terça-feira, 14 de julho de 2009

A África é aqui

Clóvis Rossi
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

SÃO PAULO - É triste verificar que pedaços da exortação à África feita no sábado pelo presidente Barack Obama se aplicam ao Brasil, sem necessidade de reescrevê-los. É a própria essência do discurso que vale para o Brasil ("a África não necessita de homens fortes, necessita de instituições fortes").

Vale também a sua definição de que, "no século 21, instituições transparentes, capazes e confiáveis são a chave para o sucesso -parlamentos fortes, forças policiais honestas, juízes independentes, uma imprensa independente, um setor privado vibrante, uma sociedade civil".

"São essas coisas -disse ainda o presidente- que dão vida à democracia, porque é o que importa na vida cotidiana das pessoas."

Temos instituições transparentes, capazes e confiáveis? Só o mais ufanista dos ufanistas dirá que sim.

Temos um parlamento forte?

Não parece exagero dizer que os ativos do Brasil neste princípio do século estão mais, muito mais, na sociedade civil do que nas instituições públicas.
É claro que há, sim, juízes independentes, mas alguém aí é capaz de jurar que o Judiciário é transparente, capaz e confiável?

Do que se trata é de instituições fortes, não de personalidades de exceção em um panorama que, no geral, é bastante medíocre.

Construir instituições fortes é a tarefa que o Brasil precisa começar a executar com a maior urgência.

Passou a fase de redemocratização, vencida aliás com certo garbo. Passou a fase de estabilização da economia, igualmente superada com competência, depois de décadas em que a inflação parecia ser uma característica tão permanente do país como o sol ou a lua.

Não é missão para um só partido, um só poder, um só pensamento.

Tampouco é tarefa simples. Mas é começar já para poder deixar de ser mero mercado emergente e se tornar uma nação decente.

Faltam 3 milhões de empregos

Jean Maninat
DEU EM O GLOBO

Nas ruas da América Latina a crise econômica se define sem ambiguidade: desemprego.

De fato, em 2009 a região deveria criar mais de 3 milhões de postos de trabalho somente para recuperar os níveis do ano anterior.

Mas isto não vai ocorrer.

O grande desafio das economias latinoamericanas frente à crise é produzir empregos. Trata-se de apagar os rastros mais profundos que esta recessão nos deixa, a que golpeia as pessoas e suas esperanças. Além disso, os postos de trabalho são cruciais para restabelecer o consumo e apoiar o círculo virtuoso da recuperação.

Agora que começaram a ser detectados sinais de que a crise poderia ter chegado ao fundo, ou que, ao menos, tenha amainado, esse desafio é ainda mais urgente: segundo estudos da OIT, as crises afetam de maneira instantânea o emprego, mas, quando a recuperação chega, isto demora muito a notarse nos mercados de trabalho. Poderíamos conviver com esta falta de oportunidades de trabalho por mais cinco anos, com ou sem crise.

Quem busca esses milhões de empregos na região? Já sabemos que um número importante de pessoas perdeu o trabalho devido à crise. Além disso, deve-se levar em conta que a cada ano entre 3 e 4 milhões de pessoas se incorporam aos mercados de trabalho regionais, principalmente jovens, para os quais esta crise traduzse em falta de expectativas.

A turbulência que vivemos agita o mundo dos indicadores. As retificações são frequentes. Em todo o caso, os últimos dados disponíveis nos falam de um crescimento negativo em torno de 1,7 por cento na região latino-americana.

Este é o final de um ciclo positivo de cinco anos de crescimento e de queda no desemprego cuja taxa (urbana) agora poderia subir dos 7,5% registrados em 2008 para algo entre 8,7% e 9,1% em 2009, de acordo com um cálculo realizado conjuntamente pela Cepal e pela OIT.

Isso significa que entre 2,8 e 3,9 milhões de pessoas poderiam somar-se às filas de desemprego, que no ano passado já afetava quase 16 milhões de latino-americanos.

Quando se fala de postos de trabalho, atrás dos números sempre há pessoas.

Neste caso, esses números são um insumo poderoso para justificar que as políticas econômicas desta região coloquem a geração e preservação de postos de trabalho como seu objetivo fundamental. Isso, que parece óbvio, nem sempre é assim. Durante anos os esforços se concentraram em outros indicadores, assumindo que o mercado de trabalho reagiria automaticamente, o que, com frequência, não aconteceu. No momento atual, já não existe espaço para essas experiências.

Enfrentar esta crise laboral é a meta fundamental do Pacto Mundial para o Emprego, aprovada por governos, empregadores e trabalhadores de todo o mundo na reunião anual da OIT em Genebra.

Este pacto é um compromisso de buscar o caminho mais adequado com o objetivo de gerar postos de trabalho, redirecionando investimentos, investindo recursos para estimular a economia real, pondo em prática políticas para que as empresas sejam sustentáveis, protegendo as populações mais vulneráveis, recorrendo ao diálogo social para obter acordos, entre outras recomendações.

Na América Latina existem vários países onde se começou a trilhar este caminho. Mas é fundamental não perder de vista o objetivo de gerar trabalho decente, de converter os planos em ações e não nos desviarmos do caminho. Se não tivermos êxito, os que buscam emprego se sentirão frustrados e decepcionados, o aumento da pobreza será notório, a saída da crise poderá ser imobilizada e tudo isto poderia afetar a governabilidade democrática.

Jean Maninat é diretor regional da Organização Internacional do Trabalho para a América Latina e o Caribe.

Atropelado pelos fatos

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Uma a uma, desde as primeiras denúncias ainda no início do ano, o presidente do Senado, José Sarney, perdeu todas as chances que lhe foram dadas para tomar providências e, por demonstração de iniciativa, assumir o controle na administração da crise que assola a Casa.

Negou as evidências, contemporizou com toda sorte de irregularidades, fugiu de suas responsabilidades, anunciou ações inócuas, escorou-se na força política do presidente da República, fez vista grossa a chantagens contra adversários, desconversou o quanto pôde.

Tanto deixou de fazer e por tantas vezes e com tamanha imprudência pôs à prova a própria credibilidade que, junto com as oportunidades de agir, perdeu também a autoridade e a majestade.

Agora é alvo de diversas representações no Conselho de Ética e está em vias de se tornar refém de uma tropa de choque composta por suplentes sem voto, gente de vida pregressa contestada na Justiça e de má fama junto à opinião pública.

Tropa convocada especialmente para impedir que tenha o mandato cassado por quebra de decoro parlamentar.

Nesse quadro é que o presidente do Senado decidiu anular os 663 atos secretos editados ao arrepio do princípio constitucional da publicidade, aplicado a toda ação de natureza pública, cuja existência ele mesmo negara e, depois, atribuíra a meros "erros técnicos".

A despeito da opinião de vários senadores, que defenderam a posição publicamente, Sarney, com o aval da Mesa Diretora, preferiu o estratagema de regularizar a ilegalidade mediante publicação dos atos com data retroativa à época da assinatura. Entre os "direitos" dos beneficiados e o Estado de Direito, a direção do Senado optou por ferir o juramento de cumprir a Constituição.

O recuo de ontem não tem o valor da convicção, porque foi pautado pela necessidade individual de sobrevivência. O respeito à Constituição teria, sim, ficado estabelecido como a real motivação se a anulação tivesse sido ordenada de imediato, por uma questão de princípio.

Tal como se valeu da prerrogativa agora - independentemente de resultados de sindicâncias, pois não são elas que determinam a ilegalidade de atos validados à revelia da lei - o presidente do Senado poderia, e deveria, tê-la invocado a tempo de preservar a própria credibilidade.

Agora, o senador José Sarney não corre, como se diz equivocadamente, atrás do prejuízo. Isso ele fez quando se dispôs a presidir o Senado pela terceira vez, na ilusão de encerrar a carreira política ainda na posse do poder de mobilizar poderes na República.

Constatado o erro de cálculo, Sarney corre mesmo é atrás de obter algum benefício para se distanciar o máximo possível do imenso malefício autoimposto e que o levou ao caminho do declínio humilhante.

Uma tentativa de recuperação de fôlego. Suficiente para organizar a saída, nessa altura já inexorável, mas à qual Sarney gostaria muito ver registrada na companhia do adjetivo "honrosa".

Quartel de Abrantes

Continua tudo como dantes na seara tucana, no que tange à sucessão presidencial. O governador José Serra continua sendo o candidato do PSDB, cuja cúpula continua achando que o melhor plano é a composição partidariamente unitária com o governador Aécio Neves de vice.

A filiação de Itamar Franco ao PPS e, consequentemente, sua integração à aliança de oposição à candidatura patrocinada pelo Palácio do Planalto, é um fator facilitador. O desejo de Itamar de concorrer a uma das vagas de Minas Gerais ao Senado "empurra" Aécio para mais perto da solução puro-sangue.

Itamar tem, por isso, recebido homenagens antes inimagináveis. Como a série de citações ao nome dele na sessão solene no Senado em comemoração aos 15 anos de Plano Real. Nem um só senador tucano se esqueceu de dividir com ele a paternidade do plano.

Lembrança recente, quando passou a ser eleitoralmente conveniente, já que o crédito dado a Itamar jamais ultrapassou o limite do mérito pela nomeação de Fernando Henrique Cardoso para o Ministério da Fazenda.

A boataria sobre a possibilidade de Serra desistir da Presidência e disputar a reeleição por ora é só uma boataria.

Muitíssimo conveniente ao governador de São Paulo que, assim, obtém uma série de vantagens: alivia a pressão dos aliados para entrar em campanha desde já, mantém alto o prestígio de Aécio Neves como possível candidato, reduz a tensão no campo adversário inibindo o início da temporada de ataques e assegura visibilidade às ações administrativas do governo do Estado.

No momento, José Serra não está em dúvida. Se resolver disputar mais um mandato de governador, terá sido uma mudança de posição decorrente não de um dilema do presente, mas de uma alteração das chances reais de vitória, situação que só será examinada de verdade em 2010.

Preço alto

Marcos Nobre
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

DESDE O PRIMEIRO governo FHC, o eleitorado decidiu colocar o PT como um dos polos da política brasileira. Depois do trauma do mensalão, em 2005, Lula decidiu aceitar as regras do jogo postas por seu antecessor. Só que o PT não estava disposto a se tornar um gestor político de tipo tucano e terceirizou a tarefa -para o próprio Lula, no caso.

O arranjo -de psicologia política, por assim dizer- foi então mais ou menos o seguinte. Posto de joelhos depois do mensalão, o PT engoliu tudo o que um Lula em pânico do impeachment lhe enfiou goela abaixo. Ao mesmo tempo em que pôs nas costas de Lula todo o ônus por fazer o jogo mais rés-do-chão da política tradicional, o PT escorou-se na popularidade do presidente e se colocou como vítima fiel do seu necessário pragmatismo da governabilidade.

Afinal, do outro lado estavam os inimigos. E, apesar de tudo, ainda havia espaços de poder para implementar algumas das bandeiras tradicionais do partido. E, não menos importante, o presidente é o mais popular da recente história democrática. Negócio bom para os dois lados.

Até que Lula resolveu inventar uma candidata quase três anos antes da eleição presidencial, instalando uma confusão no sistema político como raras vezes se viu. Impôs sem discussão o nome ao PT.

Insistindo em um nome desconhecido, Lula deu a senha para o PMDB cobrar -e conseguir- um preço cada vez mais exorbitante pelo seu apoio. Que, aliás, vale só tempo de TV e olhe lá.

Quando foi anunciada a doença de Dilma Rousseff, subiu mais uma vez o preço. A irresponsabilidade máxima de Lula de dizer que a ministra "não tem mais nada" teve como contrapartida política nada menos do que a imposição ao PT da defesa de Sarney.

É verdade que, entre outras malfeitorias, a bancada do PT no Senado -com honrosas exceções- tinha já no seu currículo a salvação de Renan Calheiros da cassação.

Mas 2007 já vai longe. E a defesa de Sarney agora não vai passar em brancas nuvens para o eleitorado em 2010.

Foi por isso que Lula teve de intervir e cobrir o presidente do Senado com seu manto de popularidade redentor. Um pedido, aliás, do próprio PT para poder fazer vista grossa para a baixaria generalizada -de que não escapam integrantes da sua própria bancada no Senado, lembre-se.

Hoje, o PT só vai conseguir manter a pretensão de continuar a ser um dos polos da política brasileira se confrontar Lula. Porque sua posição no momento é a de pagar por Lula a conta da chantagem a que o próprio presidente decidiu se expor. E a conta não vai parar de subir.

Um símbolo sob suspeita

Raymundo Costa
DEU NO VALOR ECONÔMICO


O governo encontrou a fórmula para instalar a CPI da Petrobras, impedir que ela funcione e ainda assim não desafiar o Supremo Tribunal Federal (STF), que já consagrou em jurisprudência: a instalação de comissões parlamentares de inquérito é um direito da minoria.

Se dependesse só do governo, do PT e dos partidos aliados, a CPI não seria instalada. Mas não houve quem demovesse o senador Álvaro Dias (PSDB-PR) da ideia de recorrer ao Supremo. Consultado informalmente, o STF respondeu por gestos e sinais de fumaça que atenderia o pedido da oposição.

No histórico das CPIs, descobriu-se que a dos Correios (mensalão) foi instalada pelo decano dos seus integrantes (à época o senador Jefferson Peres, morto em 2008), mas só depois de algum tempo começou a funcionar efetivamente, com a eleição do presidente e a designação do relator
Consultado, o senador Delcídio Amaral (PT-MS) descreveu como se deu todo o processo protelatório que culminou com uma eleição entre ele e o senador César Borges, do Democratas.
Vencedor, coube a Delcídio, como presidente, designar o relator da CPI - Osmar Serraglio (PMDB-PR).

A ideia agora é que o senador Paulo Duque (o decano dos senadores indicados) convoque a reunião, mas não se faça a eleição de presidente e a designação do relator. Isso ficaria para depois do recesso, e o funcionamento da CPI passaria a depender então do clima político de agosto.
Trata-se de um mês que não carrega boas lembranças para a política brasileira, mas o governo está confiante na política de redução de danos que traçou enquanto se discutia a instalação da CPI, lá se vão dois meses desde o requerimento de Dias.

O Palácio do Planalto se preparou para o confronto, mas também manteve discretos contatos com os mais importantes líderes da oposição, particularmente do PSDB. Na área dos patrocínios, como aquele feito à Fundação José Sarney, o "banco de dados" governista, como diria a ministra Dilma Rousseff, também está pronto.

Num levantamento preliminar, descobriu-se que a Petrobras fez menos patrocínios no governo Lula do que durante o período de governo tucano - o que é óbvio, pois a comparação é de oito anos (FHC) com seis anos e meio (Lula). Pode pegar algum deputado do PT? Pode, mas sem causar maior estrago político, segundo se crê nos meios próximos ao presidente Lula.

O governo insiste que o caso de Sarney é exemplar: a Petrobras fez um contrato com uma ONG de um ex-presidente da República, nos termos da legislação (Lei Rouanet), e que nunca poderia imaginar que o dinheiro pudesse ser desviado.

O governo entra em "alerta amarelo" se a CPI, caso seja instalada, passar a se imiscuir em contratos, sobretudo internacionais, de modo a tirar vantagem eleitoral. Para este caso, está prontinho um discurso nacionalista de defesa da estatal. A idéia é deixar a oposição em maus lençóis, como deixou Geraldo Alckmin nas eleições de 2006, quando encurralou o candidato tucano com a acusação de que ele, eleito, venderia Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e Petrobras.

Aliados do governo dizem que só quem já trabalhou na estatal tem noção do que é a Petrobras no inconsciente do brasileiro. O governo imagina que organizações da sociedade civil como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Associação Brasileira de Imprensa (ABI) sairiam às ruas em defesa da empresa, por exemplo, na hipótese de um contrato internacional não vir a ser assinado - ou suspenso - por causa da CPI.

Em termos políticos, as conversas com os partidos da oposição levaram o governo a crer que a CPI não lhe interessa. Um cacique tucano foi advertido de que eventuais contratempos contratuais da Petrobras cairiam no colo de seus candidatos a presidente, seja ele José Serra, governador de São Paulo, ou Aécio Neves, o governador de Minas Gerais.
Das conversas com aliados e oposição, emissários do governo saíram convencidos de que é mais fácil o PMDB querer instalar e fazer funcionar a CPI para poder negociar posições melhores no governo e na eleição de 2010.

A Petrobras também pressionou fornecedores e prestadores de serviços que costumam financiar as campanhas não só dos candidatos do governo, como também os da oposição.

Quando entra numa conversa com a oposição, o governo sabe que ela terá de mostrar alguma coisa a seu eleitorado, de modo a não parecer que recuou ou que foi derrotada. Provavelmente a cabeça de algum diretor da estatal

Como as denúncias são na área do gerente executivo de Comunicação Institucional da Petrobras, Wilson Santarosa, setores do governo imaginam que ele é "o cara". A Petrobras não quer, mas nunca antes a estatal esteve tão na defensiva como agora.
No que se refere a Sérgio Gabrielli, presidente da estatal, o Planalto não admite sequer que ele sente no banco da CPI. Resta saber com quantos tanques conta a oposição e o que espreita no horizonte o PMDB: a instalação da CPI pode significar o início do fim do governo Lula ou o começo de outro ciclo do PT na Presidência.

Salto alto

O PT se preocupa com o desassombro de Lula. Está certo que os índices de aprovação do presidente são inéditos, à esta altura do governo, quando beiram os 80% da opinião pública. Mas isso não deveria implicar, na opinião de líderes partidários, que ele deixasse de se precaver e tentar não se expor tanto em algumas situações embaraçosas.

Exemplo citado: Lula não tem nenhum cuidado na defesa que faz do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP). Talvez por se achar blindado por seus índices de popularidade. Petistas acham arriscada a postura do presidente porque interpretam que muitas das denúncias contra Sarney, como a de empregar familiares no Senado, bateram fundo na população.

Raymundo Costa é repórter especial de Política, em Brasília. Escreve às terças-feiras

Sentimento do mundo

Rubens Barbosa
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Nos últimos 50 anos, os Estados Unidos foram vistos como a "nação líder do mundo livre", por muitos que aceitavam essa liderança, ou como "imperialista" - impondo a sua vontade, escorada no poderio econômico, financeiro ou militar -, segundo os que contestavam a hegemonia de Washington.

O arrogante unilateralismo norte-americano, respaldado pela mais poderosa máquina de guerra jamais construída e pelas vantagens da globalização financeira, econômica e comercial, fez os Estados Unidos perderem a credibilidade e o respeito no concerto das nações, ao longo dos últimos dez anos.

Isolados, os Estados Unidos passaram a concentrar críticas quase universais e tiveram de absorver os custos de uma guerra impopular no Iraque, além do desgaste, sobretudo, em razão das posturas ideológicas de extrema direita adotadas por um dos piores governos da história política norte-americana. Ao mesmo tempo, a situação econômica interna continuou a se deteriorar e os múltiplos déficits na economia, a aumentar. A crise que hoje tanto afeta os mercados no mundo inteiro surgiu nos Estados Unidos, que, abalados econômico-financeira e politicamente, lutam para controlar a recessão e diminuir o desemprego e as perdas da classe média.

O esforço para recuperar a economia pôs em segundo plano as preocupações do país com sua política externa, tornando difícil que os Estados Unidos possam exercer, nos dias de hoje, uma liderança efetiva para a solução de alguns dos principais conflitos globais. Os grandes problemas ou se agravam, como no Paquistão, no Irã e no conflito Israel-Palestina, ou se paralisam, como nas reformas das instituições político-financeiras, herança do pós-guerra, como a das Nações Unidas, do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial.

Apesar de tudo, os Estados Unidos continuaram no centro dos acontecimentos globais.

É curioso notar o teste por que passa a teoria, comum nos meios políticos e acadêmicos norte-americanos, segundo a qual o mundo, para se manter estável e avançar economicamente, necessitaria sempre da liderança do país mais importante e poderoso da época, como foi a Inglaterra e, agora, os Estados Unidos. Contestada pela recusa de muitos em aceitar a hegemonia de Washington, a comunidade internacional enfrenta o desafio de demonstrar que a teoria é equivocada e que grandes decisões podem e devem ser tomadas como resultado de um esforço coletivo, e não da vontade da mais poderosa das nações.

A ironia em tudo o que estamos vendo acontecer é que nunca, nos últimos 50 anos, a potência dominante se viu tão vulnerável e enfraquecida, enquanto a maioria dos países tanto dela depende para o fortalecimento da economia e para a busca de soluções negociadas para os principais problemas políticos, econômicos e financeiros globais.

Estamos num período de transição e de paralisia no cenário internacional - um mundo sem liderança -, em que países desenvolvidos e em desenvolvimento ficam à espera da recuperação da economia norte-americana para evitar uma recessão mais forte e da restauração da credibilidade de sua política externa. Temo que esse impasse ainda perdure pelos próximos dois ou três anos.

Nenhum país está equipado para assumir o papel de liderança desempenhado até aqui pelos Estados Unidos. Nem a China, a União Europeia ou os países emergentes.

Apesar de tudo e de todas as restrições políticas aos Estados Unidos, muitos governos estão ajudando o país a buscar soluções para a crise de sua economia. Os recursos - estimados em US$ 2 trilhões - necessários para financiar o déficit orçamentário americano no corrente ano estão sendo fornecidos, entre outros, por países como a China e o Brasil, não exatamente seguidores incondicionais de Washington.

Pode parecer uma afirmação difícil de aceitar por muitos, mas o fato é que, em certo sentido, jamais tivemos um mundo mais unipolar do que agora.

O mundo esperou ansioso pelos primeiros discursos de Barack Obama para entender os rumos da política externa dos Estados Unidos no tocante ao Oriente Médio, às relações com a Europa, com a América Latina, com a África, com a China e com a Coreia do Norte. Como será a atitude em relação aos extremismos (a palavra terrorismo não foi utilizada no pronunciamento do Cairo sobre a relação com o Islã) e à não-proliferação de armas nucleares?

A volta do crescimento econômico, a restauração do crédito internacional, a revitalização do comércio global, a questão do nacionalismo econômico e o protecionismo comercial na área econômica, a reestruturação do processo decisório global, político e econômico, financeiro e comercial, a forma de evitar novos conflitos externos e o equacionamento dos atuais, tudo depende da ação dos Estados Unidos. Seja ela positiva ou negativa.

Os países terão de encarar o papel dos Estados Unidos no mundo a partir de como eles emergirão da crise que está afetando todos e da reação de Washington às novas realidades políticas e econômicas. Como "o resto do mundo" vai reagir quando os Estados Unidos ressurgirem da crise relativamente ainda mais fortes?

Sabendo como os Estados Unidos colocam o interesse nacional acima de tudo, no momento em que a situação econômica se normalizar, a probabilidade é de que o poderio de Washington volte a ser exercido, com estilo e tom diferentes. Os sinais, até aqui, são positivos, como indicam as reações de Washington em relação ao Iraque, ao Irã e, agora, a Honduras. As propostas do USTR para a retomada das negociações de Doha e alguns aspectos da nova política sobre mudança de clima são mais negativos.

Tendo só duas mãos e o sentimento do mundo, esperemos que, diferente de Drummond, ao amanhecer de uma nova era pós-crise, "esse amanhecer não seja mais noite que a noite".

Rubens Barbosa, consultor de negócios, é presidente do Conselho de Comércio Exterior da Fiesp

Queda real

Miriam Leitão
DEU EM O GLOBO


A ex-secretária da Receita Federal Lina Vieira não caiu por apenas um motivo. O órgão já está sob intervenção da Secretaria Executiva do Ministério da Fazenda há muito tempo, e tem sido paulatinamente esvaziado. O caso Petrobras está se tornando um manual do que não se deve fazer no setor público do país. Nada disso será resolvido com a retirada da secretária.


A reclamação, que não foi feita publicamente, mas que chegou aos jornais, é que o ministro da Fazenda, Guido Mantega, estaria irritado com o fato de não ter sido informado do caso Petrobras antes que saísse na imprensa, já que ele é membro do conselho de administração da empresa. Ora, este era mais um motivo pelo qual a Receita não deveria mesmo ter comunicado nada ao ministro.

Se o fizesse, estaria consagrado que a Petrobras é um contribuinte diferente dos outros porque a Receita tem que consultar o ministro antes de tomar qualquer decisão a respeito; como Mantega também é membro do conselho de administração da estatal, a questão fica ainda mais delicada.

Exatamente por ter os dois chapéus, o ministro não deveria querer saber coisa alguma sobre a empresa.

A atuação da Receita Federal no caso Petrobras foi opaca, somente para usar uma palavra mais doce. Ela soltou uma nota deixando claro que condenava a opção da empresa pela mudança de regime tributário, mas depois disso nada mais fez.

Disse isso através de uma nota, que se seguiu à divulgação da reportagem do GLOBO sobre a redução do imposto em mais de R$ 4 bilhões pela mudança do regime fiscal. A empresa define como “erro técnico” dizer que ela deixou de pagar imposto; ela teria apenas se creditado por ter pago a mais no antigo regime fiscal.

Mas o que a Receita disse na nota divulgada na ocasião é que o contribuinte não pode fazer essa alteração no meio do exercício.

Se não podia, passou a poder, porque a Petrobras não foi chamada até hoje para se explicar; e agora a secretária caiu. Pior, como a declaração do Imposto de Renda Pessoa Jurídica foi adiada pela Receita — fato que não acontecia há mais de uma década — a Petrobras nem apresentou sua declaração.

Como, aliás, nenhuma empresa. Normalmente o prazo era 30 de junho.

Tudo o que se sabe até agora veio a público por meio de fontes oficiosas, porque oficialmente o Ministério da Fazenda não esclarece o que afinal de contas está acontecendo. Pode haver motivos para demitir um funcionário, mas demitilo pelo fato de ele — no caso, ela — não dar um tratamento privilegiado a um contribuinte como a Petrobras é espantoso.

A Receita está funcionando mal e isso não tem a ver apenas com a secretária que sai. Ela está sendo perigosamente politizada e esvaziada nos últimos anos. E fazer isso com o Fisco pode ser construir as bases de uma crise duradoura. Os auditores têm que ter ambiente para fazer seu trabalho; os técnicos têm que focar no mais importante que é arrecadar, em vez de dividir-se em grupos e facções com rivalidades alimentadas pelas próprias autoridades. E simplesmente o órgão não pode ser esvaziado por decisão de quem está na administração pública temporariamente.

A Receita Federal permanece lá e o país precisa que ela funcione corretamente, sempre.

A arrecadação tem caído porque a economia está sofrendo com a crise; porque têm sido concedidas muitas desonerações para os setores que têm mais poder de pressão; porque o comando da Receita Federal foi dividido e as ordens passaram a ser ambíguas.

Mesmo assim, há quem faça outras contas. Entrevistei o presidente do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), Gilberto Luiz do Amaral, e o economista Alexandre Marinis, da Mosaico consultoria política, na semana passada pela GloboNews, e ambos disseram que a receita líquida do Governo Central não está em queda.

Receita líquida é a arrecadação que fica para a União depois do repasse feito a estados e municípios. Ela estaria se mantendo praticamente estável em termos nominais de 2008 para 2009, mesmo com a crise.

Gilberto Amaral afirmou que do ponto de vista da arrecadação da Receita, não há nenhum motivo para a saída de Lina Vieira. Pelo contrário, ela teria tentado implementar um programa de centralização da fiscalização.

Além disso, teve uma preocupação maior com o atendimento ao contribuinte nas delegacias do órgão.

— A queda da arrecadação da Receita está relacionada à crise econômica e não a problemas de gestão no órgão — afirmou.

Alexandre Marinis afirma que de janeiro a maio houve uma retração de apenas 0,2% em relação ao mesmo período do ano passado na receita líquida nominal do Governo Central: R$ 234,9 bi em 2008 contra 234,5 bi em 2009. A propósito, parte desse resultado é o aumento dos repasses de dividendos feitos pelas estatais. As contas públicas estão se deteriorando porque os gastos estão crescendo. Além disso, todas as previsões de arrecadação foram feitas a partir de um crescimento inflado do PIB deste ano.

Ontem, Mantega afirmou novamente que a economia vai crescer 1%, enquanto o mercado estima retração de 0,34%, como mostrou o Boletim Focus.

Mesmo que a mudança de regime da Petrobras tenha sido legal, ela não é usual e é um sinal de que a empresa está procurando todos os meios possíveis para fazer caixa. Como o governo está conseguindo manter sua receita líquida exatamente extraindo mais das estatais, todo esse imbróglio é no mínimo bizarro.

A Receita está em crise, o caso da Petrobras continua suspenso no ar. As perguntas continuam aguardando respostas.

Nada disso se resolve com a saída da secretária.