domingo, 4 de abril de 2010

Reflexão do dia – Alberto Dines

A atual penúria ideológica contrasta com a primeira década da redemocratização (1979-1989) quando apareceram duas siglas marcadamente ideológicas estimuladas pelo artífice da abertura, o general Golbery do Couto e Silva, obsessivamente fixado em esvaziar a força do "partidão", o PCB, aninhado dentro do antigo MDB.


(Alberto Dines, no artigo E a social-democracia?, no Jornal do Commercio/PE. hoje)

Hora de união:: Fernando Henrique Cardoso

DEU EM O GLOBO

A visão de futuro mostra quem é verdadeiramente líder. No auge das lutas pela volta às eleições diretas e pelo fim do autoritarismo, três personagens, cada qual à sua maneira, foram decisivos para que conseguíssemos mudar o rumo do País. Não foram os únicos. Muita gente se empenhou desde a campanha das Diretas-Já com o mesmo propósito. Nem se deve esquecer do papel desempenhado pelas grandes greves do ABC e por seus líderes. Mas, a partir da derrota da emenda Dante de Oliveira, quando se colocou a possibilidade de derrotar o candidato do Sistema utilizando-se o próprio Colégio Eleitoral, a condução do processo passou a depender de Ulysses Guimarães, Franco Montoro e Tancredo Neves.

Houve hesitação sobre o que fazer. Fiz um discurso no Senado trocando o lema Diretas-Já por Mudanças-Já, com a convicção de que poderíamos derrotar os donos do poder. Foi difícil para Ulysses Guimarães tragar a dose e aceitar as eleições indiretas, ele que fora o anticandidato em 1974 e cujo nome se identificava com as eleições diretas. Foi mais difícil ainda, uma vez deslanchado o processo de conquista de votos no Congresso, unir a oposição em torno de um nome.

Ulysses até aquele momento fora o condutor indiscutido das oposições democráticas. Entretanto, pela dureza das posições que assumira na crítica ao regime autoritário, teria dificuldades em granjear votos entre os que, diante do desgaste do poder, da crítica de uma imprensa mais livre, dos movimentos de protesto em massa e das dificuldades econômicas, se predispunham a mudar de posição. Sem o apoio desses, a derrota era garantida. Na época presidente do MDB de São Paulo e muito próximo a Ulysses Guimarães, disse-lhe com muito pesar, pela enorme admiração e respeito que nutria por ele, que a vez seria de outro.

Roberto Gusmão, chefe da Casa Civil do governo Montoro, havia declarado nas páginas amarelas da Veja que São Paulo se uniria a Tancredo Neves para a conquista da Presidência. Ulysses fez questão de ouvir a decisão da voz do governador de São Paulo. Acompanhei-o ao Palácio dos Bandeirantes num encontro com o governador Montoro e com Roberto Gusmão. Montoro poderia pretender legitimamente a candidatura à Presidência: ganhara as eleições diretas em São Paulo com votação consagradora. Percebeu, entretanto, que no caso das eleições indiretas Tancredo teria melhores oportunidades. Reafirmou esse ponto de vista a Ulysses. Mais do que os méritos e as ambições de cada um, contava o momento histórico. Ou nos uníamos e ampliávamos a frente contra o autoritarismo ou este permaneceria por mais tempo, esmaecido que fosse, com a eleição de Paulo Maluf, candidato da Arena. A visão de futuro e o interesse nacional contavam mais do que as biografias. Tiveram grandeza. São Paulo se uniu a Minas para que o Brasil avançasse e Ulysses chefiou a campanha pela eleição de Tancredo.

Passados 25 anos, nos encontramos frente a circunstâncias históricas que novamente requerem grandeza dos líderes e unidade de todos. Não está em jogo o admirar ou não o presidente Lula, nem mesmo as qualidades de liderança (ou a falta delas) de sua candidata Dilma Rousseff. Por trás das duas candidaturas polares há um embate maior. A tendência que vem marcando os últimos 18 meses do atual governo nos levará, pouco a pouco, para um modelo de sociedade que se baseia na predominância de uma forma de capitalismo na qual governo e algumas grandes corporações, especialmente públicas, unem-se sob a tutela de uma burocracia permeada por interesses corporativos e partidários. Especialmente de um partido cujo programa recente se descola da tradição democrática brasileira para dizer o mínimo. Cada vez mais nos aproximamos de uma forma de organização política inspirada num capitalismo com forte influência burocrática e predomínio de um partido. Tudo sob uma liderança habilidosa que ajeita interesses contraditórios e camufla a reorganização política que se está esboçando.

Agora, com as eleições presidenciais se aproximando, as alianças são feitas sem preocupação com a coerência político-ideológica: o que conta é ganhar as eleições. Depois, a força do Executivo se encarregará de diluir eventuais resistências de governadores e parlamentares que se opuserem à marcha do processo em curso, e transformará os aliados em vassalos. Mais recentemente tem surgido a dúvida: será que a candidata petista, sem ser Lula, terá força para arbitrar entre os interesses do partido, os dos aliados e os da sociedade? Não sei avaliar, mas o resultado será o mesmo: pouco a pouco, o "pensamento único", agora sim, esmagará os anseios dos que sustentam uma visão aberta da sociedade e se opõem ao capitalismo de Estado controlado por forças partidárias quase únicas infiltradas na burocracia do Estado.

Os líderes oposicionistas atuais terão a visão de grandeza dos que os antecederam e perceberão que está em jogo a própria concepção do que seja democracia? Há quem defenda um outro estilo de sociedade. Há quem acredite que certo autoritarismo burocrático com poder econômico-financeiro pode favorecer o crescimento econômico. A China está aí para demonstrar que isso é possível. Mas é isso o que queremos para nós? A força governista ignora os limites da lei e tudo que decorre dessa atitude, desde a leniência com a corrupção até a arrogância do poder e o abuso publicitário antes do início legal das campanhas. É imperativo, pois, que as oposições se unam. A aliança entre Minas e São Paulo - que se pode dar de forma variada - salvou-nos do autoritarismo no passado. Uma candidatura que fale a todo o País, que represente a união das oposições e busque o consenso na sociedade é o melhor caminho para assegurar a vitória. José Serra e Aécio Neves estiveram ao lado dos que permitiram derrotar o regime autoritário. Cabe-lhes agora conduzir-nos para uma vitória que nos dê esperança de dias melhores. Tenho certeza de que não nos decepcionarão.

Sociólogo, foi Presidente da República

Continuidade e mudança:: Merval Pereira

DEU EM O GLOBO

O grande mistério dessa eleição presidencial que se avizinha é saber qual a estratégia eficiente para derrotar um governo tão popular quanto o do presidente Lula. Enquanto o presidente joga todo o seu prestígio na continuidade, que estaria assegurada com a eleição de Dilma, a oposição tem que passar a sensação ao eleitor de que tem melhores condições de garantir essa continuidade, o que é insólito em política, pois o papel da oposição seria o de promover a mudança.

O cientista político Alberto Carlos de Almeida, especialista em análise da opinião pública, autor do best seller “A cabeça do brasileiro”, acha que uma das maneiras de desconstruir a imagem da candidata oficial Dilma Rousseff é incutir na cabeça do eleitor que Lula não sabe escolher seus assessores.

Seria uma maneira de voltar a tocar no escândalo do mensalão, para atingir também a candidata oficial no que ela tem de mais vulnerável: a falta de experiência política.

O economista político Alexandre Marinis, da consultoria Mosaico, tem uma análise que pega os resultados das quatro últimas eleições presidenciais — que mostra uma forte correlação entre o índice de popularidade do presidente e o de votos válidos conseguidos por seu candidato — e vai muito mais fundo, até as eleições municipais e estaduais.

Pegando duas vertentes de análises diferentes, ele cruza o resultado concreto de eleição, seja a nível nacional, estadual ou municipal, com as pesquisas de opinião, e avalia como elas caminham ao longo das campanhas. “Dá para constatar que as oscilações dos candidatos acompanham muito de perto a taxa de aprovação dos governantes”, garante.

A principal consequência disso, na opinião de Marinis, é que seria insuficiente a estratégia da oposição de não confrontação com o governo.

“Se você quiser desconstruir a Dilma, mas o governo permanecer extremamente forte, você pode afetar a taxa de transferência de popularidade mas ainda assim garantir a vitória da candidata oficial”, analisa Marinis.

Ele exemplifica: se a popularidade de Lula se mantiver tão alta, ainda que você reduza a efetividade dessa transferência, digamos para 60%, ainda assim sua candidata terá quase metade dos votos. “Isso implica que não basta trabalhar na desconstrução da imagem da Dilma, tem que também encarar as deficiências do governo Lula. Não adianta você fugir desse debate”.

Alexandre Marinis acha que “na cabeça do eleitor típico do Lula, que também é eleitor típico da Dilma, se eu desejo continuidade e não quero mudar nada, por que vou arriscar e votar num candidato de oposição?”.

Para vencer a eleição, o candidato oposicionista precisa encarar as deficiências do governo Lula. “Você pode desconstruir a imagem da Dilma, mas tem que reduzir também a popularidade do Lula. O fato concreto é que a popularidade de Lula é o principal ativo que a candidatura da Dilma tem”.

Até mesmo Ciro Gomes, do PSB, que luta para manter sua candidatura à Presidência, está cometendo o que seria um erro, na opinião de Marinis: critica Dilma, dizendo-se mais preparado que ela, critica a aliança entre o PT e o PMDB, mas poupa Lula e seu governo.

O cientista político Alberto Carlos de Almeida, especialista em análise do eleitor brasileiro e da opinião pública, acha que a luta de José Serra vai ter que ser para manter o eleitorado que, apesar de considerar o g o v e r n o L u l a ó t i m o o u bom, vota nele.

A mais recente pesquisa de opinião do Datafolha informou que 33% desses eleitores de Lula estão com Serra, o mesmo contingente que apoia Dilma.

Para o candidato da oposição atingir os pobres, ele terá que falar sobre redução de imposto sobre consumo, diz Alberto Carlos de Almeida.

Os cidadãos da classe baixa já teriam entendido que pagam imposto indireto sobre os bens de consumo, como alimentação.

E como a sociedade é muito desigual, a população acha que só pobre paga imposto. A percepção é de que há uma exploração na cobrança de impostos, que prejudica a vida dos mais pobres. E como a nova classe C quer cada vez consumir mais, a alta carga tributária é um flanco do governo que pode ser atacado.

Nesse sentido, o Democratas está mais afinado com o sentimento popular, pois comanda uma campanha em São Paulo, com Afif Domingues, para denunciar quanto de imposto está embutido nos preços, e foi devido a uma campanha do deputado Paulo Bornhausen que a oposição conseguiu derrubar a CPMF.

Nas entrevistas qualitativas, Alberto Carlos de Almeida diz que o que aparece quando se discute o fim da CPMF é que ela é uma prova de que o imposto não melhorava a vida das pessoas: “Tinha a CPMF e a saúde era muito ruim. Acabou o imposto e a saúde continuou igual”, resumem os entrevistados.

Mas Alberto Carlos de Almeida considera que as iniciativas oposicionistas nesse campo ainda são tímidas, faltaria-lhes a ousadia que sobra em Lula: “Uma atuação mais decidida nesse campo embaralharia o jogo eleitoral”, analisa.

Ele considera as campanhas realizadas até agora pouco populares. “Quando o outro lado está muito forte, como é o caso do governo atual, você tem que inovar na sua mensagem”, adverte o cientista político.
Ele adverte, também, que o combate à corrupção não pode ser levado para um lado moralista, pois o cidadão brasileiro, ao contrário do americano, não é moralista.

“Ele já entendeu que a corrupção ajuda a piorar a vida das pessoas, e acha que, se houver menos impostos, haverá menos corrupção.”

Gente insolente:: Dora Kramer

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O PSDB nasceu em 1988, oito anos depois do PT. Chegou ao poder em 1994, oito anos antes do PT que passou 22 anos na oposição até chegar ao ponto que os tucanos levaram apenas seis para alcançar. Graças ao Plano Real.

A uma circunstância particularmente favorável. Uma ascensão acidental, já que o PSDB não trabalhou por ela, limitou-se a estar no lugar certo na hora exata.

Ou melhor, a ser o partido do homem certo no momento em que o então presidente Itamar Franco não deixou ao chanceler Fernando Henrique Cardoso alternativa, praticamente o nomeando à revelia seu quarto ministro da Economia.

Contra todas as expectativas, FH deu conta da missão, reuniu o grupo adequado e estava feito o caminho do PSDB rumo ao Palácio do Planalto. Durante oito anos o partido governou o Brasil.

Fernando Henrique Cardoso não foi o rei do espetáculo, mas ajudou a mudar o perfil do País. Fez reformas, privatizou a telefonia, profissionalizou as estatais, organizou as contas públicas, acabou com a inflação, devolveu a moeda ao País, inseriu o Brasil no mercado mundial, conquistou respeito internacional, continua sendo dos mais argutos pensadores e observadores da cena nacional.

Suas análises sobre o comportamento dos políticos, as razões do distanciamento da sociedade dos partidos, as ações para promover a aproximação são precisos diagnósticos. Tão certeiros que a reação de seus adversários é sempre o apelo arrebatado para que se cale.

E o surpreendente é que os ditos correligionários fazem pior: o ignoram. Faz palestras no mundo inteiro e pelo País afora, mas o tucanatinho acha que ele não fica bem na fotografia do vigoroso partido onde vicejam próceres cuja capacidade de distinguir credibilidade de popularidade é nenhuma.

Sabe o cunhado que vive dando vexame? Pois é. Os tucanos agora resolveram tratar Fernando Henrique nessa base. Segundo eles, "pesquisas internas" indicam que FH não é benquisto pelo eleitorado.

Atrapalha quando fala. E isso é dito tanto por pessoas com algum grau de discernimento quanto por gente que não faz um ó com um copo. Exato, o PSDB não é partido só de "quadros qualificados".

Esse pessoal lê umas pesquisas, ouve um boboca de um analista, se assusta com os arreganhos de meia dúzia de adversários e acha que isso os autoriza a jogar no lixo o respeito devido a quem permitiu que o partido iniciasse sua trajetória de vida pela rampa do Palácio do Planalto.

Para não falar dos comprovados serviços prestados ao País, que em nações civilizadas costumam ser patrimônio preservado.

Lula perdeu três eleições presidenciais, foi muito criticado no PT, mas nos momentos difíceis nunca se viu movimento orquestrado para escondê-lo, tirá-lo de cena como se fosse um criminoso ou portador de doença contagiosa grave.

Se é sobre esse tipo de caráter que o candidato José Serra falou quando se referiu a brio, índole e solidariedade em seu discurso de despedida do governo de São Paulo, há incoerência no conceito.

Segura peão. Do presidente Lula diretamente o deputado Ciro Gomes não recebeu nenhum pedido nem recado para retirar sua candidatura. Houve uma conversa nesse sentido com o governador de Pernambuco, Eduardo Campos, presidente do PSB, partido de Ciro. Foi na segunda-feira passada. Eduardo começou convencido da necessidade da retirada e terminou balançado.

Pelos seguintes argumentos: 1. Para o partido é negócio uma plataforma nacional de 12% de votos; 2. Se Ciro se retirar, nove seções do PSB, é certo, vão aderir à candidatura de José Serra; 3. Pesquisas internas indicam um potencial de crescimento de até 20 milhões de votos; 4. Todas as perguntas mostram que o eleitor reconhece nele competência semelhante à identificada em Dilma Rousseff e José Serra; 5. Ciro é a segunda opção dos eleitores dos dois principais candidatos, sendo que é majoritariamente o preferido dos eleitores de Serra.

Ou seja, se sair, favorece o tucano. Por isso deixa Serra sossegado e bate tanto no PT, porque disputa o eleitor potencial do PSDB.

Um velho comunista no comando de S. Paulo

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O ex-comunista Alberto Goldman (PSDB), de 72 anos, assume o governo de S. Paulo com a intenção de não cometer erros, para ajudar a candidatura de José Serra (PSDB) à Presidência. “Tudo que for feito corretamente vai reverter em beneficio dele”, afirmou a Christiane Samarco e Julia Duailibi. Ele pretende imprimir um estilo de governo diverso do de Serra, a começar pela pontualidade. “Sou pontual doentiamente. Deve ser uma doença, algo que mesmo não me dou conta”, disse Goldman.


'Serra é exigente, e eu também sou'

Alberto Goldman, Governador do Estado de São Paulo Novo governador de São Paulo tem a missão de dar continuidade à gestão tucana no maior colégio eleitoral do País

Na próxima segunda-feira, o Palácio dos Bandeirantes começa a funcionar mais cedo. O ex-comunista Alberto Goldman (PSDB), de 72 anos, que foi vice de José Serra por 39 meses, assume o comando do governo de São Paulo com um relógio algumas horas mais adiantado que o do antecessor e uma missão: manter a gestão paulista como a principal vitrine dos tucanos na campanha.

“Acho que a melhor forma de ajudar é fazer um bom final de governo. Tudo que for feito corretamente vai reverter em benefício dele. O que fizer de errado vai na contracorrente”, disse.

Ex-deputado e ex-ministro dos Transportes no governo Itamar Franco, Goldman, que tem em Serra um aliado há mais de trinta anos, não tem mais ambições eleitorais. Diferentemente de Serra, sente-se liberado da etiqueta política e não usa eufemismos nas referências ao governo federal. Rechaça a tentativa de tornar a eleição um plebiscito de Lula versus FHC. “Não é isso que está posto. Isso é falso, é enganação”, afirmou.

Filho de judeus poloneses, criado no bairro paulistano do Bom Retiro, Goldman é engenheiro civil, casado e tem cinco filhos. Deverá manter o mesmo conteúdo programático do governo Serra, mas imprimirá um novo estilo de governar. A começar pelo mais óbvio, a pontualidade. Diz ter sofrido nos últimos anos com os atrasos do governo, uma das características mais conhecidas de Serra.

Goldman será diplomado pela Assembleia nesta terça-feira. Ao receber o Estado no palácio, ainda como vice, brinca quando diz que não foi uma boa escolha trocar de posto. A começar pela mudança de gabinete - o do vice tem uma ampla varanda, coisa que o do governador não tem. “Vou trabalhar mais e ganhar menos”, conta, já que abrirá mão dos conselhos de empresas do governo que engordavam o contracheque.

Uma vantagem é que agora chegará mais rápido ao palácio: continuará morando em Higienópolis, mas irá de helicóptero para o trabalho. Ou seja, sem atraso. A seguir a entrevista.

Lula disse que nesta fase do governo é proibido inventar. É continuar o que está sendo feito. O que Serra recomendou?

Não houve recomendação nenhuma, até porque estamos trabalhando juntos há três anos e três meses. Tenho participado de todas as reuniões. As decisões de governo são decisões conjuntas das quais todos nós participamos. É dar continuidade a isso. Tudo o que puder inventar e criar, da mesma forma que Serra faria se estivesse aqui, devo fazê-lo.

Pode então criar coisas novas?

Serra criava coisas que entendia corretas. Da mesma forma, se tiverem coisas a serem pensadas e criadas, não vejo por que não fazer. Até porque uma das condições do governo no seu último ano de mandato é preparar o Estado para que quando venha o novo governo a velocidade das coisas se mantenha. Estamos aqui aquecidos, em velocidade de cruzeiro.

Existem diferenças óbvias entre o senhor e Serra. Talvez as mais evidentes são de estilo. Haverá mudanças no governo?

Não acho que vai haver grandes diferenças. Há uma diferença fundamental: ele é palmeirense, eu sou corintiano, e ele insiste muito na divisão futebolística. De resto, não há uma diferença de forma, de conduta. Ele é exigente, e eu sou exigente também. Dizer que ele é centralizador, acho que não é. A única diferença mais sensível é da pessoa física, no qual o meu horário é diferente do dele. O meu começa muito cedo e não termina tão tarde. O dele começa mais tarde e ia até muito mais avançado durante a noite. Outra coisa que eu acho que faz parte do meu DNA, talvez produto da minha herança paterna, é que sou pontual doentiamente. Deve ser uma doença, algo que eu mesmo não me dou conta. Não faço esforço para isso, é natural. A máquina funciona normalmente para que eu obedeça horários.

Então sofreu nos últimos anos.

Sim, de fato. Ele tem uma característica diferente da minha. Eu também não vou conseguir ser tão rígido como gostaria. Tenho que reconhecer que a realidade de governador é totalmente diferente da de vice. A demanda aumenta e não vou conseguir fazer o mesmo que fazia.

Então não haverá diferenças programáticas.

São diferenças pessoais, não programáticas. Do ponto de vista de programas e ideias, ele é extremamente criativo e pouca gente pode competir com ele. A placa com o nome de todos os trabalhadores do Rodoanel foi ideia dele e agora pode ser pensada para outras obras. Não sei se vou ter o mesmo grau de criatividade.

Serra disse que fez uma gestão “popular”. Isso deve ser colocado para o eleitor na campanha?

Talvez isso seja a coisa mais importante para ser colocada numa campanha. Por isso que acho que muito daquilo que ele fez, e os valores que colocou são o que ele vai propor e implementar no nível federal.

Como o sr. pretende ajudar Serra na campanha?

Acho que a melhor forma que tenho é fazer um bom final de governo. Tudo que for feito corretamente vai reverter em benefício dele. O que fizer de errado vai na contracorrente.

Tucanos citam como um exemplo a não ser seguido a gestão de Cláudio Lembo.

O problema do Lembo foi que ele não teve com o Geraldo a intimidade que estou tendo com Serra e com o governo. Assumiu o governo com pouco conhecimento da estrutura da máquina. Além disso, teve alguns problemas que espero que eu não tenha. Foram situações conjunturais delicadas, como a revolta do PCC.

Vai ter mudanças no secretariado nesses nove meses?

Nenhuma mudança.

O sr. tem carreira política. Não é frustrante ser governador e não concorrer à reeleição?

Poderia ser candidato. Teria toda legitimidade e absoluta concordância com os principais pretendentes à candidatura, inclusive com o Geraldo. Neste período assumo com entusiasmo, honra, orgulho, tudo isso. Mas decidi que não quero assumir por mais quatro anos a responsabilidade que terei nestes nove meses. Quero ter outro tipo de vida. Vou completar 40 anos de vida pública. Cumpri um papel que para mim me satisfaz. Estou bem comigo mesmo, resolvido, como se diz aí na praça. Não quero ter quatro anos de obrigação determinada. Como não posso passar dois anos e dizer agora estou cansado, não quero ficar preso neste sentido.

A sua decisão favoreceu unidade em torno de Alckmin. Mas o que parece paradoxal é que o sr. discorda dessa candidatura.

Não discordo; tenho minhas opiniões. Parti de uma opinião, em um momento em que o Geraldo me disse, lá atrás, que não desejava ser governador. Essa condição dele mudou. Neste processo incorporei a ideia de outros nomes. Coloquei isso claramente para ele. Mas se é decisão majoritária do partido e a população vê nele um nome apropriado, concordo e participo intensamente.

Qual avaliação que o sr. faz da gestão Alckmin? Muita gente no partido acha que foi uma gestão mediana.

Alckmin é um homem honesto, correto, bem avaliado pela população. Portanto é muito bem quisto, bem avaliado. Absolutamente correto. É isso que eu posso dizer.

A eleição será plebiscitária?

Lula quer uma disputa entre ele e FHC, e não é isso que está posto. Isso é falso, é enganação. O embate real é entre Dilma e Serra. O povo tem que decidir em cima disso.

Por que o PSDB esconde o ex-presidente FHC nesta eleição?

Como o Lula busca transformar a eleição em uma disputa entre ele e FHC, buscamos eliminar esta discussão. FHC não está em questão. Eles é que querem esconder a disputa real.

O sr. acha fundamental que o vice seja Aécio Neves?

Essas coisas vão se sedimentando, não tem que ter pressa. Até a convenção de junho, a gente tem tempo. Quando se tem uma candidatura forte como a do Serra, o vice tem importância menor do que se a candidatura fosse frágil.

Esse raciocínio também vale para a candidata do PT?

Você tem no Brasil uma realidade da legislação eleitoral. O vice da Dilma é alguém que vai agregar tempo de televisão, e só. É isso que o PT busca. O PMDB de cada Estado, de cada município, é uma entidade absolutamente autônoma. Não existe unidade, e sempre foi assim, mesmo quando o PMDB esteve conosco.


QUEM É

É formado em Engenharia Civil pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). Foi deputado estadual por dois mandatos consecutivos (1971-1978), deputado federal em seis mandatos (1979-1986, 1991-2006). Também foi ministro dos Transportes (1992-1994) no governo de Itamar Franco. Durante a gestão Serra (2007-2010), além de vice, foi secretário de Desenvolvimento até o ano passado.

O “Estado ativo” de Serra

DEU NO CORREIO BRAZILIENSE

Candidato tucano à presidência promete uma política econômica “menos dogmática” e crescimento duradouro

Luciana Otoni


O candidato do PSDB à Presidência da República, José Serra, 68 anos, fundamentará o pronunciamento que fará no encontro nacional do PSDB, DEM e PPS, no sábado, em Brasília, no slogan “O Brasil pode mais” e no conceito “Estado ativo”(1). Inspirado no “we can” (nós podemos) da vitoriosa campanha eleitoral de Barack Obama em 2007, “O Brasil pode mais” é a mensagem que os tucanos supõem curta, de impacto e que transmite ao eleitor a promessa de um futuro mais promissor que o proporcionado pelos ganhos atuais da estabilidade. A diretriz é gerencial e, ao falar do ativismo do Estado, Serra sustentará que o interesse coletivo está órfão e que ele é o administrador capaz de conduzir o Brasil na travessia para um ciclo de crescimento duradouro.

Serra não manifesta a intenção de alterar a atual estrutura macroeconômica, formada pelo tripé das políticas de meta de inflação, câmbio flutuante e economia do setor público para o pagamento dos juros da dívida (superavit primário). Por outro lado, baseado em seu posicionamento e em declarações recentes, o tucano, se eleito, modificará a gestão da macroeconomia para, conforme informam seus colaboradores, trabalhar com uma “política econômica menos dogmática” e direcionada a um ajuste fiscal mais austera, com ênfase em política industrial.

Câmbio e juros

Em uma administração Serra, a moeda brasileira não deverá seguir no atual nível de valorização. O debate sobre a política cambial, ressaltam os tucanos, é delicado, mas isso não significa que o regime de câmbio flutuante não possa ser ajustado. O próprio Serra, em declarações recentes, classificou a taxa de câmbio do país como “megavalorizada”. “O Brasil está, de alguma maneira, numa armadilha, que tem três lados: os maiores juros do mundo, já há muitos anos; a taxa de câmbio talvez hoje a mais valorizada do planeta; e uma explosão de gastos correntes como nunca houve em valores reais”, disse ele em dezembro em entrevista à revista do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

E segue em seu pensamento: “Não há necessariamente esse dilema, estabilidade versus desenvolvimento. Na verdade, a diferença existe em relação a políticas macroeconômicas, e não à estabilidade. Só posso dizer o seguinte: em nenhum dos preceitos do Consenso de Washington figura a ideia de que para desenvolver o país você precisa megavalorizar a moeda. Isso é simplesmente um erro, não é ortodoxo nem heterodoxo”, acrescentou.

A política monetária deverá também ser ajustada. A ideia, apontam os tucanos, é trabalhar “com taxas de juros mais realistas”. A avaliação no PSDB é de que o câmbio “megavalorizado”, combinado com “os juros mais altos do planeta”, retira a competitividade das empresas e mantém o país em uma “armadilha” do baixo crescimento.

Para Serra, não há uma fórmula única de gerenciar a macroeconomia. “Talvez tenha sido eu mesmo que qualifiquei pela primeira vez de tripé a combinação da responsabilidade fiscal, câmbio flutuante e metas de inflação, definido no segundo mandato do Fernando Henrique. Mas, veja bem, não há uma única maneira de se implantar e fazer funcionar esse tripé”, disse, na mesma entrevista ao Cebrap, em uma indicação de que as políticas podem ser modificadas.

De perfil gerencial e tido como centralizador, o economista José Serra tem garantido que é preciso preservar as condições de sustentabilidade do crescimento e dos ganhos de consumo no médio e no longo prazos.

BC e privatização

Em uma gestão Serra não há garantia de que o Banco Central desfrutará de autonomia operacional. Responsável por calibrar a taxa básica de juros (Selic) para regular a atividade econômica (e determinar o maior ou menor crescimento do país) e entregar uma inflação baixa (a meta anual é de 4,5%), o BC tem hoje um dirigente forte, Henrique Meirelles, com status de ministro e que recebeu carta branca de Lula. Por isso, esteve sob pressão dos empresários e em confronto com a equipe de Guido Mantega, no Ministério da Fazenda. Serra, que durante o governo FHC criticou o monetarismo do ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, pode preferir um BC menos forte em comparação à autoridade monetária de Lula.

Para responder ao ataque da candidatura de Dilma Rousseff (PT), de que uma administração PSDB-DEM-PPS seria a de um “Estado mínimo dos neoliberais”, os tucanos argumentam que o PT se contradiz. “O discurso do PT trabalha com uma contradição que não existe mais, Estado ou mercado. Essa é uma falsa questão, uma falsa opção. É preciso um Estado ativo com políticas públicas de qualidade para o conjunto da sociedade para que o Estado e o setor privado possam prosperar. Há coisas que somente o Estado pode fazer e que somente o Estado pode liderar, isso é ativismo governamental”, explica o deputado federal Luiz Paulo Vellozo Lucas (PSDB-ES).

Considerado um dos formuladores do PSDB, Vellozo Lucas informa que a agenda econômica de Serra será focada na competitividade das empresas e simplificação tributária. A intenção, diz, é eliminar impostos indiretos incidentes sobre produtos e serviços. Na gestão da máquina pública, Serra não proporá uma reforma administrativa, mas defenderá que o Estado precisa ampliar sua capacidade de investimento e que isso será feito mediante a revisão de gastos. Na regulação financeira, o entendimento é de que os bancos precisam ampliar a oferta de dinheiro a pessoas físicas e a empresas.

O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) reforça que o conceito “Estado ativo” será a chave da proposta tucana. “O Estado terá papel importante. Isso não quer dizer um Estado meramente regulador. É um Estado que desburocratiza, que corrige imperfeições e que é o indutor mais forte da infraestrutura”, frisa. Jereissati lembra que, em algum momento da disputa pelo comando do Palácio do Planalto, em outubro próximo, o tema privatização será discutido. “Não fugiremos desse debate”, avisa.

O candidato tem pela frente uma semana de mobilização para o encontro nacional do PSDB-DEM-PPS. O objetivo é reunir governadores, prefeitos, deputados e vereadores dos partidos que sustentam a aliança, unificar o discurso em âmbito nacional e se descolar da imagem de um administrador restrito a São Paulo. Para isso, proporá medidas focadas na redução das desigualdades regionais.

Coletividade

O conceito “Estado ativo” será a espinha dorsal da proposta de administração do país e das políticas macroeconômicas do candidato José Serra. A partir desse conceito, o tucano defenderá que a formulação de políticas públicas e da gestão das políticas de juros, câmbio e inflação será feita considerando o interesse coletivo e o crescimento de longo prazo.

O Brasil está de alguma maneira numa armadilha: os maiores juros do mundo, já há muitos anos; a taxa de câmbio talvez hoje a mais valorizada do planeta; e uma explosão de gastos correntes como nunca houve em valores reais.

Talvez tenha sido eu mesmo que qualifiquei pela primeira vez de tripé a combinação da responsabilidade fiscal, câmbio flutuante e metas de inflação, definido no 2º mandato de FHC. Mas, veja bem, não há uma única maneira de se implantar e fazer funcionar esse tripé

Estado de ânimo:: Melchiades Filho

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

BRASÍLIA - Possivelmente "nunca neste país" um programa do governo federal foi desconstruído e questionado como o PAC. E justamente por isso a "prateleira de obras" não é de todo irrelevante.

No conteúdo e na execução, o PAC pouco se distingue de outras ferramentas de gestão, como o Avança Brasil dos tucanos. A diferença está na força da propaganda.

De tão martelada, a sigla transformou seu autor em refém. Não há mais como o Planalto descartá-la.

Daí a atenção da imprensa também. No mês passado, a Folha noticiou que:

1) a Casa Civil oculta informações de 94% do PAC 1 e maquia o ritmo dos 6% restantes;

2) três em cada quatro obras detalhadas até aqui nos balanços não foram concluídas no prazo original;

3) dos principais projetos do PAC 2, 64% não passam de reciclagem do que encalhou no PAC 1.

Esses dados não só expõem a falibilidade da ontem "gerentona" e hoje candidata à Presidência, mas ajudam o poder público -e o público- a lembrar que governar não é a moleza prometida pelo marketing.

Todo governante toma posse pressionado pelos compromissos que assumiu durante a campanha eleitoral e pelos problemas que lhe serão apresentados. Sua ordem é agir -e rápido. O regramento, porém, está todo formatado para impedir arroubos: leis de licitação, licenciamentos ambientais etc.

Além disso, o político que assume o Executivo tem uma vida útil de quatro anos -oito, se bem-sucedido. Já o servidor tem 30 anos de estabilidade até a aposentadoria. O sentido de urgência de um não move o outro. Para a burocracia estatal, o eleito está só de passagem.

Ao prometer com ênfase o que não conseguiu entregar, o PAC colocou em pauta a questão da (in)eficiência no manejo das contas públicas.

"O Brasil pode mais", "Por um Estado melhor", os slogans da eleição de 2010 já se delineiam. Isso é bom. Culpa (mérito?) de Dilma ou do marqueteiro do PT, tanto faz.

E a social-democracia?:: Alberto Dines

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Faltam apenas algumas formalidades, a corrida presidencial já começou. Além das alfinetadas pessoais, tentou-se um debate conceitual que dificilmente vingará. Pura preguiça: discutir ideias é mais complicado do que confrontar slogans. Os marqueteiros abominam conteúdo, é mais confortável vender "produtos", os formadores de opinião preferem provocar retaliações facilmente exacerbadas pelo clima "plebiscitário", as militâncias rejeitam reflexões que as tornam inúteis e o pobre do eleitor, obrigado a fixar-se no placar das sondagens, acabará por achá-las chatas.

A primeira e até agora única experiência temática ensaiada foi a do "Estado Forte" - enganosa: ninguém quer um Estado frágil, incapaz de enfrentar emergências e surpresas num mundo que tende a produzir emergências e surpresas em altíssima velocidade.

Mesmo no âmbito da economia – potencialmente o mais rico em matéria conceitual – a agenda de debates promete grandes simplificações concentradas principalmente em torno da subida ou manutenção da taxa de juros para conter o aquecimento da demanda.

A candidata Marina Silva, cujo perfil pessoal e partidário contém naturalmente uma grande carga programática, dificilmente conseguirá alçar-se acima da barragem de acusações ou da comparação de feitos e façanhas.

A atual penúria ideológica contrasta com a primeira década da redemocratização (1979-1989) quando apareceram duas siglas marcadamente ideológicas estimuladas pelo artífice da abertura, o general Golbery do Couto e Silva, obsessivamente fixado em esvaziar a força do "partidão", o PCB, aninhado dentro do antigo MDB.

A primeira sigla foi a do PDT (Partido Democrático Trabalhista) fundado em 1979 por Leonel Brizola que pretendia assemelhar-se ao Labour Party, o partido trabalhista inglês. Associou-se imediatamente à Internacional Socialista, embora sua vocação e ambição fossem direcionadas prioritariamente para a reativação do trabalhismo getulista.

O PT (Partido dos Trabalhadores), fundado no ano seguinte, abrigava inicialmente uma ala de intelectuais socialistas, porém o grupo mais forte era constituído por novas lideranças sindicais apoiadas em elementos trotskistas igualmente anti-PCB que conseguiram enfiar no documento inicial um repúdio frontal à social-democracia por considerá-la incapaz de enfrentar o "capitalismo imperialista".

A sigla mais recente, o Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB, 1988), dissidência do PMDB, inspirou-se no modelo do socialismo democrático europeu com apoio da ala progressista da Democracia Cristã.

Porém a necessidade de montar alianças para chegar e manter-se no poder desnaturou os dois últimos e mais autênticos grupamentos. O lançamento do real e a intervenção no sistema financeiro através do Proer, em 1995, talvez tenham sido os atos mais "estatistas" desde a redemocratização. A privatização do sistema Telebrás, responsável pela formidável expansão da telefonia no País, não foi acompanhada por um suporte regulador, convertendo-se em autêntica terra de ninguém. A convivência eleitoral com o PFL (agora DEM) tirou do PSDB sua marca e seu charme social-democrático.

E o que deu a vitória ao PT tanto em 2002 como em 2006 foi uma audaciosa guinada neo-liberal que, paradoxalmente, reforçou o capitalismo de Estado. No lugar do Welfare-State, o Estado previdencial e provedor, apostaram-se todas as fichas num sistema assistencialista do qual dificilmente será possível libertar-se.

A febre consumista e a necessidade de manter ligadas as turbinas do crescimento não permitirão um debate em torno da irracionalidade da sociedade de mercado ou sua compulsão para fabricar bolhas. O eleitor-consumidor será bajulado por todos os candidatos, o seu voto será dado a quem lhe oferecer maior grau de satisfação imediata. Como escreveu Leonel Jospin, ex-premiê socialista francês, o mercado produz riquezas mas não produz solidariedade, nem valores.

A questão ética vai frequentar os debates mas renderá, no máximo, ataques mútuos no campo das "roubalheiras". É pouco: uma sociedade e um sistema político intoxicados pela corrupção mas envergonhados de discutir questões morais não tem condições de produzir novos conteúdos.

» Alberto Dines é jornalista

Nos discursos, Dilma só fala em Lula, enquanto Serra evita FH

DEU EM O GLOBO

RIO - Uma análise de 52 discursos públicos de Dilma Rousseff (PT), José Serra (PSDB) e Marina Silva (PV), no mês de março, esmiúça o repertório de prioridades e afinidades dos principais concorrentes ao Planalto e aponta o caminho que devem seguir na campanha que se inicia oficialmente em julho. Uma diferença, entre tantas, se destaca: o peso dado por Dilma a Lula e por Serra a FH. A ex-ministra falou 96 vezes a palavra "presidente", se referindo a Lula. O nome do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso aparece apenas quatro vezes no discurso de Serra.
O tema prioritário do tucano foi o estado que governou: ele citou 263 vezes a palavra São Paulo, 46 delas no discurso de despedida, na última quarta-feira. É o que informa a reportagem de Carolina Benevides e Maiá Menezes, publicada na edição do GLOBO de domingo.

A avaliação foi feita em cima de 32 discursos de Serra, 13 de Dilma e sete de Marina (recolhidos de seu site e do YouTube). No caso da pré-candidata do PV, o levantamento indica que o PAC é um de seus assuntos-alvo. Todas as citações dão caráter negativo ao programa.

Presidente cita pré-candidata 69 vezes

Em março, último mês antes do prazo de desincompatibilização para candidatos às próximas eleições, quem acompanhou os discursos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva o ouviu repetir 69 vezes o nome da ex-ministra Dilma Rousseff, sua candidata ao Planalto. Na última quinta-feira, já com Dilma fora do governo, Lula ironizou a fiscalização eleitoral em torno da pré-campanha, ao dizer que iria "se conter" para evitar multas. Em geral, o presidente cita a ministra ao tecer elogios às obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A contagem foi feita pelo GLOBO em 34 discursos de Lula , disponíveis no site da Presidência.

Evocações fortuitas::Ferreira Gullar

DEU NA FOLHA DE S. PAULO/Ilustrada

São coisas doídas, mas as lembro com doçura; em mim, os amigos que se foram continuam vivos

FOI ALI na rua México, no centro do Rio, por volta das quatro horas da tarde -numa tarde de 1993-, quando me dirigia para o palácio Gustavo Capanema, que, ao cruzar a rua, ouvi alguém gritar: -Meu poeta!

A voz vinha da outra calçada, de um homem de paletó desabotoado, largo no corpo, e uma pasta na mão. Era Tom Jobim, que me acenou, sorrindo, no meio de outros transeuntes. Foi uma alegria ouvi-lo, vê-lo, e tive vontade de mudar de rumo e, em vez de seguir para a Funarte, ir abraçá-lo, mas ele se foi. Teria sido nosso último abraço, que não houve.

Foi na casa de Joaquim Pedro de Andrade que, certa manhã de junho de 1968, ele, eu e Jânio de Freitas acertamos com Hélio Pellegrino o que deveria dizer, no dia seguinte, no Palácio Guanabara, em nome dos intelectuais, que ali estariam para exigir do governador Negrão de Lima que contivesse a violência de sua Polícia Militar. É que os protestos contra a ditadura estavam sendo ferozmente reprimidos pela PM, que, aliás, divulgara uma nota ameaçadora, afirmando que, a partir daquele dia, seria "olho por olho, dente por dente". O palácio foi tomado por dezenas de intelectuais -de Clarice Lispector a Oscar Niemeyer-, dando início à mobilização que desembocaria na Passeata dos Cem Mil.

Outras vezes estive na casa de Joaquim Pedro, ali, na rua Nascimento Silva, em Ipanema. Lá foram tomadas as decisões que resultaram na primeira manifestação, no Teatro Casa Grande, que deflagrou a frente ampla contra a ditadura. Do ato público, que deu início àquela etapa decisiva, participaram Tancredo Neves e Ulisses Guimarães. Ao final, todos os integrantes da mesa levantaram os braços de mãos dadas, num gesto que se tornaria simbólico e que tem sido repetido ao longo dos anos, nas mais diversas ocasiões.

A última vez que estive com Joaquim Pedro foi num jantar com outros amigos. Logo depois, ele adoeceu gravemente e se foi. Fumava muito.

Mantinha uma relação especial com Glauber Rocha: afetuosa e conflitante. Variava. Certa noite, juntamente com ele, Mário Pedrosa e Darcy Ribeiro, participei de uma entrevista sobre o exílio. Em meio à entrevista, Glauber começou a atacar o Partido Comunista, acusando-o injustamente, a ponto de Mário Pedrosa -que estava longe de simpatizar com o PCB- tomar a defesa do partido. É que Glauber, de quando em vez, se levantava, ia ao banheiro e voltava pilhado.

Noutra ocasião, telefonou convocando-me para tomarmos de assalto a redação de "O Jornal", órgão dos Diários Associados, que era motivo de disputa entre os herdeiros de Assis Chateaubriand. Tentei dissuadi-lo daquela maluquice, mas não consegui. De qualquer modo, ficou tudo em conversa mesmo.

Noutras ocasiões, conversamos e rimos, como amigos que éramos e de uma amizade que superava qualquer eventual discordância. Quando, de volta do exílio, desembarquei no Galeão, sem saber o que me esperava, ele estava lá entre os muitos artistas e intelectuais que foram ali me dar respaldo. Graças a eles, saí livre do aeroporto e pude dormir, de novo, depois de muitos anos, em minha cama brasileira, na rua Visconde de Pirajá, 630.

Anos mais tarde, quando fui vê-lo, morto, na Escola de Artes Visuais, os pés descalços, os tornozelos presos por uma corda, metido numa calça amarfanhada e numa camisa de mangas curtas, desabotoada, engoli em seco. A vontade que tive foi de me jogar sobre ele, abraçá-lo e chorar nosso desamparo e nosso afeto. Enxuguei os olhos e fui embora.

Depois de seu sepultamento no cemitério São João Batista, ao voltar para casa, perdido no mundo, comecei a escrever um poema que terminava assim:"O morto está morto:só falta embrulhá-loe jogá-lo fora"

Eu estava em Paris e soube que Leon Hirschmann encontrava-se lá para tratar de um câncer. Telefonei-lhe com a intenção de visitá-lo, mas ele se esquivou. "A gente se vê no Rio, tá?" De fato nos vimos, em sua casa, aqui, em Copacabana. Ele estava devastado pela doença, seu rosto diminuíra estranhamente. Pareceu-me hostil, não queria ser visto naquele estado. Saí de lá desarvorado.

Depois foi Mário Pedrosa, que encontrei na praia de Ipanema, acompanhado de uma enfermeira. Fui falar-lhe, mas não me reconheceu. No entanto, aqueles olhos cinza-azulados, eu os conhecia; eram os olhos do amigo carinhoso, com quem tanto aprendi. São coisas doídas estas, não? Mas as lembro com doçura, porque as trago comigo e, em mim, esses amigos continuam vivos, olhando o mundo por meus olhos. E, às vezes, até rindo juntos, quando achamos em algo a mesma graça.

Serra chama o mesmo grupo que o ajudou 4 anos atrás

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

José Gregori ficará no comitê financeiro, e Luiz Gonzaléz cuidará da comunicação

Convidado para o comitê, Xico Graziano diz que sua função é trazer "propostas inovadoras, já que o PT se apropriou das nossas"

Catia Seabra

O pré-candidato do PSDB à Presidência, José Serra, deixou ontem o governo de São Paulo acompanhado de apenas um assessor e dois ajudantes de ordem (como determina a lei). Agora, se dedica à delicada tarefa de desenhar sua estrutura de campanha sem provocar um desmonte da equipe do Estado e da Prefeitura de São Paulo.

Para o comitê financeiro, planeja indicar o tesoureiro da sua campanha a governador, o ex-ministro José Gregori, hoje no município. Confirmada a escolha, reproduzirá, em 2010, boa parte da equipe de 2006: para a coordenação administrativa, o ex-secretário estadual José Henrique Reis Lobo; na comunicação, Luiz Gonzaléz; e, no jurídico, Ricardo Penteado.

Além do coordenador-geral da campanha, o presidente do PSDB, Sérgio Guerra, o secretário estadual de Meio Ambiente, Xico Graziano, e o presidente da SPTuris, Caio Carvalho, serão escalados para o comitê: Graziano para o programa de governo, e Carvalho para a organização de eventos.

"Minha tarefa é apresentar propostas inovadoras, já que o PT se apropriou das nossas", disse Graziano na quarta-feira, um dia depois de convidado.

Mas, para além da estrutura formal, um time recrutado por Serra já se reunia, há seis meses, toda segunda-feira, religiosamente, na mesa do ex-ministro Andrea Matarazzo.Nesses jantares, que invadiam a madrugada à espera de Serra, foi traçada boa parte da estratégia da pré-campanha, da data para renúncia do pré-candidato ao desenho de palanques nos Estados. Foi num desses encontros que o ex-chefe da Casa Civil Aloysio Nunes Ferreira informou a disposição de tentar o Senado, abrindo mão de disputar o governo paulista.

Deles participavam Guerra e o hoje governador Alberto Goldman. Um dos principais articuladores políticos de Serra, o deputado federal Jutahy Magalhães viajava diretamente da Bahia para as reuniões.

Cada integrante cumprirá uma missão na campanha. Além da interlocução com o empresariado -seja para quebrar resistências ao candidato ou busca de apoio financeiro-, Matarazzo e o ex-presidente da Emplasa Márcio Fortes assumem também outras tarefas.Artífice do acordo com Fernando Gabeira (PV) no Rio, Márcio Fortes trabalhará por Serra no Estado. Matarazzo atuará informalmente na coordenação-geral da campanha.

Para o diálogo com o empresariado, os dois contarão com a ajuda do ex-deputado Ronaldo Cezar Coelho. Já Eduardo Graeff atua no conteúdo de comunicação pela internet.

Sua participação revela um nó da campanha: a velha dissonância entre Brasília e São Paulo. Homem da confiança de Serra, mas alvo de tucanos desde 2006, Gonzaléz pretende concentrar em São Paulo toda a estrutura de comunicação, sem ingerência política.

O comando do PSDB insiste em criar um núcleo de comunicação. Os dois grupos serão, geograficamente, separados. Em São Paulo, deve funcionar a logística da campanha; em Brasília, o comando político.

Reflexões de um presidente acidental – debate caderno ALIÁS

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / aliás

Democracia, liberalismo, esquerdas, fortuna e virtù na visão de FHC, o intelectual que não quer para si o silêncio dos monastérios

SÃO PAULO - "Esqueçam o que escrevi." A frase, atribuída ao então presidente Fernando Henrique Cardoso - que ele nega ter pronunciado -, serviu de mote para o bem-humorado título de seu novo livro. Editado pela Civilização Brasileira com organização de Miguel Darcy de Oliveira, Relembrando o que Escrevi: da Reconquista da Democracia aos Desafios Globais reúne artigos e entrevistas do sociólogo, político e intelectual público que ocupou o Planalto por dois mandatos consecutivos, de 1995 a 2002. Dividido em cinco grandes temas - liberdade e democracia, esquerda e política, sociedade e Estado, desenvolvimento e globalização, esperança e futuro -, o livro mapeia reflexões e questionamentos ao longo de três décadas, precisamente de 1972 a 2006. Segundo o próprio Fernando Henrique, o mundo mudou, ele mudou, mas a orientação geral de suas ideias, até que não: "Se houve aggiornamento foi mais na forma do que no conteúdo", escreve na apresentação do livro.

No mesmo dia em que sua ausência se fez sentir até por uma cadeira vazia na cerimônia de desligamento do governador paulista José Serra, no Palácio dos Bandeirantes - e quando Dilma Rousseff também deixava seu gabinete em Brasília rumo à campanha presidencial -, FHC aceitou o convite do caderno Aliás para conversar e debater, por mais de duas horas, com três renomados intelectuais: o sociólogo José de Souza Martins, o filósofo Renato Janine Ribeiro e o cientista político Renato Lessa.

O encontro, aberto ao público, ocorreu no Centro Universitário Maria Antônia, em São Paulo, no antigo salão nobre da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, onde FHC defendeu sua tese de doutorado, em 1961. A seguir, uma síntese da sabatina que enfrentou ao responder às perguntas de Martins, Janine Ribeiro e Lessa.

Burguesia de Estado

José de Souza Martins: Seu livro provoca discussão do que não tem sido discutido. Sobretudo nos textos relativos ao período da luta contra a ditadura, há destaque para a relevância dos movimentos sociais na construção da nova realidade política do País, realidade pós-ditatorial. A sociedade civil concorreu vigorosamente para o fim do regime militar. No entanto, temos nos deparado hoje com advertências em torno das ameaças representadas pelo autoritarismo popular. Boa parte desse autoritarismo se expressa justamente por meio de movimentos sociais. Como fica o ideal da democracia radical?

FHC: Quando voltei do Chile, da França, a preeminência da sociedade civil nos movimentos sociais chamava a atenção. A literatura sociológica mostrava, nos anos 60, sobretudo nos anos 70, as discussões de novas formas de poder. O conceito de sociedade civil reaparecia de uma forma diferente daquela que existia no passado. A sociedade civil era a sociedade não militar. Nela, contava muito mais a presença e a participação do que a estrutura. Tanto faz se as pessoas estivessem organizadas socialmente, hierarquicamente, classe média, classe não sei o quê, empresariado e tal. A questão era estar participando, juntos, daquilo - estar no movimento da sociedade civil, "do lado bom". Na época isso se confundiu com movimentação dos trabalhadores. Mas era tudo contra o regime. Eu, que naquela altura já havia escrito uns artigos soltos sobre o tema, disse: "Cuidado, de repente vamos ver uma relação se formar entre o líder do governo e a burocracia". Parecia não haver mais a dinâmica de poder forte, no sentido anterior, de grandes estruturas de classe, de dominação. Depois do regime autoritário, fiz um trabalho sobre os anéis burocráticos apontando que a política, nesse momento no Brasil, não passava pelas estruturas tradicionais, porque havia vínculos entre setores empresariais e setores da burocracia, constituindo esses anéis. Isso, ao contrário de uma sociedade com participação mais ativa, poderia levar a uma manipulação através dos grupos de poder. É a briga pelo poder. Foi até onde cheguei naquele momento, rico do ponto de vista intelectual, mas uma tragédia do ponto de vista político. Porque nós, intelectuais, tínhamos que reagir contra. E quando os intelectuais não têm como reagir, quando o sistema está fechado, eles vão para o monastério. O Cebrap era um monastério. Uma outra discussão que ganha pertinência nos dias de hoje é o que chamo de "burguesia de Estado". Tem que tomar cuidado: vivemos num sistema democrático, as empresas estatais estão crescendo, mas o que se presencia é a formação de uma burguesia de Estado. Olha a contradição dos termos... Mais tarde, (o sociólogo) Chico de Oliveira veio com uma crítica ainda mais radical sobre o funcionamento dos fundos sociais e fundos de pensão. Em síntese, mesmo em plena democracia, as forças reais de decisão no Brasil estão se constituindo num golpe de poder que une setores do Estado com setores empresariais e os fundos. Isso é algo que é preciso discutir.

A crítica às esquerdas

Renato Janine Ribeiro: Presidente, em seu livro, sua posição favorável à privatização não aparece. E o sr. já falava de uma esquerda arcaica, tradicional, em textos dos anos 70. Ocorre que, de lá para cá, a esquerda - que o sr. preza a ponto de dialogar com ela - mudou. Vejo uma mudança grande do PT dos anos 80 para o PT do governo, não sei se para melhor ou pior. Minha pergunta é: que mudanças ocorreram entre a esquerda dos anos 70 e a de hoje?

FHC: Excelente questão. De fato, lá atrás não estava colocada a questão da privatização. Ela só apareceu nos anos 80, no governo Sarney, e depois sob Collor e Itamar. Porque o mundo era outro, isso não se cogitava. Ao contrário, era preciso que o governo investisse em interesses do setor privado para garantir o desenvolvimento. Getúlio, quando fez Volta Redonda, tinha a ideia de que fosse uma empresa privada. Só que não houve interesse por parte do setor privado, houve até uma recusa formal. Daí o Estado entrou. Depois, isso foi mudando e veio a incapacidade do setor estatal em garantir recursos e tecnologia. Para mim, privatização não é ideal nem objetivo, é uma coisa pragmática. Também acho que transformar o monopólio público em monopólio privado não é progresso, porque o importante é haver competição. Com relação a sua pergunta sobre como vejo as esquerdas, nos anos 50, 60, o eixo fundamental que se tinha era a União Soviética. Esse era o paradigma. Havia ali uma transformação grande do pensamento original marxista para a ideia do partido que toma conta do Estado e socializa os bens de produção. Democracia não se discutia, não era tema. E passou esses anos todos sem ser discutida. Claro, houve uma crise da Europa, antes do final do regime soviético, introduzindo certa abertura para a ideia de democracia como valor, sobretudo entre os italianos. Tanto na Europa como aqui, líamos e falávamos em Gramsci, embora não fosse a linha dominante. Já no final dos anos 80 vem a queda da União Soviética e, antes mesmo disso, nos 70, a globalização já estava em marcha, com seus saltos tecnológicos, a comunicação, a internet, etc. Naquele momento, vi a formação do PT. Estava-se fazendo um partido de trabalhadores no sentido proletário, o que não se sustentava, pois a concepção de que aquela classe iria transformar a história estava desaparecendo. Por ter feito essa crítica, à época, me chamavam de "policlassista". A verdade é que o PT nasceu de três vertentes: a católica, que vinha dos movimentos sociais de base, a guerrilheira/ideológica e a dos sindicalistas. Hoje, prevalece a dos sindicalistas. A vertente católica foi se esvaecendo e a ideológica perdeu peso também. Na prática, o PT vira um partido social-democrata no governo, absorvendo as transformações do mundo. Mas por que mantenho a minha crítica? Porque permanece essa luta contra a ideia de globalização e contra o que se chama de "neoliberalismo". Hoje, o governo do PT se orgulha das multinacionais brasileiras que se globalizaram e até dá dinheiro para isso. Só que, na teoria, a coisa é diferente: os documentos do partido mantêm até hoje a mesma visão antiga. O fato é que o Brasil ganhou com a globalização. Virou Bric. O que precisa agora é haver uma crítica da própria elite da esquerda, uma crítica teórica, porque, na prática, essa esquerda no poder já está fazendo até demais (risos). Há também essa defesa da "democracia plebiscitária" do Chávez, essa ideia de que se você tiver o consenso da massa tudo se justifica. É risco para a democracia.

Visões da democracia

Renato Lessa: Vejo no livro uma contribuição importante para o debate sobre a teoria democrática. Traz expressões que caíram em desuso e acabaram voltando a nossa reflexão, como ‘democratização fundamental’ e ‘democracia substantiva’ - a ideia de que é possível pensar a democracia além da obrigatória adesão às dimensões formais. O sr. teria trocado uma perspectiva mais sociológica do fenômeno democrático por uma mais institucionalista? Penso que seria fundamental se nós ‘ressociologizássemos’ nossa percepção da política, para que ela não ficasse restrita ao jogo formal das instituições.

FHC: Como levar daqui para frente a democracia - essa é uma reflexão fundamental. Fiz recentemente uma conferência sobre Joaquim Nabuco, na Academia Brasileira de Letras, e me ocorreu levantar questões sobre a República, a organização política, as instituições e o processo social. Nós sempre tendemos a dissociar liberalismo e democracia em qualquer discussão. Por razão histórica há uma reação muito grande ao liberalismo no Brasil, tanto que quando alguém quer me xingar, me chama de neoliberal (risos), o que é um absurdo. Porque tomam o liberalismo como laissez-faire, simplesmente liberdade de mercado. Ora, não é isso. Hoje ninguém aqui é contra o capitalismo e sim contra o liberalismo. Mas não se pode recusar o liberalismo político, até porque a democracia substantiva não foi criada para isso. Não foi para dizer "democracia formal não vale, a representação não tem mais sentido". Não era uma volta a Rousseau. Há uma questão central: conseguiremos ou não certa convergência entre o pensamento democrático tradicional e as formas de participação direta no processo decisório? O equilíbrio é difícil. Em sociedades de massa como a nossa, e Nabuco e Tocqueville já tinham percebido isso lá nos Estados Unidos, há [PODE HAVER]o risco da demagogia. Nabuco temia que nos EUA, dada a forma republicana presidencialista, houvesse uma delegação total ao tutor, o presidente da república: "Parece que os americanos ficam felizes porque elegem o próprio tutor", disse, ironicamente. Hoje, em lugar de procurarmos combinar representação clássica com participação, corremos o risco de substituir tudo isso pela figura do tutor. É um perigo. Daniel Bell (professor de filosofia na Universidade Tsinghua, de Pequim) escreveu um artigo dizendo que os chineses têm uma ideia diferente dos ocidentais: com a generalização do voto e o desejo da massa de contar com uma figura simbólica, eles têm medo de não eleger os mais capazes e sim os de maior poder de comunicação. Por isso tendem a preservar os mecanismos meritocráticos do Partido Comunista. No Ocidente, onde se conseguiu fazer parlamentarismo houve maior possibilidade de equilíbrio institucional. Onde há presidencialismo, há risco maior de cesarismo. Vamos ter que pensar: na democracia, como compatibilizar o respeito às ideias de delegação com as de participação? Temos que voltar a discutir também o que é liberalismo político, não econômico. Ser contra o liberalismo político é estar a um passo de cair no lado autoritário.

Além do possível

Martins: Forte e insistente no livro é o tema do possível. Há uma frase dizendo que ‘o intelectual tem de estar na fronteira do possível’. Eu já fui malhado, falando nesse possível, por pessoas ligadas aos movimentos populares e da Igreja. ‘Não, nós temos que ir além do possível’, diziam. Mas esse possível não tem a ver necessariamente com o viável, é mais do que o viável. O possível ainda está no horizonte do governante? E na atual realidade brasileira? Segundo sua interpretação, por lidar com o possível, o intelectual é incômodo. Mas acho que os intelectuais deixaram de ser incômodos. Seria um retrocesso?

FHC: Sempre dizem que a política é a arte do possível. Não. Política é a arte de tornar possível o necessário, o desejável. Se não você não muda, é conservadorismo puro. Você tem que construir essa possibilidade. Não é qualquer coisa que é possível. Você tem que ter essa capacidade de construir os mecanismos que levem você à possibilidade de se aproximar de seu ideal. Não acredito que exista uma política forte sem alguma utopia. Recentemente, o (historiador inglês) Tony Judt deu uma entrevista dizendo: "Olha, o problema fundamental para o futuro é saber quais são nossos valores. Porque a economia vai andar sozinha". As economias são muito fortes. De vez em quando um país dá uma trombada, entra numa crise e tal, depois se recupera. É preciso voltar à questão clássica grega: qual é a boa sociedade? É uma questão de valores. O que queremos fazer na sociedade? Isso justamente implica alargar o limite do possível. Não é voluntarismo, basta querer que acontece. Quando dizem "falta vontade política" me dá um arrepio. (É como se dissessem) "a culpa é dele, está lá em cima e não faz". Como se a vontade fosse o decisivo na história. Ela não é decisiva! Tem que ter alguma vontade e ser competente para tornar possível seu ideal. Acho que estamos muito viciados no economicismo do pensamento. Pensamos tudo em termos do que é possível na economia. A gente só se preocupa com "cresceu o PIB". Eu vou repetir o que disse há poucos dias a um repórter americano do Miami Herald. Ele me perguntou: "O senhor acha que o Brasil vai ser mesmo a quinta potência do mundo?" Eu disse: "Pode ser, mas o que você chama de potência? Produto interno bruto? Então talvez seja". Mas não é essa a pergunta correta. Tem que perguntar: "O senhor acha que o Brasil vai ser uma sociedade mais decente, mais digna, mais solidária, mais coesa, melhor para o seu povo, com mais igualdade?" Aí eu tenho dúvidas. Do ponto de vista econômico o Brasil vai continuar crescendo. Haverá seus ciclos, depende um pouco do governo, mas não só dele, depende de conjuntura... Mas nós já temos nos motores da nossa economia máquinas muito poderosas. Vamos levantar voo. O resto eu tenho muita dúvida. O possível para mim é você deslocar dessa fixação meramente economicista para um pensamento de valores. Como é que vamos ter realmente uma sociedade decente? Como vamos fazer para dar uma educação que permita ao Brasil avançar mais? Há muitos anos eu digo que no dia em que o País tiver telefonista ou empregada doméstica capazes de anotar um recado, então terá se desenvolvido. Não só aprendemos a voar como a fazer avião. Mas como é difícil desembarcar no Brasil! Difícil chegar à porta do avião. Se vier do exterior, passar pela aduana é uma coisa dificílima. Não se faz a fila direito. Essas coisas contam. Como é que você vai tornar o comportamento do dia a dia compatível com o comportamento que já podemos ter? Eu disse há muitos anos que o Brasil não é mais um país subdesenvolvido, é um país injusto. Fui criticado. Hoje digo que, economicamente, o Brasil já teve um desenvolvimento que lhe permitiria ser um país mais justo. Mas continua sendo um país que não avançou suficientemente nos termos fundamentais de igualdade, justiça, equidade. Aqueles que vão liderar o Brasil daqui para frente terão de colocar ênfase nesse tipo de questão. Não é só fazer políticas sociais que mitiguem a desigualdade. É muito mais. Nem conseguimos ainda fazer com que todos acreditemos que somos iguais perante a lei, por exemplo. E não somos. Como é que se faz democracia onde você não tem igualdade perante a lei? Joaquim Nabuco dizia que a Inglaterra era o único país do mundo onde o duque de Westminster e seu mordomo, se fossem chamados pelo juiz, teriam o mesmo temor, e o juiz decidiria independentemente da condição social deles. Aqui não acontece isso. Não é por causa do juiz. É por causa da legislação e é por nossa causa. A sociedade brasileira aceita a desigualdade. E é indulgente com a corrupção.

Um intelectual popular

Janine Ribeiro: Seu livro é o relato de um intelectual que se tornou governante, o que é extremamente raro. Na história do País, talvez o único intelectual de seu porte que tenha chegado ao poder seja José Bonifácio - e em curto espaço de tempo, por um capricho do imperador. Mas a figura do intelectual não é propriamente popular no País. Em compensação, no Big Brother Brasil, acaba de vencer a disputa um rapaz que havia dito que 'homem que é homem não pega aids', o que levou a Justiça a intervir no programa. No dia seguinte, esse indivíduo teve 60% de votos. Como foi possível para o sr. converter o gap que há entre o intelectual e a sociedade, de modo a transformar a possível impopularidade em liderança?

FHC: O título de um livro que escrevi e só saiu em inglês é The Accidental President of Brazil. Porque foi um acidente, de certa maneira. Uma pessoa com a minha biografia e carreira não tinha como ter voto e ser presidente da República. Ganhei do Lula duas vezes no primeiro turno, o que não é fácil, já não era. Claro que no meu caso teve uma coisa específica: o Real. Se não fosse o Plano Real eu não teria sido presidente. Podia continuar ministro, senador. Talvez nem isso. Percebi que iria ser eleito em Santa Maria da Vitória, na Bahia, no dia 11 ou 12 de junho. Cheguei por lá num avião monomotor vagabundo e pousamos na pista de terra. Estávamos atrasados e o Antônio Carlos (Magalhães), que era o dono da Bahia na época, nos esperava irritado. Quando chegamos na praça, a população tinha notas de Real na mão e gritava, feliz da vida: "Vale mais que o dólar! Vale mais que o dólar!" Vi que seria eleito. E o que fiz? Falei. Muitos se esquecem, mas eu falava todo dia. Quando houve a decisão final do plano, em fevereiro, passei horas na televisão explicando o que era e o que iria acontecer com a vida das pessoas. Então, não cheguei à Presidência porque sou intelectual, mas porque fui ministro, fiz o Real e não sou, nem nunca fui, complicado para falar. Eu me lembro que quando entrei na política, vários amigos diziam: "Ah, não vai ter voto. É intelectual". Não vou entrar em detalhes, mas figuras importantes afirmavam que eu sabia falar melhor o francês do que o português... Falo francês mal e porcamente! Diziam: "Nunca viu um pobre, só nas ruas de Paris". Isso foi dito por um grande milionário de São Paulo. Esqueceram que eu me formei aqui e, aos 29 anos, defendi tese sobre negros. Pesquisei nas favelas e cortiços do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Nunca tive dificuldade em falar com o povo. E, em política, o desempenho é fundamental. Quando numa eleição os candidatos não são bons de conversa, vêm os marqueteiros e projetam imagens. Mas em alguma hora aparece a pessoa. E se ela não é capaz de falar de modo que os outros entendam, não tem caminho na política. Pode ser eleito primeiro-ministro num regime parlamentarista, mas não chefe de Estado num presidencialismo de massas. Isso não ocorre só no Brasil. Eu estava em Brown, nos Estados Unidos, no ano anterior às primárias da última corrida presidencial, e telefonei para o Bill Clinton. Na conversa, disse: "Aqui me parece que a Hillary está bem". Ele respondeu: "Não só aí, no país inteiro". Isso foi em outubro. Quando voltei para dar aula em fevereiro, todo o mundo era Obama. A Hillary teve a máquina do Partido Democrata, era conhecida, competente, mulher, mas Obama desempenhou melhor. Obama pode não ser grande intelectual, mas tem formação sólida. Mais sólida, talvez, do que a Hillary. E desempenhou melhor.

Olhares fragmentados

Lessa: Quero falar ainda do intelectual público. Tenho a impressão de que vivemos um tempo de profunda desativação de hábitos do pensamento. Conversando com um jovem colega sobre política, fiquei perplexo ao ver com que convicção defendia o 'bicameralismo com voto distrital misto'. Na minha época éramos de esquerda, de direita ou de centro, brigávamos por isso, e hoje esse sujeito está disposto a bater nas pessoas pelo bicameralismo. Seu livro convida a um debate mais universalizado, a se pensar a política como atividade humana. Como evitar a fragmentação e reagir à perda do hábito do pensamento?

FHC: Um bom exemplo disso é a universidade. Aqui nesta sala, quando eu era representante dos alunos e depois dos doutores, se discutiam coisas de interesse da cidade e do País. Havia uma ligação direta entre estar na universidade e estar dialogando com o governo, com o poder e a sociedade. Depois, a universidade foi ficando mais ensimesmada e a vida, mais fragmentada. A qualidade do ensino não foi perdida, ao contrário, melhorou, houve mais especialização. Só que perde-se a ideia de intelectual público, de alguém que se apresenta perante a sociedade e a nação para debater ideias. Isso foi encolhendo, desaparecendo. E sobra a briga interna, que é isso mesmo: sou favorável ao bicameralismo ou não (risos). Acho que a grande força da universidade americana é exatamente o oposto disso. Ela é tão forte e se sente tão segura que não tem medo de chegar perto nem das empresas, nem do governo. No Brasil evita-se o governo por medo da cooptação. E as empresas, por medo da privatização. Às vezes recebo estudantes lá no instituto e um deles me provocou: "O que o sr. acha da privatização das universidades públicas?" Ora, alguém compra uma universidade pública? É inviável, isso é uma bobagem. A universidade tem que ser pública e vai continuar assim. Mas é preciso perder o temor do mercado. E considerar que o Estado também gera pensamento - o Ipea gera pensamento, a Petrobrás gera pensamento técnico, mas há outros setores do Estado que avançaram muito sem qualquer conexão com a universidade. Mas voltando ao intelectual público, hoje ele certamente precisa da mídia para exercer um papel e ter relevância. É uma maneira de sair do casulo e manter uma relação com a sociedade. Problema: a mídia escolhe seus interlocutores. É preciso aumentar essas escolhas, abrindo espaço para um número maior de intelectuais, para incrementar o debate público. A função do intelectual não é só resolver, mas provocar, criar caso. Por que eu brigo tanto com a esquerda? Porque eu a levo a sério - e provoco. Temos que ampliar os nossos canais de fala. Não adianta querer penetrar por dentro dos partidos, porque eles são surdos a esse tipo de debate. E nem pensar que de uma campanha eleitoral vá surgir a luz.

Candomblé com Descartes

Martins: Hoje os dois principais candidatos à Presidência da República se desincompatibilizaram. Estão abertamente na campanha. A minha tendência é ver em José Serra a personificação do Iluminismo e a reafirmação dos valores da Renascença. E vejo em Dilma Rousseff a personificação das tensões do Romantismo. Nessa eleição vamos nos defrontar com a dicotomia esquerda-direita por meio dessa modalidade de polarização?

FHC: Dá para ver que foi meu aluno e hoje me encosta na parede... (risos). Eu fiquei muito impactado com o que aconteceu na União Soviética. E muito com Gorbachev, especialmente. Porque, sendo chefe do Partido Comunista da URSS, ele recolocou a questão da humanidade. Quando disse que não dava para continuar daquele jeito, que a bomba atômica levaria à morte dos dois lados, disse coisas além da classe e do Estado. Humanidade era a grande discussão filosófica do Hegel. E lá vinha Marx criticando, dizendo que só poderia ver o universal concreto, só o proletariado, sem falar de humanidade. Gorbachev disse "cuidado, já avançamos tanto no campo tecnológico e na guerra que não dá para falar só dos extremos, nem só de classe e Estado-nação". Essa é a grande confusão que está aí até hoje. Tem classe, tem Estado-nação e tem a globalização que nos leva a um pensamento mais universal. Estamos podendo ver o homem de uma maneira mais ampla sob todas suas dimensões. De fato, somos herdeiros do Renascimento, do Iluminismo. Até Marx dizia isso. No entanto, com o pós-modernismo tudo ficou mais complicado. A fragmentação dificultou muito. Daí esse retorno do Romantismo, uma espécie de angústia de não saber como se juntam as peças. Pelo menos o Serra acha que sabe juntar as peças. E a Dilma poderá perder-se porque vem de uma tradição na qual não se misturam as peças, terá que aprender. De fato, a Dilma pode ter uma visão menos racional e mais romântica sobre as coisas. E o Serra vai numa tradição mais racional. No fundo é isso: quem vai valorizar mais o elemento da razão ou da emoção no futuro. Digo valorizar mais porque não há vida ou política sem emoção. Espero que o Serra entenda um pouco mais de candomblé. E a Dilma leia um pouco mais de Descartes.

Bazófias de ACM

Janine Ribeiro: Não posso esquecer que, conforme suas palavras, o sr. foi um presidente acidental, um presidente improvável. Então, agora, penso nos termos de Maquiavel: fortuna e virtù. Se fôssemos utilizar esses termos, diríamos que o sr. foi levado à Presidência pela fortuna. Foi ministro da Fazenda, fez o Plano Real e, portanto, se elegeu. Agora, conquistar o poder pelas armas alheias, como diz Maquiavel, coloca um problema sério, que é o de a pessoa conseguir depois enfeixar o poder nas mãos. Lembro Maria Conceição Tavares, num debate na televisão, em que dizia do senhor: ‘Ele acha que vai conseguir dominar Antônio Carlos Magalhães?’ No entanto, antes do final do seu primeiro mandato as cartas tinham mudado por completo, o sr. havia controlado as circunstâncias. Como foi essa passagem de uma situação de fortuna para uma de virtù?

FHC: Ninguém se mantém no poder sem virtù, sem capacidade política. Claro que estamos falando na democracia. No sistema fechado é diferente. Que eu saiba, o grande líder brasileiro, Getúlio Vargas, não era de falar. Ele apenas lia o discurso: "Boa noite, trabalhadores do Brasil". A democracia requer mais do que isso. Requer um convencimento quase diário. É o que o Lula faz. O líder tem que estar o tempo todo tratando de exercer sua liderança, porque ter obtido voto não garante a legitimidade de sua ação depois. Garante legitimidade formal, mas não apoio. No dia seguinte você não tem mais voto nenhum. Você tem que ganhar de novo. No caso do Real, eu tive virtù antes, senão nem chagaríamos ao plano. O Antônio Carlos nunca teve assento em nenhuma decisão do meu governo. Friso: nenhuma. Ele tinha poder na Câmara e no Senado. E isso fascina, dá a impressão que vai comandar tudo. Não era assim. Nunca imaginou que eu fosse mexer com ele. Antônio Carlos foi para Miami e disse na televisão umas bobagens de que não gostei. Pois eu mesmo escrevi as cartas de demissão dos dois ministros ligados a ele. Tem que ter coragem. Ninguém governa sem ela. Mas essa coragem não deve ser bazófia. Tem que ser coragem moral. E outra coisa; as decisões mais importantes são solitárias. Se eu fosse perguntar aos meus amigos e partidários se deveria demitir ou não os ministros ligados ao Antônio Carlos eles iam dizer que não, porque aquilo criaria uma crise no Senado. Então você tem que ir lá dentro de você, sozinho, tomar a decisão e atuar. Líder precisa ter a capacidade de se isolar e de ouvir o outro. Muitos perguntavam como é que eu recebia certos políticos, mas tem que receber. Mesmo os que são abandidados, até para compreender o jogo deles. Eu sempre procurei manter o olhar do sociólogo, dar espaço. Então o sujeito saía de lá feliz: "Conquistei o presidente". Conquistou coisa nenhuma. Você deu elementos para o presidente, depois, no isolamento, julgar o que dá para fazer e o que não dá para fazer. Esse exercício é permanente. Maquiavel tem absoluta razão. Tem que ter sorte, mas não basta. Tem que ter virtù. E a virtù não é um dom, você a desenvolve. Veja o Lula e eu em 1970. Você acha que nós já éramos o que somos hoje? Não. Fomos desenvolvendo certas habilidades. O mais difícil é lidar com os que estão próximos. Como é que você controla os seus? Questão que vai se colocar se a Dilma se eleger. O Lula a controla. Ele é maior, e sabe como controlar. A pressão maior que o presidente sofre é dos que estão com ele, não é dos que são contra. Dos que são contra ele lê no jornal.

Utopias regressivas

Lessa: Os movimentos sociais aparecem nos seus textos em chave dupla: uma delas é o reconhecimento de que eles limitam os autoritarismos. Outra, de que são a expressão de identidades parciais e fragmentadas. Para além de um debate sobre dois gerentes na campanha presidencial, acho que há outro tema, da maior gravidade, subjacente à democratização brasileira: a reestruturação do espaço público. Temos um Poder Executivo forte, um problema de representação no Legislativo e o hiperativismo do Judiciário. Ocorre que todos se ajustaram à situação. Sabem procurar o juiz, mas não conhecem o caminho dos partidos e da representação. Como resolver isso?

FHC: Para te dizer em termos não abstratos, mas práticos: o que fazer com o MST, por exemplo? Houve momentos, em 1997, que dava a impressão de que ou se fazia a reforma agrária ou o Brasil estava perdido. Ninguém percebia, na época, a grande transformação que estava havendo no agrobusiness. Todo o foco era o MST. Em 1997 houve uma imensa mobilização em Brasília. E repleta de palavras de ordem inacreditáveis, como se estivéssemos próximos de fazer a Revolução Soviética. Como criar um espaço público que permitisse um diálogo democrático? Eu recebi o MST várias vezes. Algumas estão gravadas até. Estive com o João Pedro Stédile. Com o José Rainha, nem se fale: esse ia à noite ao Palácio da Alvorada. Mas era difícil a relação, pela razão de que os valores deles são inegociáveis. É uma negociação falsa: eles não vão para discutir a política pública, vão para botar o presidente, ou o ministro, contra a parede. Aqui em São Paulo, hoje, está havendo uma manifestação (de professores) para botar o governador contra a parede. Não há pauta de negociação. É só pressão. Não existe em um movimento como o MST a ideia de passar pelos canais institucionalizados, partidos, etc. Existe é pressão. E valores impossíveis, arcaicos, que chamo de "utopias regressivas". Como se fosse possível ao Brasil voltar à Idade Média. Com o tempo esses movimentos vão esquecendo a utopia, e querendo pequenas vantagens, o que é mais triste ainda. Realmente, a fragmentação é enorme. A teoria democrática no Brasil vai ter que absorver isso e discutir como incorporá-los ampliando o espaço público. Quando falo do risco de um subperonismo no Brasil é a isso que me refiro. Como não há canais públicos de integração e de aceitação - e alguns acham que sua razão é a única, o que é um fundamentalismo -, isso acaba facilitando um certo cesarismo, aquela ideia de que há alguém capaz de resolver tudo. Temos problemas com a democracia no Brasil, mas não é que vá haver outro golpe militar ou fraude nas eleições. É uma coisa mais substantiva mesmo. São problemas nossos, da sociedade, não só dos partidos.

“Tenho orgulho de ser político”:: Aécio Neves

DEU NA REVISTA VEJA

O tucano Aécio Neves confirma que concorrerá ao Senado, aponta as maiores fragilidades do discurso petista e diz que é vital recuperar a dignidade da atividade política

Mario Sabino e Fábio Portela

"É preciso implantar a meritocracia na administração federal, e o PT simplesmente não quer, não sabe e não pode fazê-lo"

Em obediência à lei eleitoral que requer a desincompatibilização de políticos em posições executivas que pretendem concorrer nas próximas eleições, o ex-governador de Minas Gerais, Aécio Neves, de 50 anos recém-completados, passou, na última semana, o cargo a seu vice, Antonio Anastasia. Aécio saiu com 92% de aprovação da população mineira. A marca impressionante é resultado da administração de um governador que apostou tudo na meritocracia e, com ela, melhorou bastante todos os indicadores sociais, econômicos e educacionais do seu estado. Essa quase unanimidade em um colégio eleitoral de 14 milhões de votos faz dele o vice dos sonhos do candidato do PSDB ao Planalto, o governador paulista José Serra. Mas Aécio acredita que ajuda mais como candidato ao Senado por Minas Gerais. Disse Aécio a VEJA: “A aprovação do meu governo é a prova maior de que os resultados de uma gestão eficiente se impõem sobre o messianismo da era Lula”.

A que exatamente a população deu a aprovação de 92%?

As pessoas sabem o que é bom para elas, sua família, sua cidade, seu estado e seu país. A aprovação vem naturalmente quando elas percebem que a ação do governo está produzindo professores que ensinam, alunos que aprendem, policiais que diminuem o número de crimes e postos de saúde que funcionam. Quando você faz um choque de gestão e entrega bons resultados ano após ano, não há politicagem que atrapalhe a percepção de melhora por parte da população. Quem tem 92% de aprovação está sendo bem avaliado por todo tipo de eleitor, até entre os petistas.

Os eleitores entendem o conceito de “choque de gestão”?

Quase todo mundo percebe quando a política está sendo exercida como uma atividade nobre, sem mesquinharias, com transparência e produzindo resultados práticos positivos. A política, em si, é a mais digna das atividades que um cidadão possa exercer. Os gregos diziam que a política é a amizade entre vizinhos. Quando traduzimos para hoje, estamos falando de estados, municípios e da capacidade de construir, a partir de alianças, o bem comum. Vou lutar por reformas que possam tornar a política de novo atraente para as pessoas de bem, que façam dessa atividade, hoje vista com suspeita, um trabalho empenhado na elevação dos padrões materiais, sociais e culturais da maioria. É assim que vamos empurrar os piores para fora do espaço político. Não existe vácuo em política. Se os bons não ocuparem espaço, os ruins o farão.

A máquina do serviço público é historicamente pouco eficiente. Como o senhor fez para mudar essa realidade?

Nós estabelecemos metas para todos os servidores, dos professores aos policiais. E 100% deles passaram a receber uma remuneração extra sempre que atingissem as metas acordadas. O governo começou a funcionar como se fosse uma empresa. Os resultados apareceram com uma rapidez impressionante. A mortalidade infantil em Minas caiu mais do que em qualquer outro estado, a desnutrição infantil das regiões mais pobres chegou perto do patamar das regiões mais ricas, todas as cidades do estado agora são ligadas por asfalto, a energia elétrica foi levada a todas as comunidades rurais e mesmo as mais pobres passaram a ter saneamento. Na segurança pública conseguimos avanços notáveis com a efetiva diminuição de todos os tipos de crime.

O desafio do PT sobre comparação de resultados de governos, então, lhe conviria?

Gostaria muito de contrapor os resultados obtidos pela implantação da meritocracia com o messianismo daqueles que apenas fazem promessas e propagam a própria bondade. Quando você estabelece instrumentos de controle e consegue medir os resultados das ações de governo, você espanta os pregadores messiânicos. Eles fogem das comparações. Mas para ter resultados é preciso que se viva sob um sistema meritocrático. Isso significa que as pessoas da máquina estatal têm de ser qualificadas, e não simplesmente filiadas ao partido político. O aparelhamento do estado que vemos no governo federal é um mal que precisa ser erradicado.

Quais são as chances de o senhor ser candidato a vice-presidente da República na chapa de José Serra?

Serei candidato ao Senado. Eu tenho a convicção de que a melhor forma de ajudar na vitória do candidato do meu partido, o governador José Serra, é fazer nossa campanha em Minas Gerais. Eu respeito, mas divirjo da análise de que a minha presença na chapa garantiria um resultado positivo para o governador Serra. Isso não é verdade. Talvez criasse um fato político efêmero, que duraria alguns dias, mas logo ficaria claro que, no Brasil, não se vota em candidato a vice-presidente.

Nas últimas eleições, quem venceu em Minas venceu também a eleição presidencial. Acontecerá o mesmo neste ano?

Espero que sim, e acho que o governador Serra tem todas as condições para vencer em Minas Gerais e no Brasil. Eu vou me esforçar para ajudá-lo, repito, porque tenho um compromisso com o país que está acima de qualquer projeto pessoal. Esse compromisso inclui trabalhar para encerrar o ciclo de governo petista. Lula teve muitas virtudes. A primeira delas, aliás, foi não alterar a política econômica do PSDB. Ele fez bons programas sociais? Claro, é um fato. Mas o desafio agora é fazer o Brasil avançar muito mais, e é isso que nosso presidente fará.

A ministra Dilma Rousseff, candidata do PT ao Planalto, tem dito que o presidente Lula reinventou o país. Esse é um exemplo de discurso messiânico?

Sem dúvida. Se um extraterrestre pousasse sua nave no Brasil e ficasse por aqui durante uma semana sem conversar com ninguém, só vendo televisão, ele acharia que o Brasil foi descoberto em 2003 e que tudo o que existe de bom foi feito pelas pessoas que estão no governo atual. Os brasileiros sabem que isso é um discurso vazio. Não teria havido o governo do presidente Lula se não tivesse havido, antes, os governos do presidente Fernando Henrique e do presidente Itamar Franco. Sem o alicerce do Plano Real, nada poderia ter sido construído.

A ministra Dilma cresceu nas pesquisas e viabilizou-se como candidata competitiva. Isso preocupa o PSDB?

A ministra Dilma chegou ao piso esperado para um candidato do PT, qualquer que fosse ele. A partir de agora, ela terá de contar com a capacidade do presidente Lula de lhe transferir votos. Mas o confronto olho no olho com o governador Serra vai ser muito difícil para ela.

Na sua opinião, como será o tom da campanha presidencial?

Acho que, em primeiro lugar, a candidata Dilma terá de explicar logo como será sua relação com seu próprio partido, o PT, em um eventual governo. O PT tem dificuldades históricas de ter uma posição generosa em favor do Brasil. Quando a prioridade do Brasil era a retomada da democracia, o PT negou-se a estar no Colégio Eleitoral e votar no presidente Tancredo Neves. O PT chegou a expulsar aqueles poucos integrantes que contrariaram o partido. Prevaleceu uma visão política tacanha, e não o objetivo maior que tinha de ser alcançado naquele momento. Se dependesse do partido, talvez Paulo Maluf tivesse sido eleito presidente pelo Colégio Eleitoral. Ao final da Constituinte, o PT recusou-se a assinar a Carta. Quando o presidente Itamar Franco assumiu o governo, em um momento delicado, de instabilidade, e o PT foi convocado a participar do esforço de união nacional, novamente se negou, sob a argumentação de que não faria alianças que não condiziam com a sua história. Se prevalecesse a posição do PT, nós não teríamos a estabilidade econômica, porque o partido votou contra o Plano Real. O presidente Lula, com sua autoridade, impediu que o partido desse outros passos errados quando chegou ao governo. Mas o que esperar de um governo do PT sem o presidente Lula?

Qual é o seu palpite?

Eu acho que, pelo fato de a ministra Dilma nunca ter ocupado um cargo eletivo, há uma grande incógnita. Caberá a ela responder, durante a campanha, a essa incógnita. Dar demonstrações de que não haverá retrocessos, de que as conquistas democráticas são definitivas. A ministra precisa dizer de forma muito clara ao Brasil qual será a participação em seu governo desse PT que prega a reestatização, que defende uma política externa meramente ideológica, que faz gestos muitos vigorosos no sentido de coibir a liberdade de expressão.

E o PSDB, falará de quê?

Nosso maior tema será lembrar aos brasileiros que somos a matriz de todos os avanços sociais e econômicos do Brasil contemporâneo. Nós temos legitimidade para dizer que somos parte integrante do que aconteceu de bom no Brasil até agora. Se hoje o país está numa situação melhor, foi porque nós tivemos uma participação decisiva nesse processo. Houve a alternância do poder, que é natural e saudável, mas está na hora de o PSDB voltar ao poder. Está na hora de o país ter um governo capaz de fazer a máquina pública federal funcionar sem aparelhamento. É preciso implantar a meritocracia na administração federal, e o PT simplesmente não quer, não sabe e não pode fazê-lo. Às promessas falsas, ao messianismo, aos insultos pessoais, aos ataques de palanque, vamos contrapor nossos resultados nos estados e a receita de como obtê-los também no nível federal.

O senhor acha que os brasileiros são ingratos com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso?

Eu acho que hoje não se faz justiça a ele, mas tenho certeza absoluta de que a história reconhecerá seu papel crucial. Como também acho que se fará justiça ao presidente Itamar Franco, que permitiu a Fernando Henrique Cardoso, então ministro da Fazenda, fazer e aplicar o Plano Real.

Se vencer a disputa presidencial, Serra diz que tentará acabar com a reeleição.

Eu prefiro mandatos de cinco anos, sem reeleição. Defendo isso desde 1989. Mas, hoje, pensar nisso é irreal. A reeleição incrustou-se na realidade política brasileira de maneira muito forte. A prioridade deveria ser uma reforma política que incluísse o voto distrital misto. Isso aproximaria os eleitores dos deputados e ajudaria a depurar o Parlamento.

O senhor, um político jovem, bem avaliado, duas vezes governador de um grande estado, ainda deve almejar chegar à Presidência, não?

Eu tenho muita vontade de participar da construção de um projeto novo para o Brasil, em que a nossa referência não seja mais o passado, e sim o futuro. Sem essa dicotomia que coloca em um extremo o PT e no outro o PSDB, e quem ganha é obrigado a fazer todo tipo de aliança para conseguir governar. Assim, paga-se um preço cada vez maior para chegar a sabe-se lá onde. O PT deixou de apresentar um projeto de país e hoje sua agenda se resume apenas a um projeto de poder. Eu gostaria de uma convergência entre os homens de bem, para construir um projeto nacional ousado, que permita queimar etapas e integrar o Brasil em uma velocidade muito maior à comunidade dos países desenvolvidos, de modo que todos os brasileiros se beneficiem desse processo.

Mas o Brasil já está direcionado nesse rumo, não?

Está, mas é preciso acelerar a nossa chegada ao nosso destino de grandeza como povo e como nação. Eu fico impaciente com realizações aquém do nosso potencial. O Brasil pode avançar mais rapidamente com um governo que privilegie o mérito, que qualifique a gestão pública, para que ela produza benefícios reais e duradouros para a maioria das pessoas, que valorize o serviço público e cobre dele resultados. Um governo que tenha autoridade e generosidade para fazer acordos. Meu avô Tancredo Neves costumava dizer que há muito mais alegria em chegar a um entendimento do que em derrotar um adversário. Eu vou ser sempre um construtor de pontes. Quanto a chegar à Presidência da República, tenho a convicção de que isso é muito mais destino do que projeto.