há alguns anos. Isso as torna atraentes para o capital do mundo inteiro, até do Brasil. E elas têm avidez por esse capital para prosseguir no processo de crescimento acelerado. Não estarão nem um pouco interessadas em campanhas antidólar ou de rearrumação do sistema financeiro internacional, que, além de resultados incertos, arriscam abalar seus projetos. A Rússia já tem cadeira cativa na mesa dos "7", não pode ter interesse em virá-la.

Além disso tudo, temos agora o Plano Obama, uma enorme e complicada pretensão de regulagem do mercado financeiro americano, que influirá no mercado mundial, mas que ninguém teve tempo de examinar direito e que ainda terá de passar pelo Congresso dos EUA. Portanto, ninguém sabe como ficará. De qualquer forma, não sairá de lá com a mesma cara com que entrou. De modo que os Brics, ou qualquer país que queira oferecer as suas ideias ou propostas de mudanças e reformas do sistema financeiro mundial, não poderão fazê-lo antes de saber como, afinal, ficou a forma final do plano do presidente dos EUA.

O Brasil projetou uma imagem positiva nesse cenário de incertezas. A imprensa econômica mundial tem ressaltado a serenidade com que o País atravessa a turbulência, a estabilidade do nosso sistema financeiro e a competência das regulações que o Banco Central estabeleceu ao longo dos anos. Além disso, o Brasil não tem os inimigos externos e as perigosas rivalidades internas que afetam a Rússia, a China e a Índia. É hora, pois, de tirar proveito máximo dessa imagem, em termos de atração de investimentos, e não de querer "mudar tudo o que está aí" sem saber como.

*Marco Antonio Rocha é jornalista.

Divisionismo

Raul Henry
DEU EM O GLOBO

Há no Brasil um debate efervescente sobre a ideia de implantar cotas raciais como critério de acesso às universidades federais. Os defensores da tese argumentam que é necessário reparar as injustiças históricas causadas pela escravidão, que geraram no Brasil uma sociedade profundamente desigual, sendo os negros sua principal vítima.

O Brasil é realmente um país injusto. A distribuição da renda, medida pelo indicador de Gini, coloca o país entre as dez nações de maior desigualdade social do mundo. As causas dessa realidade perversa são várias: a colonização baseada na expropriação das riquezas nacionais, o absoluto descaso com uma educação pública e universal e, sem nenhuma dúvida, o regime de escravidão que foi o último a ser abolido entre todos os países ocidentais.

Por que ser contra uma política afirmativa de cotas raciais em um contexto como esse?

A resposta fundamenta-se em vários argumentos, apresentados a seguir:

1 - Reparar essas enormes injustiças históricas exige, sim, políticas afirmativas e compensatórias. Mas elas devem ser extensivas a todos os pobres. Todos eles, sem exceção, sofrem as consequências da falta de oportunidades, da exclusão e da pobreza. Não é aceitável, portanto, na hora de implantar essas políticas, separá-los pela cor da pele. Qual a diferença entre uma criança branca pobre e uma criança negra pobre, que sejam vizinhas em qualquer favela do país?

2 - A escravidão é uma cicatriz que não pode ser negada. E sua maior consequência é que os negros são as maiores vítimas do fenômeno da desigualdade no país. Eles estão em maior proporção entre os mais pobres. Se o que se defende aqui são políticas afirmativas para os mais pobres, evidentemente, a população negra será a mais contemplada por essas políticas.

3 - A sociedade brasileira é injusta. Mas ela construiu um patrimônio único: o Brasil é, indiscutivelmente, a nação mais misturada do mundo. Não é correto tentar separar artificialmente o que naturalmente se misturou.

4 - Os mais recentes estudos sobre o código genético mostram, com toda clareza, que é impossível definir raças sob o ponto de vista científico. Pertencemos a uma única raça. A raça humana.

5 - Não é admissível, depois dos desastres históricos vividos por nações que adotaram o critério racial para orientar a ação do Estado, um retrocesso. Aceitar essas ideias é, por definição, aceitar um Estado baseado em uma ordem jurídica racista, a ser operada por tribunais raciais, instituições cujo destino deve ser o lixo da história.

6 - Alguns apresentam a experiência americana como um caso de sucesso das políticas afirmativas das cotas raciais. No entanto, nada é tão diferente quanto a formação da sociedade brasileira e a formação da sociedade americana sob o ponto de vista étnico.

7 - Alguns também afirmam, com razão, que existe preconceito racial no Brasil. Mas, para combater o preconceito, o instrumento adequado não é uma lei racial.

O Brasil tem uma agenda de grandes desafios pela frente: melhorar a educação básica e o sistema público de saúde, combater a violência nos grandes centros urbanos, aprimorar legislação do trabalho e o sistema tributário, investir em infraestrutura social e econômica, e proteger seu imenso patrimônio ambiental, entre outros. O tema das cotas raciais não se incorpora a esse conjunto por ser inadequado, divisionista e ultrapassado.

Raul Henry é deputado federal (PMDB-PE).

Poema para o filho morto

Nos duros dias do exílio, um dos momentos mais dramáticos e tristes de nossa vida, foi a morte do nosso filho. As alegrias de poder estar em um país democrático, governado por Salvador Allende, depois de fugir da ditadura no Brasil, foram totalmente ofuscados pelo nosso drama pessoal. No enterro, lá estavam ao nosso lado, chorando junto conosco, os queridos amigos Raimundo Santos e sua mulher Akiko, Ulrick Hoffman, Arutana, Armênio Guedes, Zuleika D’Alambert e tantos outros.

Amanhã fazem 37 anos. A dor gerou o poema que segue abaixo:

Graziela Melo

O filho
Perdido
Na noite
Da eternidade
Estranha
Sem
Que possa
Guardá-lo
No colo

Vive,
No meu
Desconsolo

Como um
Condor
Desgarrado
No alto
De uma
Montanha !

Vôa!!!

À noite
As estrela
São ternas
Brilhantes
E belas!!!

Voa,
Pequeno
Condor!!!

Na infinita
Eternidade
Nas asas
Da minha
Saudade

Nas nuvens
Do meu amor
Nas pedras
Da minha dor!!!


Santiago, agosto de 1972

O que se espera do Brasil

Marina Silva
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


NA SEMANA passada, em Oslo, na Noruega, tive a honra de receber o prêmio Sofia e participar da Conferência Internacional de Florestas Tropicais e Mudanças Climáticas, promovida pela Rainforest Foundation.

Voltei ainda mais certa do papel fundamental do Brasil nos esforços mundiais para estabelecer um padrão de governança global que proteja as florestas, sua biodiversidade, suas populações tradicionais e, ao mesmo tempo, reduza as emissões de dióxido de carbono geradas pelo desmatamento.

O Fundo Amazônia é um bom exemplo do que podemos fazer. Ele é fruto do aumento da consciência ambiental no país, ao longo das últimas décadas, impulsionada pelos movimentos socioambientais, com importantes ganhos legislativos, acúmulo de capacidade técnica e institucional e resultados objetivos no controle do desmatamento.

Quando apresentou a proposta do fundo em 2007, na Conferência de Bali, na Indonésia, o Brasil contou com apoio imediato e entusiástico do governo da Noruega, por meio de seu ministro do Meio Ambiente, Erik Solheim. A partir da concepção do Fundo Amazônia, a Noruega criou um programa mundial de proteção das florestas tropicais, destinando-lhe 2,7 bilhões de dólares anuais até 2012.

Nesses dias em Oslo, ouvi apelos do ministro Solheim, de ambientalistas noruegueses, de representantes de comunidades extrativistas e indígenas de dezenas de países para que a implementação do Fundo Amazônia seja bem feita. Pois ele será modelo para programas avançados na luta contra o desmatamento e as emissões de CO2 na maioria dos países que guardam importantes extensões de florestas tropicais.

Essa expectativa não combina com os movimentos de desmonte da proteção ambiental a que estamos assistindo no Brasil. Está em jogo nosso histórico de respostas tecnológicas, construção de base legal, experiência institucional e de governança constituído ao longo das últimas décadas com ousadia e criatividade, nem como participação social.

A Noruega está hoje na liderança dos esforços globais para proteger as florestas tropicais e a vocação brasileira é, sem dúvida, compartilhar essa liderança. O Brasil não pode ficar apenas na posição de quem recebe ajuda. Pelos nossos motivos específicos, que dizem respeito sobretudo a um desenvolvimento para a Amazônia compatível com as necessidades de sua população e com a proteção da floresta. E pelos motivos de nossa responsabilidade com o planeta, que envolve a urgência de reduzir drasticamente as toneladas de carbono que já impactam o presente e ameaçam o futuro.

Marina Silva escreve às segundas-feiras nesta coluna.

De "Secreta" a Lula

Fernando de Barros e Silva
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

SÃO PAULO - Faltava um mordomo para o filme de terror protagonizado pela família Sarney. Já temos "Secreta". Corruptela de secretário, é o apelido de Amaury de Jesus Machado, espécie de faz-tudo de Roseana. "É meu afilhado. Fui eu que o trouxe do Maranhão. Vai em casa quando preciso, duas ou três vezes por semana. É motorista noturno e é do Senado. E lá ganha até bem", explica a governadora.

Os serviços, ao menos em parte, são privados, mas o salário quem paga é o Senado -R$ 12 mil, conforme o jornal "O Estado de S. Paulo".

Sem tirar nem por, "Secreta" é um agregado, o tipo social brasileiro que vive de favor, sob a asa de uma família endinheirada a quem presta serviços variados. Neste caso, porém, quem sustenta o leva-e-traz de Nhonhô e Sinhá é o erário. A Sarneylândia nos conduz assim ao coração do velho patrimonialismo.

"Secreta" é só a cereja do bolo na festa do mandonismo e do compadrio patrocinada pelo Senado. Os Sarney e seus apaniguados valem bem um estudo sobre a permanência da família patriarcal e do poder oligárquico no país do petismo.

Sim, é preciso entender os nexos e cumplicidades entre a velharia velha dos Sarney e a nova velharia representada pelo lulismo. O Brasil virou uma espécie de "democracia senhorial", segundo a expressão recente do sociólogo Gabriel Cohn. E Lula se tornou seu maior avalista.

Ao interceder pela figura "incomum" de Sarney e condenar o "denuncismo" da imprensa, Lula faz apologia do obscurantismo. Usa sua popularidade para descaracterizar um quadro de óbvio descalabro e favorecer a impunidade. Sua fala é um tipo de "Bolsa Oligarca".

Lá atrás, quando sacaram a tese de que o mensalão era uma invenção da mídia, intelectuais petistas definiram um padrão de conduta: entre o partido e os princípios, optaram pela defesa do primeiro. Lula e o neopatrimonialismo sindical que ele sustenta levaram isso ao paroxismo.

Não importa que seja ladrão, desde que seja meu amigo.

-"Secreta", o baralho e as minhas cigarrilhas, por favor...

A cereja do bolo?

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Em conversa sobre os atos secretos do Senado, alguém salientava com exasperação que se trata do descumprimento de uma norma que visa a permitir a vigilância quanto à observância das normas. Com efeito, há algo de peculiar e revelador nos fatos agora denunciados. Fazem-se normas para assegurar conduta ajustada ao bem público; como tais normas com frequência não são cumpridas, é preciso vigiar seu cumprimento. Faz-se então norma que manda dar publicidade às ações relevantes; mas as pessoas deixam de cumprir também essa norma. Que fazer? Norma mandando cumprir as normas?

O que a situação contém de confuso e mesmo paradoxal tem a ver com o fato de que normas cuja efetividade dependa de vigilância são precárias como normas, não sendo objeto da adesão pronta e supostamente espontânea que prescinde da reflexão e do cálculo. A vigilância, trazendo a ameaça de sanções de um tipo ou outro (punições ou prêmios) conforme a conduta se ajuste às normas ou delas se afaste, visa justamente a impor o cálculo nas decisões sobre como agir, o que implica salientar nessas decisões as considerações de interesse: se faço isso ou aquilo, que em princípio corresponde ao meu interesse, sofro consequências negativas (vou preso...) e meu interesse é fortemente contrariado, melhor não fazer - a menos que possa esconder o meu ato.

Num livro de anos atrás, "O Surgimento do Racionalismo Ocidental", Wolfgang Schluchter propõe a distinção entre moralidade, entendida como algo que diz respeito ao indivíduo, e ética, entendida como de natureza coletiva e, em alguma medida, convencional. Apesar do paradoxo envolvido na ideia importante de uma moralidade não convencional, em que o indivíduo pondere os princípios de sua conduta de maneira reflexiva e autônoma perante a coletividade, a questão prévia e decisiva de como se caracteriza, do ponto de vista moral-ético, a política (ou a economia, ou a vida privada em geral) é a de tornar convencionais certas regras - fazer que elas se transformem propriamente numa ética, no sentido de Schluchter, difundindo-se na coletividade e tornando automática, natural e irrefletida a adesão a elas no plano da moralidade dos indivíduos, justamente, em grau importante, pela pressão difusa da coletividade.

A indagação complicada que os atos secretos sugerem é a de como lidar com as limitações da ética coletiva no condicionamento das ações dos indivíduos (de sua moralidade), o que envolve o reconhecimento de que essa ética pode ela própria ser precária como tal, ou seja, em sua difusão e penetração junto à coletividade. Resta, nesse caso, a possibilidade de que, em vez de contar com a adesão moral às normas e seus efeitos na motivação das pessoas, a intensificação da vigilância (que supõe o "artificialismo" da ação legal e institucional da aparelhagem do Estado) altere "apropriadamente" essa motivação por meio dos fatores cognitivos associados ao cálculo dos interesses. Com a eficácia da fiscalização e das sanções ocorrendo de maneira duradoura e corroborando regularmente as expectativas correspondentes que os agentes venham a desenvolver, pode-se eventualmente chegar ao que promete velho preceito sociológico: expectativas que se reiteram e corroboram acabam por se transformar em prescrições ou normas, e o resultado seria propriamente uma cultura ou ética efetiva.

Infelizmente, além da perspectiva de longo prazo e o que pode conter de desalentador, há pelo menos um aspecto adicional nas complicações do assunto. Pois a aposta em percepções e expectativas (cognitivas) que acabem por transformar-se em boas normas esquece algo que as análises e pesquisas mostram há tempos, isto é, o fato de que fatores de ordem cognitiva remetem a um problema de coordenação que se acha na raiz da própria precariedade da situação de que se parte. Se a consolidação das normas em normas reais e mesmo a eficácia da vigilância dependem amplamente da ação dos demais, que tende geralmente a ser ação "esperta" e orientada pelo interesse próprio, estarei sendo simplesmente otário ou trouxa ao agir de maneira moral e condizente com uma ética que na realidade não prevalece. Em outras palavras, até mesmo a percepção que eu chegue a ter da conexão entre minha ação imediata e meu interesse maior dependerá da percepção do grau em que existe uma cultura ou ética efetiva.

Como não cabe contar com a "conversão" mais ou menos súbita e convergente de todos, não há alternativa verdadeira à aposta nos artificialismos da ação estatal, com seu componente repressivo, e no eventual amadurecimento e frutificação "culturais" deles em direção propícia. De toda maneira, o problema a esclarecer não é o de que se chegue a ter atos secretos no Senado (que surgem, de certa forma, como uma espécie de cereja do bolo dos nossos muitos desregramentos menos ou mais recentes), mas antes o do que estará por detrás de algo mais que aqui tenho lembrado às vezes: o fato de que o Brasil, em pesquisas que se repetem há anos, é com sobras o campeão mundial na proporção dos que pensam que, em geral, não se pode confiar nas pessoas. O que sugere uma cultura "errada" já enraizada com força especial.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

O estado das coisas

Luiz Carlos Bresser-Pereira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Ninguém pode assegurar que as políticas adotadas serão suficientes para tirar a economia mundial da crise

AINDA estamos em plena crise financeira global. A previsão de crescimento para os países ricos é negativa; para os países em desenvolvimento, excluídos a China e a Índia, deverá estar próxima de zero. O Brasil, ainda que menos atingido, não é exceção: ficará também sem crescimento do PIB em 2009.

Em toda parte o desemprego continua a aumentar. Para os países ricos, a previsão é que em meados de 2010 suas economias começarão a reagir, mas só saberemos se isso é verdade no último quartil do ano. É consenso que esta é a crise econômica mais grave que o mundo enfrenta desde a Grande Depressão de 1930.

Existe também razoável consenso em relação a sua principal causa. Não se limitam apenas ao fato de que os sistemas financeiros são inerentemente instáveis, de que os mercados financeiros são opacos facilitando a especulação e o surgimento de euforias ou de bolhas seguidas por pânico e recessão.

Depois de 1929, os países compreenderam que precisavam criar instituições para prevenir crises: bancos centrais que assegurassem liquidez e forte regulação das instituições financeiras. Por outro lado, surgiu uma nova teoria econômica -a macroeconomia keynesiana- para orientar a política econômica.

Entretanto, quando o neoliberalismo se tornou dominante, nos anos 1980, a nova teoria foi arrogantemente rejeitada, e os mercados financeiros foram irresponsavelmente desregulados. A causa da crise, portanto, foi a desregulação neoliberal.

A resposta à crise, porém, foi keynesiana, seja porque os bancos centrais inundaram suas próprias economias e a economia mundial com liquidez (dinheiro), seja porque os Estados Unidos, o Japão e a China, e, neste caso, também o Brasil, adotaram as necessárias políticas fiscais expansivas. Não fosse essa reação tão pronta e tão firme, a crise atual seria provavelmente pior do que a Grande Depressão. Entretanto, ninguém pode assegurar que as políticas adotadas serão suficientes para tirar a economia mundial da crise.

Sabe-se apenas que a maioria dos países chegou ao limite de suas possibilidades. Isso é principalmente verdadeiro em relação aos altíssimos déficits fiscais e ao endividamento público previstos. Os países não tinham alternativa senão realizar essa expansão fiscal: era necessário salvar os grandes bancos e restabelecer a demanda.

Certos países se omitiram ou foram tímidos. Esse foi o caso do Brasil em relação à política de juros; foi também o caso da União Europeia em relação à política fiscal. Os Estados Unidos poderiam ter orientado sua expansão fiscal para o pagamento das hipotecas das famílias e para a extensão do seguro-desemprego.

O presidente Obama caminhou na segunda direção, mas os conservadores lograram desviar uma parte dos US$ 800 bilhões para a redução de impostos cujo efeito sobre a economia é menor. Quanto aos títulos tóxicos, a solução de mercado com subsídio, proposta pelo Tesouro dos Estados Unidos, parece não haver funcionado, mas é preciso esperar.

No geral, o que era essencial foi feito, e agora os governos não têm escolha senão aguardar -e torcer para que as políticas funcionem. A matemática usada pelos economistas ortodoxos para justificar a desregulação dá a suas teorias uma aparência científica.

O que mais uma vez se comprovou, porém, é que a teoria econômica não nos oferece nenhuma certeza, a não ser a de que, além de arrogantes, esses modelos matemáticos que partem da suposição de racionalidade -em vez de partir dos fatos- são mistificadores e perigosos.

Luiz Carlos Bresser-Pereira, 74, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".