quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Reflexão do dia - Maquiavel

E como há três espécies de cabeças – uma, que entende as coisas por si mesma, outra que sabe discernir o que os outros entendem, e, finalmente, uma que não entende nem por si nem sabe ajuizar do trabalho dos outros (a primeira é excelente, a segunda muita boa e terceira inútil”.


(Nicolau Maquiavel, em “O Príncipe”, 1513, pág.97 – Editora Nova Cultural, São Paulo, 1987)

Merval Pereira:: Disputa pela esquerda

DEU EM O GLOBO

O Lula hoje entrando no seu último ano de mandato estendido é um político em permanente ascensão popular, com uma votação que vai mudando territorialmente ao longo do tempo, até se transformar no principal líder da esquerda brasileira. Lula teve 17% da votação em 1989, 27% em 1994, e 32% em 1998, o que os especialistas chamam de “crescimento endógeno”, agregando os votos da esquerda: os 17% de Lula com os 16% de Brizola, em 1989, somam 33%; em 1994, os 27% do Lula com os 3% do Brizola chegam a 30%; e Brizola e Lula juntos em 1998 recebem 32% dos votos.

Mas essa liderança no espectro político de esquerda tem um contra pontono PSDB, a expressão de uma esquerda social-democrata que o derrotou duas vezes no primeiro turno graças à capacidade de Fernando Henrique Cardoso de ampliar sua coalizão partidária para a centro-direita.

O Lula que saiu, portanto, de 17% da votação no primeiro turno em 1989 para 48,5% no primeiro turno da eleição de 2006, e repetiu a mesma votação expressiva do segundo turno de 2002, recebendo mais de 60% dos votos do eleitorado, é um Lula diferente, mas que persegue a liderança da esquerda como um ativo político importante.

Em 1989, quando se identificava como “o candidato da classe trabalhadora”, tinha sua base nesse eleitorado de classe média de esquerda, basicamente nas capitais, e em concentrações industriais, como o Vale do Aço, o Sul Fluminense e a região do ABCD paulista.

E dependia do PT.

Quando se afirma como o principal líder de esquerda, para chegar à Presidência em 2002, tem que fazer o mesmo movimento para a centro-direita já feito pelo PSDB, e acaba indo para o interior do país, tornando-se hegemônico no Nordeste.

Na relação entre o Brasil e os Estados Unidos, o que está havendo é uma disputa de espaço político de influência na América Latina, também a partir da esquerda.

O que há de novidade é que o Brasil já é percebido como mais importante, em certas partes e em certos assuntos na região, do que os Estados Unidos, mesmo que o presidente Barack Obama seja o líder mais popular, suplantando o presidente brasileiro, que é o líder regional mais popular.

O fato de o responsável pela América Latina no Departamento de Estado, Arturo Valenzuela, ter dito que os Estados Unidos não têm nada contra a aproximação do Brasil com o Irã, mas espera que use esse relacionamento político para pressionar aquele país a aceitar as regras internacionais quanto ao uso pacífico da energia nuclear, só mostra que a contrariedade do governo Obama com a proteção diplomática que o governo brasileiro deu ao Irã quando todo mundo Ocidental, mais China e Rússia, o pressionavam, é menor do que a admissão de que o Brasil não é igual à Venezuela ou à Bolívia, países que foram criticados diretamente pela secretária de Estado, Hillary Clinton, justamente pela aproximação com o Irã.

E o Brasil é diferente não apenas por ser o líder regional, com crescente influência na política internacional, mas sobretudo porque Lula é identificado como uma liderança de esquerda não radical e democrática.

Foi Fidel Castro, o ditador cubano, quem dividiu os governantes de esquerda da região em “revolucionários” e “tradicionais”. A esquerda “tradicional”, que teria mais afinidades com a social-democracia europeia, seria representada por políticos como Lula ou Michelle Bachelet, do Chile, ou Tabaré Vázquez, do Uruguai, substituído por outro moderado, o ex-tupamaro José “Pepe” Mujica.

Os “revolucionários” estariam representados por Hugo Chávez, da Venezuela; Evo Morales, da Bolívia; Rafael Correa, do Equador, ou Daniel Ortega, da Nicarágua, e a eles já não bastaria a democracia representativa.

Todos estão envolvidos, de uma maneira ou outra, em ações para ampliar seus poderes.

Assim como Manuel Zelaya em Honduras, outro ponto de discórdia entre Estados Unidos e Brasil.

A Lula interessa manter essa dicotomia, desde que seja ele o elo entre os dois lados da esquerda e, muito ao contrário, quanto maior a radicalização de um Hugo Chávez, mais o presidente brasileiro se credencia como o negociador da estabilidade política na região.

Embora a esquerda latinoamericana sempre tenha tido uma relação mais próxima do Partido Democrata, e o senador Barack Obama seja considerado um liberal — o que nos Estados Unidos soa como “de esquerda” —, o governo Lula preferia um futuro presidente republicano, sobretudo por ser menos próximo dos tucanos.

Assim como a relação dos tucanos com o Partido Democrata foi fortalecida pela amizade entre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-presidente Bill Clinton, uma relação amistosa nasceu entre Lula e Bush. O americano tinha uma relação mais amistosa com o atual presidente brasileiro do que a que teve com Fernando Henrique, que declarou certa vez que sentiu “asco físico” por Bush. Essa rejeição intelectual não aconteceu com Lula, cujo temperamento afável é mais parecido com o do ex-presidente americano.

Por puro pragmatismo, Lula torceu pela reeleição de Bush, e gostaria de ver um republicano na Casa Branca de novo. Para continuar sendo a ponte do governo dos Estados Unidos com os governos de esquerda “revolucionária” da América Latina.

Quanto a Obama, mesmo que tenha sido chamado de “o cara” por ele e ver em sua trajetória política e de vida semelhanças com a sua, Lula acha que ele se cercou muito de assessores de Clinton, especialmente com a nomeação de Hillary para o Departamento de Estado. E acha que a máquina do estado americano já “domou” Obama, a quem considera inexperiente para se impor ao establishment.

Por características da política interna, Obama tem que fazer concessões aos conservadores republicanos, enquanto Lula as faz a políticos da direita fisiológica.

O choque pode ser inevitável, já que a área de política externa é a que Lula reservou para seu governo realizar uma política de viés esquerdista, para compensar a política econômica de continuidade do governo tucano

Dora Kramer:: Conduta abusiva

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Não faz ainda 20 dias que apareceu diante de todo o País recebendo um dinheiro das mãos de notório distribuidor de propinas e o governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, já dá nova demonstração de conduta abusiva.

Valeu-se do cargo que, pelos critérios do bom senso, ocupa de maneira ilegítima, para distribuir R$ 248 milhões entre funcionários do DF. Antecipou o pagamento de dezembro para todos os 45 mil servidores e liberou verbas de gratificação a bombeiros e policiais militares.

Estes últimos especialmente merecedores, sob a ótica do governador, de recompensa pela atuação truculenta na repressão a estudantes em protesto contra a presença no governo de uma autoridade investigada por corrupção e filmada em flagrante delito.

Ao presentear os funcionários, a intenção do governador foi presentear a si mesmo, pois supõe que assim contribua para esvaziar os movimentos em prol do seu impeachment.

Não fez nada de ilegal. Inclusive porque sua cota nessa seara já foi exposta. Mas impressiona nesse caso a desfaçatez. Não só de Arruda ao tentar simular normalidade reunindo o secretariado para falar de assuntos "de governo" e organizando "a base" na Câmara Distrital para decidir a melhor (para ele) data do início do recesso, a fim de ganhar tempo na esperança de que esfrie o clima do escândalo.

O cinismo é generalizado. Alcança todos os partidos a ele aliados, cujos filiados também aparecem nas imagens ou são citados no inquérito, mas permanecem incólumes, impunes, levando a vida quase normalmente, como se nada tivesse acontecido.

A falta de pudor alcança também o DEM, que tanto escarcéu fez pela saída de José Roberto Arruda do partido por causa do vídeo em que o então candidato aparece recebendo dinheiro, mas não se importuna com a presença do vice Paulo Octávio em suas fileiras.

Isso, apesar de o principal executivo do empresário do ramo imobiliário (o maior de Brasília) ter sido filmado enchendo uma mala preta. O DEM alega que nada há contra o vice. Amplamente citado no inquérito, mas sem a imagem dele na tela.

As coisas chegaram a um ponto em que evidências, citações, a óbvia divisão de responsabilidades entre o governador e o vice - que nem uma palavra de reparo disse sobre a conduta de seu companheiro de governo - não bastam.

E, nesta altura de um campeonato em que o governador se arvora o direito de ler comunicados sem permitir perguntas para não ser constrangido pela imprensa, usa o patrimônio público em feitio de autoajuda, nem as provas comprovam.

É preciso, no dizer dos correligionários de Arruda, uma CPI da Câmara Distrital para "investigar" se as cenas a que o Brasil todo assistiu significam que o governador recebeu dinheiro, que os deputados embolsaram propina, que os empresários levaram notas nas cuecas, que os corruptos oraram em atenção à graça recebida, ou se porventura as imagens não falam por si.

Ação parlamentar

É do deputado Miro Teixeira a ação de inconstitucionalidade contra vários pontos da legislação eleitoral alterados pelo Congresso neste ano, que ensejará a chance de o Supremo Tribunal Federal interpretar a Constituição de modo diferente ao desejado pelos parlamentares.

Por exemplo, no que tange à limitação do prazo de 15 dias após a diplomação do eleito, para contestação de mandatos. A legislação impede a cassação de José Roberto Arruda por crime eleitoral em 2006 e teria impedido também a interrupção dos mandatos de governadores e prefeitos condenados antes da aprovação das novas regras.

Foi do deputado Miro Teixeira a ação que permitiu a derrubada da Lei de Imprensa, bem como foi da autoria dele uma antiga consulta que permitiu ao Tribunal Superior Eleitoral instituir a obrigatoriedade de alianças uniformes para eleições nacionais e regionais.

A chamada verticalização, já extinta pelo Congresso por contrariar interesses dos grandes partidos.

O deputado Miro, aliás, anda sumido. Ele e outros de atuação parlamentar significativa perderam espaço, hoje totalmente ocupado pela turma da fisiologia.

Limites

"O censor não está limitado por lei alguma", disse o ministro Eros Grau, em seu voto contrário ao recurso do Estado ao Supremo Tribunal Federal, pela suspensão da censura prévia à publicação de informações sobre a operação da Polícia Federal que investiga atividades ilícitas do empresário Fernando Sarney, filho do presidente do Senado, José Sarney.

Pelo raciocínio do ministro, só o juiz está limitado pela lei, cuja aplicação não pode ser confundida com censura.

O ministro Eros Grau não levou em conta que não apenas o censor, mas qualquer cidadão - inclusive juízes - está não só limitado como impedido pela Constituição de ferir os preceitos da liberdade de expressão e do direito à informação.

Os perigos da Confecom :: Editorial

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Não foi o que gostariam de ouvir do presidente da República aqueles participantes da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) que pregam o "controle social da mídia" - eufemismo para subordinar o livre fluxo da informação aos interesses dos grupos organizados que dizem representar a sociedade e incentivam a ingerência do Estado no setor. Na abertura do evento organizado pelo governo e iniciado segunda-feira em Brasília, Lula afirmou que o seu compromisso com a liberdade de imprensa é "sagrado" e que tem "orgulho" de dizer que a imprensa no Brasil é livre. "Ela apura e deixa de apurar o que quer.

Divulga e deixa de divulgar o que quer. Opina e deixa de opinar quando quer", declarou. A liberdade de escolher o que ler, ouvir e ver é também o antídoto para os excessos e tropeços da mídia a que o presidente não deixou de se referir.

"Os telespectadores", exemplificou, "são capazes de separar o joio do trigo. São críticos implacáveis e juízes muito severos. Quem não trabalha com respeito acaba perdendo a credibilidade." Mas a sua profissão de fé na liberdade de imprensa não impedirá que os inimigos dela desistam de usar a conferência para impor uma deturpação autoritária do termo "construção de direitos e de cidadania" que consta do tema oficial da reunião.

Precisamente por isso, seis das oito entidades que representam empresas de comunicação, como a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e a Associação Nacional de Jornais (ANJ), decidiram ainda em agosto abandonar a Confecom. A partir do que se passou durante a confecção do estatuto da conferência, previram que sindicatos e ONGs, com o entusiástico endosso do PT e a aprovação tácita de setores do governo, tratariam de aproveitá-la para submeter as empresas de mídia a um verdadeiro auto de fé, de modo a justificar os seus intentos intervencionistas.

Em tese, Lula tem razão quando diz que "não será enfiando a cabeça na areia como avestruz que resolveremos o problema (do marco regulatório da comunicação de massa no País). Isso vale para todos nós: governo, empresas, trabalhadores, movimentos sociais, ouvintes, leitores e telespectadores". De fato, "é chegada a hora de uma decisão que resgate os acertos e corrija o passado". O risco real e presente é que a hora seja ajustada para marcar a guinada autoritária que os seus adeptos tentaram instituir já no primeiro mandato de Lula, com o projeto chavista do Conselho Federal de Jornalismo. Agora, fala-se em criar um "tribunal de mídia". O perigo é reconhecido até mesmo no PT. Comentando a resolução do partido pelo "controle público e social" dos meios de comunicação, o deputado catarinense Cláudio Vignatti disse que, em vez disso, o texto deveria ter advertido que a Confecom não pode se deixar levar "por nenhuma tendência de controle autoritário de meios e conteúdos por quem quer que seja".

É esse o nervo do problema da conferência - já não bastasse a Torre de Babel que se ergueu desde o anúncio da iniciativa, em abril deste ano, e que se exprime na algaravia de propostas a serem votadas pelos mais de 1.500 delegados ao evento. Algumas nem se dão ao trabalho de esconder a esperteza corporativa que as anima, a exemplo da proposta de recriação da Embrafilme, extinta há quase 20 anos, e do restabelecimento das delegacias regionais do Ministério das Comunicações, fechadas em 2002, notórios cabides de emprego.

Não é que faltem questões substantivas de que a Confecom poderia se ocupar em tempo integral até o seu encerramento, amanhã. A principal delas é a existência dos antidemocráticos monopólios e oligopólios de fato no sistema de rádio e televisão. Como já se assinalou reiteradas vezes neste espaço, eles atentam contra a liberdade de iniciativa, porque tolhem a livre competição no setor, e contra a liberdade de imprensa, porque restringem a diversidade de opiniões. A isso se soma o repasse ilegal de recursos milionários de igrejas para emissoras.

A Secretaria de Comunicação Social do governo propõe criar um mecanismo que garanta o cumprimento da regra do número máximo de outorgas por grupo empresarial. O Ministério da Cultura, por sua vez, deseja restringir a propriedade cruzada de meios de comunicação.

Mas a correção do passado de que fala o presidente Lula não pode servir de pretexto para sortidas autoritárias.

Alberto Aggio:: Livres, desiguais, porém fraternos

DEU EM GRAMSCI E O BRASIL

Liberdade, Igualdade, Fraternidade — a tríade clássica da República nascida com a Revolução Francesa de 1789 continua a ser iluminadora para pensarmos a nossa república bem como a situação brasileira atual, especialmente motivados pela comemoração dos 120 anos de instalação do regime republicano entre nós. Mas a nossa referência aqui deve ser mais ampla e parte do princípio de que uma expressão real daquela tríade em uma determinada situação histórica garantiria o estabelecimento de uma “república democrática”, atestando que tal sociedade estaria a viver sob instituições e animada por uma cultura política democrática digna desse qualificativo. Infelizmente não é essa a situação brasileira, ainda que na atualidade estejamos seguindo um curso alentador naquela direção, a despeito de todas as nossas dúvidas, críticas e inseguranças.
Depois de ultrapassarmos os pesados anos do autoritarismo, de estabelecermos as grandes referências para o exercício de uma cidadania moderna entre nós, com a promulgação da Constituição de 1988, e de conseguirmos vencer as complicadas teias da inflação e da estagnação econômica, a sociedade brasileira dá mostras efetivas de que pode ser capaz de avançar rumo a uma república efetivamente democrática, mas sabe que há ainda um longo e complicado caminho a seguir.

De maneira provocativa, a reflexão que segue está concebida a partir da hipótese geral expressa na fórmula: livres como nunca, desiguais como sempre, porém mais fraternos. Nela, mais do que as contingências que marcam as conjunturas políticas atuais, interessa-nos o fio condutor de crenças e sentimentos que movimentam, legitimam e influenciam a consciência e as decisões tomadas pelos cidadãos. Trata-se, pois, de uma reflexão em torno da dimensão simbólica da sociedade brasileira, em torno de como pensamos e de como agimos politicamente ao reconhecermos e interagirmos com os principais componentes da tríade republicana. Nossa hipótese parte do seguinte pressuposto: se a democracia parece-nos inconclusa e incompleta — talvez porque, de alguma forma, ela sempre o será —, especialmente na sua dimensão social, a nossa república, a despeito de todas as nossas incertezas, parece viver um momento de vigorosa ampliação, dando sinais de que acompanhará, ainda que não no mesmo ritmo, os passos do exitoso movimento de estabelecimento das bases materiais proporcionada pela dinâmica do capitalismo que aqui vem se estabelecendo. Conscientemente ou não, nós brasileiros avançamos para uma situação na qual, repito, somos livres como nunca, ainda que desiguais como sempre, porém mais fraternos. Esses são os termos na nossa hipótese.

A questão central dessa reflexão pode ser colocada a partir do seguinte ponto. Utilizando os critérios do cientista político Zander Navarro (2009), haveria três dimensões importantes na composição de uma “democracia ampliada” — isto é, de uma república democrática, no sentido que estamos usando aqui — que se deveria pensar para definir o lugar alcançado por uma sociedade em termos democráticos. A primeira dessas dimensões seria o pluralismo, garantidor das liberdades individuais e civis, assegurando aos cidadãos tolerância e diversidade, em todos os sentidos. A segunda seria o civismo, que visa construir uma cidadania bem formada, consciente e exigente. Enraizado na prática social, o civismo daria uma consciência tanto de direitos quanto de deveres, conduzindo os cidadãos, de acordo com Navarro, à “pujança democrática”. A terceira seria o plebeísmo, responsável pela inclusão cada vez mais progressiva de indivíduos na esfera político-social dos direitos.

As possibilidades de combinação dessas três dimensões são infinitas, o que torna algumas sociedades mais plebeias que cívicas, outras menos cívicas que plurais e assim por diante. É isso que explicaria as diferenças de níveis e de qualidade das democracias contemporâneas. Como se articulariam então essas três dimensões na atualidade brasileira? Pode-se concordar com Navarro em que o Brasil é uma democracia na qual o pluralismo é “vibrante e forte”, ainda que o civismo e o plebeísmo padeçam de anemia e desfiguração. Das elites aos pobres, as condutas cívicas são, em geral, deploráveis, e, por outro lado, nosso plebeísmo arrasta-se de maneira errática, sendo mais objeto de marketing político do que uma realidade em verdadeira e real expansão. O Brasil continua um campeão na extrema concentração de renda como atestam os últimos índices: cerca de 1% dos brasileiros mais ricos (1,7 milhão de pessoas) detêm renda equivalente à dos 50% mais pobres (86,5 milhões). Assim, conclui Navarro, mesmo que “os níveis de pobreza venham caindo, a desigualdade social parece uma rocha irremovível”.

E, mesmo que seja assim, sabemos que a ênfase na resposta a respeito do grau ou da qualidade da democracia brasileira não é capaz de equacionar todas as questões a respeito do pacto republicano que foi se sedimentando entre nós. São dimensões que se cruzam, mas não são necessariamente as mesmas. Assim, da tríade republicana, o avanço seguro que a sociedade brasileira deu nas ultimas décadas foi efetivamente em relação à liberdade, enquanto a igualdade permanece problemática, e a fraternidade — uma dimensão esquecida na maior parte das sociedades ocidentais — até bem pouco tempo sequer figurava como uma dimensão digna de nota.

Nossa república guarda traços bastante particulares, e aqui vamos explorá-los sumariamente.

Como se sabe, a construção da “coisa pública” entre nós se fez no mais das vezes sem afirmar a “linha ascendente” de direitos, dos civis aos sociais, passando pelos políticos. Em alguns momentos da nossa história eles se invertem, em outros, alguns deles foram suprimidos, especialmente os políticos, num processo nem sempre fácil de reconhecimento. Inicialmente oligárquica, nossa república viveria um processo importante de ampliação de corte autoritário a partir da década de 1930, que marcaria sua trajetória até os dias que correm. Extremamente paradoxal, o caminho para a construção da nossa república democrática é, assim, bastante complexo e, no mais das vezes, pouco compreendido. A conexão entre modernidade e caminho democrático é algo que não fez parte da nossa construção republicana, a não ser em poucos e determinados momentos, mesmo que tenha apenas visitado a imaginação criadora dos nossos intelectuais e políticos mais vocacionados a enfrentar tal desafio. Poderíamos dizer, com Luiz Werneck Vianna, que o processo político que constrói o Brasil moderno se caracteriza por uma “ampliação autoritária da República”. Para esse autor, o Estado Novo varguista pavimentou, de fato,

[...] o caminho para a modernização econômica do país, assim como refundou a República, “ampliando” o escopo do Estado a fim de abrigar os novos personagens sociais nascidos do mundo urbano-industrial. Mas o preço da modernização autoritária e da “ampliação” por cima da cidadania importará a perda de autonomia da sociedade quanto ao Estado e uma herança do autoritarismo político a pesar sobre a nossa história republicana — como no regime do Ato Institucional n. 5 de 1968, que obedeceu, em linhas gerais, ao seu modelo —, deixando para trás, como um elo ainda a ser retomado, mas já facultado pelas instituições da Carta de 1988, as fecundas possibilidades, entrevistas na década de 1920, de um alargamento do pacto republicano sob condições democráticas (Vianna, 2001: 152).

Nossa república não se instalou nem ganhou os corações e as mentes dos brasileiros pela adoção de condutas e métodos da democracia política. Não conseguimos “conciliar política democrática com sociedade democrática”, isto é, a “vigência de um sistema de governo baseado em ampla representação e exercido em ambiente de liberdade”, com uma sociedade na qual “as desigualdades sociais são reduzidas e em que há uma ampla mobilidade social”, na síntese muito bem formulada por José Murilo de Carvalho (2002). Por essa razão, há uma fratura entre democracia política e democracia social em nossa trajetória, que passou a ser colocada em questão no período mais recente de superação do regime autoritário no Brasil.

Nas últimas décadas, é inegável que a sociedade brasileira vem demonstrando disposição no sentido de encontrar um novo caminho para a construção democrática da nossa República. Nos dias que correm, parece aprofundar-se, entre os brasileiros, a consciência de que o esforço de cada um e da sociedade em seu conjunto para enfrentar esse desafio depende de como se comportam os indivíduos e as instituições públicas. Essa nova situação evidencia a necessidade cada vez mais presente de consolidação de uma nova cultura cívica valorizadora do espírito público, da conduta republicana, do respeito à lei e aos direitos individuais e coletivos.

Mas essa vontade difusa não é capaz de se fazer valer integral e definitivamente. Pesam sobre ela o movimento dos atores políticos, a força das instituições e os valores assentados na vida sociocultural. Há, portanto, uma história política e cultural que atravessa o âmago desse desafio.

Mesmo que em nosso país não se tenha reproduzido um cenário histórico similar ao da Revolução Francesa de 1789, não estivemos isentos da influência marcante da tríade republicana nascida nesse evento histórico. Nossa referência de valores políticos e culturais foi a europeia, marcantemente francesa e, por extensão, ibero-americana, sem nenhuma rejeição, contudo, da influência anglo-saxônica, particularmente norte-americana, mesmo que tais influências tenham sido vistas de maneira polarizada e, em alguns casos, até mesmo antagônicas.

Essa disjuntiva é decisiva quando examinamos o tema da república, e é a partir dela que começamos a desenhar a nossa hipótese. Deve-se anotar, antes de mais nada, o fato de que o republicanismo norte-americano, nascido com sua revolução de independência, em sua versão conservadora ou democrática, não necessitou mobilizar a tríade republicana na sua integralidade.

Como afirma John Rawls:

Comparando liberdade e igualdade, a ideia da fraternidade teve um lugar menor na teoria democrática. Foi concebida para ser um conceito politicamente menos específico, que não define por si mesmo nenhum dos direitos democráticos, mas que canaliza precisamente determinadas atitudes mentais e formas de conduta, sem as quais perderíamos de vista os valores que são expressos nos direitos (2008: 125).

Nosso argumento se desenvolve no sentido de mostrar a distintividade da realidade brasileira diante da teoria democrática formulada a partir dos fundamentos expostos acima por Rawls. No interior da tríade republicana, parece-nos que, entre nós, há algo que faz transbordar o liso equacionamento liberal anglo-saxônico que solda o nexo entre liberdade e igualdade: trata-se da noção de fraternidade. É em torno dela que nos parece importante afiarmos nossa reflexão para jogar alguma luz no entendimento da nossa atualidade e buscar compreender a emergência de uma cultura política que tem demonstrado capacidade para dar sustentabilidade ao governo atual, bem como um nível de apoio jamais visto à sua liderança maior, garantindo-lhe tão extraordinária quanto aparentemente indestrutível popularidade.

A noção de fraternidade emergiu historicamente pela primeira vez em 5 de dezembro de 1790, na Assembleia Nacional Revolucionária, ao final de um discurso proferido por Robespierre no qual ele defendia a legitimidade de todos os franceses pertencerem à Guarda Nacional que então se reestruturava. A metáfora da fraternidade generalizou-se no processo da Revolução Francesa, ao cristalizar o fato de que se havia estabelecido uma luta frontal contra a loi civil vigente. E isso se faria combatendo o absolutismo, no plano da loi politique, e o domínio patriarcal, no plano da loi de famille. No plano político, as noções de liberdade e igualdade foram os valores predominantes na luta contra o absolutismo real, enquanto no plano da família será a questão da fraternidade entre os homens o móvel mais expressivo da mobilização dos franceses.

Esse é um aspecto relevante, uma vez que demonstra que o movimento da revolução atravessava a dimensão pública e penetrava a dimensão social e até mesmo privada da sociedade francesa da época. No contexto revolucionário de 1789, os pobres — aqueles que eram vistos pelas elites como a “canalha”, nas palavras de Marat — “queriam assumir, com plenos direitos, a condição de uma vida civil de homens livres e iguais”, em suma, a condição plena de cidadãos e, para isso, deveriam acabar com a “configuração senhorial, tutelar e paternalista característica da sociedade civil europeia do Antigo Regime” (Doménech, 2004: 13). A metáfora da fraternidade se tornaria efetivamente o móvel pelo qual o enigma da completude e da integridade da república seria enfrentado em contexto revolucionário e se generalizaria como uma cultura política pelos confins da Europa e da América Ibérica.

Mas aqui nos interessa enfatizar a seiva que a compõe. A fraternidade está essencialmente assentada na dimensão familiar e privada da vida e, a partir dos acontecimentos franceses, se torna um signo fortíssimo da cultura política republicana, mesmo que posteriormente ela tenha sido esquecida por revolucionários de todos os quadrantes e ideologias. Tratava-se de “emancipar” — mais uma metáfora da vida familiar — a população humilde das várias situações de dependência patriarcal. Emancipar-se significava irmanar-se com seus iguais em liberdade e direitos; emancipar-se, enfim, da dominação (que vem de domus, outra metáfora familiar) patriarcal, senhorial, privada, e irmanar-se na nação e na pátria (mais uma metáfora familiar).

Assim, a fraternidade torna-se inexplicável sem a compreensão da luta e do avanço histórico que significou esse embate contra a sociedade senhorial do Antigo Regime europeu. Como se sabe, seguindo Alexis de Tocqueville, uma questão que a sociedade nascida na América do Norte não teve que enfrentar. E, por isso, como dissemos, o republicanismo norte-americano não tinha razões para incorporá-la em seu pensamento democrático. Também se deve notar que essa é uma distinção importante entre a revolução de Independência norte-americana e a Revolução Francesa, distinção mencionada de forma negativa por Hannah Arendt, já que, para essa autora, o ingresso da questão social, via manifestação de les malheureux na Revolução Francesa de 1789, acabaria por complicar e, em certo sentido, inviabilizar por muitos anos a conquista de um patamar expressivo e estável de liberdade e igualdade na França.

Pois bem, e o que isso tem a ver com a atualidade brasileira? A primeira observação é a de que, quase integralmente eclipsada em toda nossa história republicana, a metáfora da fraternidade invadiu o imaginário político da sociedade brasileira a partir da vitória eleitoral de Lula, em 2002, e teve condições de sustentabilidade tanto em razão da situação socioeconômica conquistada até aquele momento, quanto devido àquilo que se implementou em seguida como política social, soldando a figura e a liderança de Lula a esse avanço sem precendentes da nossa república.

Haveria assim um movimento político-cultural de mão dupla a sustentar a emergência da fraternidade: ele é tanto uma representação que a sociedade constrói a respeito da ampliação dos direitos possibilitados pelo avanço da cidadania, quanto uma identificação promovida pelo poder de comunhão entre líder e massas, ambos num contexto democrático que não pode ser desconsiderado.

Nossa hipótese é que a cultura política que sustenta a altíssima popularidade de Lula está baseada nesse movimento. Com ele emerge a cultura política da fraternidade como um elemento integralizador da nossa república que, até o momento da transição democrática, havia sido sempre claudicante no que se refere à sua completude, recusando-se ou não sendo capaz de reposicionar, a partir da metáfora da fraternidade, os nexos entre liberdade e igualdade. O advento de Lula como presidente — por tudo o que ele é e representa — jogou a temática da fraternidade para dentro do processo de construção da nossa república. Mas houve ai uma astúcia digna de nota: Lula derivou de um quase assumido jacobinismo de sociedade civil para um moderantismo instrumental que joga de muitas maneiras com a problemática da fraternidade. O contexto democrático exige isso do ator e é, ao mesmo tempo, a suprema garantia para impedir devaneios de corte autoritário que rondam o personagem e seu ímpeto discursivo.

Apesar de não fazer parte do seu vocabulário (Kamel, 2009), ela é, contudo, central no seu discurso e um poderoso elemento de legitimidade política. Não é outra a razão para o discurso político lulista estar recheado de metáforas do mundo familiar e privado. Diuturnamente, desde que alcançou o poder, o presidente faz referências às figuras da família, nos filhos e na figura da mãe, realçando os sentimentos populares inclinados à ideia de irmandade. No seu discurso de posse, em 2002, esse chamamento não deixava dúvidas: “Os homens e as mulheres, os mais velhos e os mais jovens estão irmanados num mesmo propósito de contribuir para que o país cumpra o seu destino histórico de prosperidade e justiça”. Trata-se de um discurso no qual se objetiva ressignificar o país como uma “comunidade fraterna”, num contexto de democracia.

Como um coroamento dessa estratégia, Lula aparece agora, ele próprio, como “o filho do Brasil”.

Outro elemento derivado da noção de fraternidade é a permanente oposição entre o “nós”, os irmãos, os pobres, o coração e alma do Brasil, e o “eles”, os “senhores”, os patrões, as elites, que nos governaram e nos dominaram por cinco séculos, embora seja forçoso reconhecer que aqui não se instalou e parece que não se instalará a disjuntiva amigo/inimigo, sob o critério da luta de classes, com sua consequente lógica de exclusão e supressão das liberdades. Assim, o discurso lulista não explicita um “pobrismo” de classe e, sim, uma operação simbólica eficaz que quer aludir à situação social geral dos brasileiros, dando-lhes esperanças de melhoria. Analisado esse discurso no seu conjunto, trata-se de uma ruptura — não revolucionária, é verdade — com a nossa trajetória republicana; mas também se trata de uma continuidade, já que estabelece um nexo com o nosso imaginário familiar e com a cordialidade brasileira que nos marca desde os tempos coloniais. A fraternidade lulista é vermelha (a cor do PT), mas ela é difusa. Certamente não é comunista e nem mesmo quer ser vista como de esquerda. Não é o Graal da utopia social, mas também não segue as frias linhas do interesse privado daquele “liberalismo dos de baixo” que frequentou a origem da sua trajetória. Amplia nossa república subordinando-se a processos políticos democráticos, socialmente pouco universalistas e estruturantes, mas está franqueada ao mercado e se sustenta numa legenda de estratégias inclusivas por meio de processos sociais moleculares de duvidosa eficácia.

A hipótese que aqui se levanta argumenta, portanto, no sentido de que todo o arcabouço conceitual até agora mobilizado para qualificar o “poderio” lulista tem se mostrado incapaz de formular uma síntese convincente. O qualificativo “populista” é flagrantemente débil. Ele não é mais do que jornalístico e essencialmente não corresponde às características e possibilidades institucionais da democracia brasileira da ordem constitucional de 1988. Além disso, peca por mobilizar um conceito fracassado na ciência social brasileira e latino-americana. Por outro lado, o estigma do catolicismo contradita a capacidade de ampliação e de diversificação na composição de seus apoios e de sua legitimidade. Assim, Lula também não pode ser visto como expressão do catolicismo de esquerda à Teologia da Libertação e tampouco como um personagem subalterno politicamente à hierarquia da Igreja Católica, como alguma vez se cogitou. Lula rejeitou a “política de rebanho”, optando pela valorização de cada individuo como pessoa, no plano societário, e, no plano político-cultural, adotou a perspectiva de uma revalorização da tradição republicana brasileira: um Brasil de todos, um Brasil da fraternidade, onde todos somos irmãos na democracia que construímos, mas sem estarmos subsumidos a uma definição ideológica distintiva. Por fim, a inclusão de Lula na “nova esquerda” também peca porque não é possível qualificar claramente esse “movimento” sem riscos profundos de avaliação. Lula não pode ser equiparado a Chávez, porque lhe é impossível aceitar e assimilar a beligerância política e ideológica com a qual o presidente venezuelano busca se legitimar todo tempo. Lula sabe que a sua legitimidade tem que passar pelo filtro das instituições da democracia brasileira e é nela que até agora tem apostado todas suas fichas.

Não há como não concordar que temos avançado muito em termos de liberdade. A igualdade se faz ainda merecedora de um projeto coletivo mais aprofundado e contemporâneo que possa ser assumido como uma grande política compartilhada por todos os brasileiros e produzir resultados duradouros. Nesse campo de expectativas, faz sentido o slogan do atual governo: “Brasil um país de todos”, ainda que não esteja assegurado que a “coisa pública” seja assimilada como uma dimensão afeta à responsabilidade “de todos nós”. Mas é precisamente a cultura cívica referente a esse “todos nós” que se apresenta agora como a grande questão da nossa república.

Com Lula, a metáfora da fraternidade é tanto uma representação que se construiu quanto uma identidade que se construiu. Daí a sua força aparentemente inquebrantável. Com ele, sem revolução, a tríade Liberdade, Igualdade, Fraternidade, mesmo que não integralmente, passou a fazer parte da nossa república pela primeira vez. Sob o contexto democrático que o condiciona, Lula procura mobilizá-la para encontrar a solda com a nossa tradição de modernização. Mesmo com todo seu “poderio”, movimenta-se como um equilibrista, muitas vezes à beira do vazio. Não foi o paladino da construção institucional da democracia brasileira das últimas décadas, mas se serve dela como se a fizera nascer. Para isso mobiliza o que nenhuma engenharia institucional é capaz de operar: um sentimento difuso de fraternidade do qual ele tem sido um protagonista convincente.

A fraternidade de Lula não é a mesma de Vargas, submetida aos ditames organicistas e solidaristas da ideologia nacional que dirigia o destino dos brasileiros como uma “comunidade fraterna”. Lula também quer o Brasil como uma “comunidade fraterna”, mas trata de ressignificá-la a seu modo, conformando-se ao contexto que lhe possibilitou a fortuna por onde se move, avança e busca politicamente se sustentar e se reproduzir. Tudo parece ser igual, mas não é. Na hipótese aqui desenhada há uma inovação em curso que precisa ser acompanhada atentamente e questionada de forma produtiva, para que não se fixe a máxima negativa que marca nossa tradição política na qual “tudo muda para seguir como antes”. Ao final de dois mandatos, haverá que se perguntar se esse importante avanço terá continuidade, garantindo, no seio da nossa república, isonomia aos componentes da sua tríade original. Incompreendida, a fraternidade estará subordinada e se perderá no jogo aritmético das eleições. Conspurcada, ela não passará de um joguete na composição da mitologia que se quer fabricar para o grande líder.

Ambas as coisas não servem nem à democracia nem à república.

Alberto Aggio é professor titular de História da Unesp/Franca.


Referências bibliográficas

CARVALHO, J. M. “Do patético ao tragicômico”. Folha de S. Paulo, 11 ago. 2002.

DOMÉNECH. Antoni. El eclipse de la fraternidad — una revisión republicana de la tradición socialista. Barcelona: Crítica, 2004.

KAMEL, Ali. Dicionário Lula — um presidente exposto por suas próprias palavras. São Paulo: Nova Fronteira, 2009.

NAVARRO, Zander. “Democracia brasileira: raquítica ou vibrante?”. Gazeta Mercantil, 4 mar. 2009.

RAWLS, J. Uma Teoria da Justiça. Lisboa: Martins Fontes, 2008.

VIANNA, L. W. “O Estado Novo e a ‘ampliação’ autoritária da República”. In: CARVALHO, Maria Alice Rezende (Org.). República no Catete. Rio de Janeiro: Museu da República, 2001.

Fernando Rodrigues:: Cenário sem decantação

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

BRASÍLIA - Há várias equações em análise na formação das chapas presidenciais. Agora está abalado o acordo pré-nupcial entre PT e PMDB, mas na aliança de oposição há também mais dúvidas que certezas. A decantação do cenário só se dará a partir de março.

No caso do condomínio petista-peemedebista, o desempenho de Dilma Rousseff nas pesquisas é vital para a definição dos acionistas majoritários desse projeto.

Se a candidata de Lula não decolar, reduzem-se as chances de o PMDB embarcar. O oposto também vale, com uma diferença: talvez nesse caso o PT passe a não desejar a adesão incondicional dos peemedebistas -afinal, não terá mais interesse em dar de mão beijada a vaga de vice-presidente.

O mais provável é Dilma não disparar (é muito desconhecida) nem empacar (Lula vai alavancá-la). Nas previsões dos estudos qualitativos do marketing petista, a aposta é a candidata ficar na redondeza dos 25% das intenções de voto no primeiro trimestre de 2010.

Se for assim, o cenário continuará incerto.

Tudo se arrastará até junho, prazo final para os partidos firmarem compromisso eleitoral.

No PSDB, nada indica haver força para Aécio Neves suplantar José Serra. Este é o favorito para ser o candidato a presidente tucano.

Com uma grande dúvida: o que ocorrerá no cenário hipotético (hoje improvável) de Dilma Rousseff realmente se transformar em franca favorita já em março?

Serra terá de enfrentar seu notório temor pelo fracasso. Se for conservador, optando por tentar se reeleger ao governo de São Paulo, destruirá o PSDB. Aécio seria "convocado" para perder. Tudo registrado, tucanos e petistas terão muitas emoções até saberem qual será o desfecho possível para 2010.

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A saída de José Roberto Arruda extirpou a valentia do DEM. Catatônica, a sigla digere seu mensalão.

Fernando de Barros e Silva:: Imagem envenenada

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

SÃO PAULO - Lula fita a plateia com a boca aberta, exibindo um sorriso satisfeito. Sua expressão, a meio caminho entre o deboche e o deleite, contrasta com a figura circunspecta de Michel Temer, mãozinhas solenemente cruzadas sobre os joelhos, o olhar cabisbaixo.

Ambos estão sentados lado a lado na imagem reveladora que o fotógrafo Alan Marques capturou -publicada ontem, no alto da página A4 da Folha; para conferi-la, acesse www.folha.com.br/093491.

O presidente da Câmara tem os lábios cerrados e a fisionomia de certo pesar. Dela, no entanto, se destaca um sorriso amargo, de desprezo e ressentimento, que sua boca escancara ao tentar reprimir.

A franqueza quase pegajosa da risada de Lula acaba denunciando, por contraste, o que há de dissimulado na altivez de Temer. Dele, ACM disse uma vez que parecia um mordomo de filme de terror. Sim, mas a foto também permite a comparação com outro personagem -José Dias, o agregado que vive à custa da família Santiago, no "Dom Casmurro", de Machado de Assis.

Analisando o que essa figura pode nos ensinar do Brasil, o crítico Roberto Schwarz diz, num ensaio célebre ("A Poesia Envenenada de Dom Casmurro"), que a graça de Dias "vem do contraste entre a gravidade vitoriana da pessoa e os cuidados subalternos a que se obriga".

Também Temer, o peemedebista com pose de bacharel e afinidades tucanas, engole a seco as provocações de Lula porque, feitas as contas, não quer perder a sua chance.

Como José Dias, Temer seria o "agregado distinto, que fala, pondera, conta vantagem", mas está "dependendo sempre de acomodações mais ou menos humilhantes".

O PMDB se tornou o grande agregado da política nacional, a sigla-mãe do clientelismo. É fácil rir do teatro da dignidade, do "vazio da respeitabilidade" que suas figuras de proa ostentam.

Sim, mas quem salvou Sarney? Falta vontade e coragem para criticar aquele que patrocina relações espúrias de poder em troca da comodidade do mando.

Rosângela Bittar:: Lula reabre a negociação do vice

DEU NO VALOR ECONÔMICO

O presidente Luiz Inácio Lula avalia, com o quadro hoje à sua disposição, que a aliança com o PMDB é menos importante para a eleição a presidente de sua candidata Dilma Rousseff e mais importante para sustentar o governo caso seja eleita. Sua análise faz remissão à eleição de 2002, quando concorreu sem o PMDB - vale dizer sem o longo tempo de TV para propaganda -, o mesmo ocorrendo na eleição de 2006. Saiu-se vitorioso, não precisou da aliança para se eleger. Mas está certo que, se eleita, Dilma Rousseff vai precisar, como ele precisou, do PMDB para governar.

Lula diz a políticos que a maioria no Congresso é necessária para "avançar", palavra síntese da campanha presidencial do PT. E que ele próprio não vacilou quanto a esta importância do partido, dando-lhe amplo espaço no governo. O fez depois de relutar, mas diz ter aprendido o que realmente importa.

Semana passada, em discurso no Maranhão, porém, o presidente fez uma desfeita com o partido: pediu ao PMDB uma lista tríplice para escolher o candidato a vice na chapa de Dilma, lugar que estava reservado pelo partido para seu presidente licenciado e presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP).

O pedido provocou rebuliço no PMDB, nota de protesto do líder, exploração do suposto constrangimento a que levou o partido - como mais favores e privilégios, e explicações do governo. Justificaram os assessores políticos de Lula ter sido o presidente instado a dizer, no Maranhão, qual vice preferia, se Temer ou Edison Lobão, nativo este, de resto, jamais cogitado. E Lula teria saído pela resposta da lista tríplice.

Nada do que se diz na já adiantada disputa sucessória é de graça, ou por acaso. De definitivo, também não há nada na composição da chapa liderada pela ministra Dilma Rousseff. A aliança com o PMDB é, hoje, pré do pré acordo, uma espécie de documento de compra e venda de terreno ainda na lua. Por sinal, em concorrência disputadíssima com invencionices outras, incluídas em pesquisas encomendadas exatamente para fazer a luta política, do tipo exemplar da chapa Aécio-Ciro, e outras impossibilidades legais e políticas.

O PMDB na vice do PT é até um pouco mais possível. O que incomodou o partido, na recomendação nada casual do presidente, porém, é o que isto representa de ameaça à suposta condição protagonista da legenda.

O presidente continua senhor da situação e da negociação no traçado dos cenários da sua sucessão. E não iria ofender o parceiro por acaso. Na verdade, armou-se de cautela o Palácio do Planalto, e o PT, com a citação dos nomes da cúpula do PMDB em investigações de corrupção. Especialmente o do presidente da Câmara, Michel Temer.

Lula não quer sua candidata envolvida em escândalos de fase aguda, logo agora que acha ter superado o mensalão. Aproveitou a instabilidade que a denúncia levou ao PMDB para retomar articulações que reservara a partir do momento em que o aliado se fixou no nome de Temer.

Nas alquimias eleitorais de Lula, é preciso, agora, retomar as candidaturas de Henrique Meirelles, para o caso de prevalecer a proximidade com o PMDB, e Ciro Gomes, uma porta aberta para variados rumos.

Meirelles ingressou no PMDB por escolha de Lula. O cálculo já era, desde o início, dispor de seu nome para vice se houvesse a aliança. Quando o PMDB governista se uniu em torno de Temer, o presidente do Banco Central passou a considerar a política goiana, onde nunca realmente quis estar. O presidente Lula viu, atenuado o ímpeto Temer, um espaço político para reintroduzir sua ideia original para Meirelles. O presidente do BC tanto é uma opção de vice para Dilma, como também pode permanecer no BC até o fim do governo.

A reabertura do cenário para Ciro Gomes também foi possível pela redução da força do PMDB na negociação. Ciro transferiu domicílio eleitoral para São Paulo por decisão do presidente e não há porque duvidar, se cumpriu a determinação até aí, que vá se rebelar a partir de agora. O deputado continuou, porém, a atacar a aliança PT-PMDB, o que é visto como código para que mantenha a porta aberta e possa assumir o lugar do PMDB nesta coligação. E também não dispensou as opções de candidatura ao governo de São Paulo e a Presidente da República.

Na última reunião do diretório do partido, realizada em Brasília, quando se discutiu a aliança ficou claro, notadamente para os que se relacionam de forma mais estreita com o Palácio, que a demora de Ciro em se lançar candidato ao governo de São Paulo, dizer que aceita o script para ele desenhado por Lula e começar um trabalho conjunto com o PT, é um comportamento que não só deixa o PT sob tensão como acende as luzes amarelas da Presidência da República.

A avaliação é que Ciro mantém o Planalto sob pressão para negociar mais à frente. Como Lula ainda não está satisfeito com os índices da ministra Dilma Rousseff nas pesquisas, e como Ciro, quando seu nome é retirado das consultas presidenciais, deixa seus votos para o candidato adversário, José Serra, e não para o PT, voltou-se a cogitar a inclusão de Ciro no projeto presidencial e não paulista.

O deputado continua a insultar o PMDB armando-se cada vez mais para a disputa presidencial - seja para ocupar o lugar de Temer na chapa, seja para concorrer com Dilma no primeiro turno. Sobre a disputa do governo em São Paulo, o que era certo até há poucas semanas, Ciro faz silêncio.

Embora citado, em companhia de outros pemedebistas da direção, em conversas de corruptos flagrados em operações da polícia, Michel Temer não saiu completamente dos cenários eleitorais montados por Lula. O que há é uma iniciativa previdente, a de contar com a eventual necessidade de riscar este nome da chapa e abrir possibilidades para a volta de outras opções, tais como as que incluem Henrique Meirelles e Ciro Gomes.

Rosângela Bittar é chefe da Redação, em Brasília. Escreve às quartas-feiras

PMDB lulista quer retratação do presidente

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Partido espera desagravo por ideia de lista tríplice para indicar vice de Dilma

Denise Madueño, BRASÍLIA

A cúpula do PMDB espera retratação pública do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao mesmo tempo em que evita colocá-lo contra a parede. Peemedebistas que defendem aliança com o PT em torno da candidatura da ministra Dilma Rousseff (Casa Civil) à Presidência, esperavam que Lula conversasse com o deputado Michel Temer (PMDB-SP), anteontem, como uma espécie de desmentido, o que não ocorreu. Temer, presidente licenciado do PMDB, é o principal cotado para vice na chapa de Dilma e um dos principais articuladores da aliança com o PT.

O motivo da crise foi declaração de Lula, na quinta-feira passada, quando sugeriu que o PMDB apresente lista tríplice com nomes de vice para escolha de Dilma. A resposta do PMDB foi dura, dizendo que cabe apenas ao partido indicar o único nome para a chapa. O episódio provocou cancelamento da reunião de hoje do grupo de trabalho eleitoral do PT e PMDB.

"Em função do ambiente, o PMDB achou melhor não fazer a reunião. Temos de trabalhar com calma. É melhor", afirmou o presidente do PT, deputado Ricardo Berzoini (SP). "Esse desconforto não vai acabar, enquanto não tiver um esclarecimento público", disse o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ). "Na medida que não há conserto, ajuda os que estão contra a aliança do PMDB com o PT."

MAL-ESTAR

O líder do PMDB na Câmara, Henrique Eduardo Alves (RN), autor da nota mais dura em reação à declaração de Lula, afirmou que o PT tem feito um grande esforço para dirimir o mal-estar. "Houve reconhecimento de que não foi a melhor colocação (de Lula)." O líder lembrou que Dilma, os ministros Alexandre Padilha (Relações Institucionais) e Franklin Martins (Comunicação Social), além de dirigentes petistas, telefonaram para Temer na tentativa de darem explicações e colocarem panos quentes na crise.

"Em algum momento haverá uma explicação do presidente, até porque não há outro horizonte. Não dá para ser outro nome"", afirmou Henrique Alves, referindo-se à indicação de Temer para a chapa com Dilma.

PMDB mantém indicação de Temer para vice e ainda espera sinal de Lula

DEU EM O GLOBO

Sarney e outros líderes reafirmam que presidente do partido é o escolhido

Isabel Braga

BRASÍLIA. Embora os presidentes da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP), e do Senado, José Sarney (PMDB-AP), minimizem publicamente a crise entre PT e PMDB, líderes e dirigentes peemedebistas ainda esperam que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva esclareça a ideia de receber uma lista tríplice com nomes do partido para escolher o vice da ministra Dilma Rousseff nas eleições presidenciais. O líder do partido na Câmara, Henrique Eduardo Alves (RN), e outros deputados disseram ontem que Temer é o candidato do PMDB, e que não há hipótese de o partido indicar outro.

— Esse fato deverá ser esclarecido em algum momento para que os adversários à aliança não o explorem. O PT fez um grande esforço para explicar, e o presidente Lula irá conversar com o Temer, não tenho dúvida — disse Henrique Alves: — A posição do PMDB será definida em convenção, a chance de Michel não ser o vice é a mesma de a Dilma não ser a candidata. Só se acontecer uma hecatombe.

Lula, no entanto, não parece convencido disso. Além de não ter telefonado para Temer, como a própria Dilma dissera que ele faria, o presidente evitou tratar do assunto durante encontro que teve com o presidente da Câmara, anteontem à noite, num evento público. A expectativa no PMDB era que Lula se manifestaria, de forma reservada ou publicamente, mas não o fez.

Temer preferiu minimizar o episódio, ontem, mas indicando que a escolha será do PMDB e não de Lula: — O PMDB já falou muito e mantém a mesma posição: cabe ao PMDB indicar o nome.

Diante do impasse, a orientação dos mais moderados, dos dois lados, é aproveitar o recesso parlamentar para esfriar os ânimos e só retomar o assunto ano que vem. Mantido, porém, o tom de que o PMDB não aceitará intervenção.

— Em política, não tem gesto sem consequência. Vamos deixar que o tempo esclareça — afirmou o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ).

Fiador da aliança PT-PMDB, Sarney defendeu Lula, mas reafirmou que Michel Temer é o nome mais forte: — O presidente Lula não teve intenção de interferir dentro do PMDB, até porque sabe que o PMDB é um partido que tem sua própria norma e maneira de ser.

Dentro do partido o nosso grande nome é o do presidente do partido (Temer). Todos nós vamos fazer com que essa aliança seja feita em torno dele.

— PT e PMDB vão se entender.

Esse é um assunto superado — também minimizou o líder do PT na Câmara, Cândido Vaccarezza (SP).

Dilma corrige Minc sobre clima

DEU EM O GLOBO

Para Marina, "causa estranhamento" o isolamento do ministro

Chico de Gois Enviado especial

COPENHAGUE. A ministra da Casa Civil e chefe da delegação brasileira na Conferência do Clima, Dilma Rousseff, corrigiu publicamente o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, ao afirmar que o Brasil, em nenhum momento, pediu recursos para se adaptar às mudanças climáticas. Minc havia dito, em entrevista, que o Brasil abrirá mão dos recursos. O ofuscamento do ministro serviu como mote para que a senadora Marina Silva (PVAC), pré-candidata à Presidência, aproveitasse para cutucar. Marina afirmou que, em seu tempo como titular do Meio Ambiente, assumia a frente nas negociações internacionais sobre mudanças climáticas.

Dilma tem procurado demonstrar que, apesar de não ser da área — com quem às vezes tem enfrentamentos por conta dos atrasos na concessão de licenças ambientais —, estudou o assunto.

— Nós nunca pedimos recursos para adaptação porque são para os países mais pobres, os mais afetados pelas mudanças climáticas, países que podem desaparecer — declarou a ministra. — Pedi para o Minc esclarecer isso. O que queremos são financiamentos para mitigação.

Minc, pela manhã, havia dado outro tom ao assunto: — Eu não disse que o Brasil não aceita a diferenciação (entre países emergentes e pobres). Abrimos mão de recursos de adaptação.

Marina Silva, que tem atraído a atenção da mídia internacional, chegou a Copenhague disposta a fazer do tema ambiental o principal assunto da agenda brasileira, uma vez que essa será a bandeira de sua possível campanha à Presidência.

Para isso, deixou claro as divergências com Dilma.

— Está causando aqui em Copenhague um certo estranhamento o isolamento do ministro Carlos Minc — disse Marina, em entrevista à radio CBN. — Quando eu era ministra, assumíamos todos os processos negociais em todas as COPs (conferências do clima) que participamos

Rudá Ricci*:: 2010

Temos duas semanas para iniciarmos 2010, com forte possibilidade de ser o melhor ano econômico e social do Brasil desde a redemocratização. Mas continuaremos penando no nosso purgatório político.

As projeções de crescimento do PIB variam de 4,8% a 6%. A redução de pobres do Brasil continuará em ritmo acelerado. O Brasil Potência será festejado pela imprensa internacional.

Temos alguns percalços, é verdade. O primeiro é que nosso crescimento acelerado pode gerar inflação de demanda. E se isto ocorrer, o Banco Central voltará a aumentar a taxa SELIC, freando o bem estar geral da Nação. Mas é uma hipótese a ser confirmada. Não conseguimos superar nossos problemas na área educacional, a despeito de secretários e ministro de educação festejarem algo que nem mesmo a publicidade oficial consegue esclarecer.É bem provável que continuemos na mesma, ainda com problemas graves na oferta de vagas para a educação infantil, dificuldade para debelar o analfabetismo entre adultos e analfabetismo funcional.

Também não conseguimos debelar a corrupção crônica que acomete todos governos tupiniquins.

E em época eleitoral e de franco crescimento, possivelmente controlaremos ainda menos este fenômeno instalado em nosso habitus. Não há um mecanismo de licitação pública brasileira que seja inteiramente confiável e blindado. O problema central é a falta de participação efetiva da sociedade sobre os governos, promessa nunca cumprida por um governo mutante que se instalou sob o signo da mudança.

O que fará das eleições um ritual progressivamente insosso, aguardadas quase exclusivamente pelos partidos, candidatos e acólitos. Os otimistas europeus saberão, em breve, que a “novidade Brasil” já terá envelhecido e se espelhado mais rápido ao velho e tradicional do que se poderia esperar.

Ao menos no seu sistema de representação formal. O que envolve partidos, sindicatos e uma gama imensa de organizações da sociedade civil. Criamos um sistema de representação social que se auto-representa. Necessita, obviamente, criar aparências para não de desgastar profundamente. Daí o marketing político, as câmaras setoriais de consulta e assim por diante.

Mas o processo de tomada de decisão no mundo da política pública (!) já está posto no firmamento azul anil. E é por este motivo que teremos, a partir do próximo ano, um comportamento político de massas que oscilará entre o cinismo e a idolatria a quem sustentar o acesso ao mercado de consumo de amplo espectro. Uma idolatria forjada, pendendo para o pragmatismo, nem tanto pela projeção incondicional a alguém que lhes pareça descer dos céus em resposta às suas preces.
Afinal, a República já é fato consumado e o messianismo parece definitivamente anacrônico.O Bolsa Família deverá se expandir um pouco mais. A expansão do salário mínimo já foi anunciada.
O PAC também. E assim, o pacto fordista brasileiro vai se sustentando, quase um século atrasado. Algo longe do republicanismo desejado por Juarez Guimarães, professor da UFMG que escreveu um livro sobre o lulismo com um título que parece pura ironia: a esperança equilibrista.
Como se a esperança pudesse existir entre idas e vindas, num movimento errático que parece mais casuísmo que habilidade.

O novo parece deixar um gosto de déjà vu no palato, não? Parece o novo do mesmo.

Para não parecer pessimismo alimentado pela melancolia de final de ano (todofinal é melancólico!), basta projetarmos as eleições do próximo ano.

Percorrendo os Estados, não encontramos novidades em termos de candidaturas.

Muito menos em termos de candidaturas com alto potencial de vitória. Não teremos algo que fuja do quadro de governadores filiados ao PT, PMDB ou PSDB. O DEM deverá definhar, mas talvez fique com um governo estadual debaixa expressão política. Dificilmente irá mais longe.
Pela direita, o raquitismo eleitoral continuará fazendo vítimas e transformará os realistas de plantão em radicais sem causa ou claudicantes. Muitos partidos se perderão neste cenário político árido, sem espaço para muitos varietais.

Caso do PPS. Pela esquerda, PSTU e PSOL continuarão tentando, tentando e tentando.
Possivelmente se transformarão, daqui por diante, em um toque especial no molho do sistema partidário, como uma lembrança olfativa que a consciência não consegue localizar e dar formato.
Serão partidos-exceção confirmando – e legitimando – a regra.

Restará, portanto, o centro do sistema partidário que, hoje, se cristaliza no social-liberalismo: regulação estatal e fomento ao mercado interno, gerando um forte pacto político-econômico.
Aquela concepção nascida noinício do século XX pelas penas de John Atkinson Hobson e Leonard Hobhouse que, ao contrário do que Bobbio percebia como distinção entre esquerda e direita, procuravam unir liberdade individual com igualdade social. Alguns afirmam que o keynesianismo beberia nessas águas.

Por este motivo, ganhando Serra ou Dilma, perdem apenas os apoiadores e futuros auxiliares do governo. Não se trata de privatizantes contra desenvolvimentistas. Os dois possuem o mesmo perfil. E também não é o caso de se afirmar que quem os apóia os diferencia. Basta sentirmos o movimento errático do fiel da balança do sistema partidário brasileiro, o PMDB, para percebermos que se trata de variantes da mesma canção. Se um dia foram novidade, PSDB e PT são, hoje, os dois pilares de sustentação do sistema partidário, mais próximos que democratas e republicanos dos EUA. Esta dominação os faz Poder. Porque o eleitor precisa sentir que se disputa algo para além de cargos e salários. Precisa diferenciar ao menos pela quantidadede cabelo, profundidade das olheiras ou humor (neste item, dificilmente haverá vencedor).

Daí porque a necessidade vital de se comparar o Presidente atual com o que ele sucedeu. Porque haveria pouco a comparar entre os que efetivamente disputarão o cargo de Presidente da República. Marina fará boa figura, mas alguém imagina que ela poderá atropelar seu próprio partido, até então mera área de influência, sem qualquer personalidade concreta nos últimos anos?

E, assim, parece que a economia novamente vencerá a política. E a política continuará primo pobre da economia.

E nós, finalmente, nos refugiaremos no mercado consumidor em alta, cada vez mais sofisticado, alimentando nossas almas sem presente, mas com um possível grande futuro. Alguém da Escola de Frankfurt já havia sugerido que o consumo seria nosso refúgio, nosso sentimento de liberdade.
E os sonhos voltarão a ser tema de nossa expressa intimidade.

O gigante não está mais adormecido. E perdemos nossa capacidade de sonhar.

* Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, diretor geral do Instituto Cultiva.

ONU diz que Brasil poderia fazer mais

DEU EM O GLOBO

O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, declarou ontem que o Brasil poderia tomar mais medidas para contribuir com um significativo acordo do clima. Ban criticou países ricos e em desenvolvimento. Para ele, todos precisam aceitar metas verificáveis, ponto que enfrenta oposição do Brasil. Ontem, as negociações não avançaram devido a embates sobre financiamento.

"Brasil pode fazer mais. Seria bem-vindo"

Secretário-geral da ONU defende ações de países desenvolvidos e em desenvolvimento que sejam verificáveis

ENTREVISTA Ban Ki-moon

COPENHAGUE. Em entrevista exclusiva ao GLOBO, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, afirma que o Brasil pode fazer mais. O sul-coreano de 65 anos — diplomata de carreira, de fala mansa, que hoje comanda uma organização de 192 países membros —transformou as mudanças climáticas na grande bandeira de sua gestão.

Ele defende abertamente um novo tratado “robusto e amplo”, diz que os chineses — segundo maiores poluidores do planeta — não estão fazendo o suficiente, e toca num ponto delicado: para ele, seja quais forem as medidas que Brasil, China ou nações ricas anunciarem, elas “têm que ser internacionalmente verificáveis”.

Deborah Berlinck Enviada especial • COPENHAGUE

O GLOBO: Em novembro, o senhor afirmou que Copenhague não produziria um acordo legalmente vinculante (que tenha metas obrigatórias). Que resultado espera daqui?

BAN: Estamos trabalhando para obtermos um acordo justo, robusto e amplo em Copenhague, que teria um efeito operacional imediato, inclusive ajuda financeira de curto prazo para os países em desenvolvimento. Isso levaria a um tratado legalmente vinculante o mais cedo possível em 2010. A maioria dos países concorda com isso.

A morte do Protocolo de Kioto está apenas sendo adiada?

BAN: Não, não estamos mudando, não estamos comprometendo nossos princípios. Vamos ter um amplo e ambicioso tratado legalmente vinculante.

Japão e Rússia estão quase saindo do Protocolo de Kioto. O Canadá está ignorando seus compromissos e os europeus dizem que não querem ficar sozinhos. Quem está levando Kioto a sério, além dos países em desenvolvimento?
BAN: O entendimento geral dos paí ses membros é continuar com o Protocolo de Kioto. Teremos acordo para uma convenção o mais depressa que pudermos em 2010. Mas aqui (em Copenhague) vamos ter um acordo politicamente vinculante cobrindo todos os elementos: metas ambiciosas para os países desenvolvidos e em desenvolvimento devem limitar suas emissões, através de ações nacionais para mitigação. Será preciso um importante pacote de ações para os mais vulneráveis, e ajuda financeira e tecnológica para os países em desenvolvimento. Precisamos ter também uma estrutura de governança global. Tudo isso nos vai nos permitir limitar que a temperatura suba além de 2 graus.

Países em desenvolvimento temem que nações ricas estejam transferindo para eles as suas responsabilidades de cortar emissões, quando pressionam China e Brasil para agir mais. O que o senhor acha?

BAN: Não é hora de jogo político de transferir responsabilidades de um para outro. Estamos diante de um desafio global que precisa de uma resposta global. O grande problema é que a mudança do clima está atingindo mais os países em desenvolvimento que não têm capacidade para se adaptar. Faço um apelo para que países desenvolvidos providenciem a ajuda financeira.

É hora para países emergentes que emitem muito, como China, concordarem com metas?

BAN:China e Índia anunciaram metas. A China vai reduzir em 40% a 45% sua intensidade energética, e a Índia, em 2 0 % a 2 5 % . É uma boa contribuição. Mas, neste momento, países desenvolvidos e em desenvolvimento podem e devem fazer mais.

O Brasil anunciou que vai reduzir suas emissões entre 36% e 39%. O Brasil também precisa fazer mais?

BAN:O Brasil também anunciou que vai reduzir em 80% o desmatamento. No entanto, acho que pode fazer mais. Seria bem-vindo.

Estas ações de Brasil, China e outros países em desenvolvimento devem ser medidas e verificadas internacionalmente?

BAN:O plano de ação de Bali diz que países desenvolvidos e em desenvolvimento precisam adotar nacionalmente ações para mitigação, de uma forma que possam ser medidas, reportadas e verificadas. Seja lá o que fizerem, isso tem que ser feito de uma forma verificável.

A verificação não colocaria os países em desenvolvimento em pé de igualdade com os países ricos?

BAN: Neste momento, precisamos que Copenhague chegue a um acordo. Se deixarmos esta conferência sem um acordo, vai ser muito, mas muito pior. Precisamos de um acordo. Para isso, bom senso, compromisso e coragem têm que prevalecer.

Países desenvolvidos concordaram com um pacote de US$ 10 bilhões nos próximos três anos, mas não há sombra de um acordo para financiamento a longo prazo. A batalha por dinheiro pode levar ao fracasso da conferência?

BAN: Acho que a ajuda financeira a curto prazo de US$ 10 bilhões está conseguindo apoio entre os países membros, apesar de certos membros do G-77 (países em desenvolvimento) quererem mais. Quanto ao longo prazo, as negociações têm que começar o mais rapidamente possível. Sem ajuda financeira de longo prazo, um acordo não será eficaz.

Muito está sendo deixado para os líderes decidirem. Há o risco de não haver acordo algum?

BAN: Estou convencido de que vamos ter um acordo. Não estamos aqui para o fracasso. Estamos aqui para o sucesso.

A mudança climática virou uma prioridade na sua gestão, mas há 1 bilhão de pessoas vivendo com menos de US$ 1 por dia. Por que o clima é sua prioridade?

BAN: A mudança climática afeta cada aspecto de nossas vidas, incluindo a segurança alimentar que você mencionou. Há 1 bilhão de pessoas que vão para a cama com fome todas as noites. E há 1 bilhão de pessoas que não têm acesso a água. Os efeitos não são só econômicos, cria-se instabilidade política por causa das consequências negativas da mudança do clima. Portanto, enfrentar a questão da mudança climática vai ser chave para a solução de muitas questões que estão interconectadas, como comida, energia, falta de água, segurança, saúde e instabilidade politica.

José Serra:: Economia verde

DEU EM O GLOBO

Esquenta a reunião da ONU em Copenhague, sobre as mudanças climáticas. Importantes nações, entre as quais EUA, China, Japão e Índia, anunciaram sua disposição em reduzir emissões de gases de efeito estufa (GEE). Vamos ver se é verdade e torcer para que haja um amplo acordo diplomático para enfrentar o aquecimento global do planeta.

Inicialmente tímido, o Brasil também melhorou sua posição, o que é positivo. Não se deve temer a agenda ambiental, como se ela representasse uma ameaça ao crescimento da economia. Pelo contrário. Contando com o ativismo do Estado, e graças ao enorme potencial das energias renováveis em nosso país, excelentes oportunidades podem se abrir para o desenvolvimento sustentável brasileiro.

Por essa razão vim para a Dinamarca por três dias. Primeiro, quero mostrar a política de mudanças climáticas de São Paulo, recentemente transformada em lei estadual. Mais que a meta de redução de 20% nos GEEs até 2020, com base em 2005 — redução absoluta, diga-se, não mera reversão de tendências — os compromissos públicos exigidos abrem uma rica, embora dificílima, agenda de trabalho ambiental na próxima década.

Destaco que a nova lei obriga, no prazo de um ano, ao governo de São Paulo apresentar um plano para o transporte sustentável no estado.

Definitivamente, chegou a hora de colocar as ferrovias e hidrovias no primeiro plano das estratégias de crescimento. Muito investimento terá que ser feito para equilibrar e articular os modais de transporte de cargas. Quanto à mobilidade urbana, nosso plano de expansão do transporte metropolitano, em execução, configura o maior projeto de transporte público já realizado no Brasil. Vamos investir, nesses quatro anos, R$ 20 bilhões em Metrô, CPTM e EMTU/SP, abrindo caminho para quadruplicar a rede sobre trilhos com qualidade de metrô (linhas novas e modernização das antigas linhas de trens urbanos). E até 2020 o transporte sustentável terá que avançar ainda mais, pois facilitar o deslocamento das pessoas e reduzir a necessidade de utilização do transporte individual reduzem a poluição atmosférica e rebaixam a emissão de CO2.

Uma razão mais pessoal me trouxe a Copenhague. Como economista, entendo que o processo em curso, de descarbonização das economias, levará a um novo padrão de produção e de consumo no mundo. Distinto daquele erigido desde a Revolução Industrial no século XVIII, nasce outro paradigma na geração de riquezas, que levará finalmente à economia verde, gerando novos empregos e renda para combater a desigualdade social. Acredito que, nessa construção, os países e as empresas que tomarem a dianteira das inovações tecnológicas sairão ganhando na competição internacional.

Nós não podemos perder essa chance da história, transformando o Brasil numa verdadeira potência ambiental.

O tema é fundamental. Estamos em São Paulo preparando, através da Nossa Caixa Desenvolvimento, agora nossa agência de fomento, um amplo programa de financiamento, da ordem de R$ 1 bilhão, com juros reduzidos, para as empresas investirem na redução de suas emissões de GEEs. Não adianta apenas bradar pelas mudanças ecológicas, nem definir metas vazias. É necessário incentivar os setores empresariais, na indústria, na agricultura e nos serviços, a promoverem as modificações necessárias à futura economia de baixo carbono.

No Brasil, sabidamente, o desmatamento representa a grande fonte de emissões de GEEs. Isso não pode continuar. Seja articulando para que o mecanismo conhecido como REDD (Redução de Emissões para Desmatamento e Degradação) se transforme em realidade, seja melhorando, em muito, a fiscalização ambiental na Amazônia, torna-se necessário estancar a devastação florestal, certamente a pior forma de crescer uma economia regional.

Quero, todavia, chamar a atenção para a importância da recuperação ambiental das áreas degradadas.

Em São Paulo, onde viramos a página do desmatamento, estamos reflorestando as matas ciliares do território, protegendo rios, córregos e nascentes d’água.

A Secretaria Estadual do Meio Ambiente já cadastrou 370 mil hectares de áreas em recuperação, dentro de uma meta que visa chegar a 2020 com um milhão de hectares recuperados. Devido à fotossíntese realizada nas plantas, o potencial de absorção de CO2 da atmosfera é notável, atingindo 65 milhões de toneladas, cerca de metade das emissões totais de São Paulo estimadas em 2005.

Na matriz energética, a “renovabilidade” paulista alcança 56% do consumo, contra uma média mundial de 13%. São Paulo produz 64% do etanol nacional e 25% do mundial.

Utilizando-se da tecnologia dos veículos flex, o combustível alternativo avança, estimulada por uma redução no ICMS do Estado de 25% para 12%. Menos imposto, mais ambiente.

O ecodesenvolvimento, conforme o cunhou pioneiramente Ignacy Sachs — aliás, vale a pena ler seu livro autobiográfico, da Cia das Letras — depois batizado de desenvolvimento sustentável, exige uma nova compreensão sobre a relação entre o Homem e a Natureza.

Agora, acrescido do aquecimento global, a imperiosa necessidade de redução nas emissões de GEEs aponta para uma verdadeira revolução. Precisamos nos preparar, em nome das gerações que ainda nem nasceram, para esse enorme desafio.