DEU NO VALOR ECONÔMICO
Para onde vamos depois que se findar esse longo entreato entre as eleições e a posse da candidata eleita, quando inauguramos principado novo? Por ora, de ciência certa, somente sabemos que o mar não vai virar sertão e nem o sertão vai virar mar. Dantes, em igual circunstância, os futuros presidentes programavam longas viagens, sob os mais variados pretextos, a fim de que, distantes de pressões, pudessem montar sua equipe de governo e definir os rumos estratégicos e as medidas de impacto com que imporiam suas marcas no exercício da Presidência.
Menos afortunada que eles, a presidente eleita não deve contar com esse trunfo antes de ser entregue à voragem dos acontecimentos que estão destinados a surpreendê-la nos quatro anos do seu mandato, que já nascem sob o signo de uma dúvida letal: programa-se para um mandato ou para dois? Trata-se de um governo tampão, sob a guarda de uma criatura que apenas ocupa por um tempo determinado um lugar reservado ao seu criador, aplicada à leitura, mesmo que criativa, de uma pauta já conhecida, ou de uma presidente que vai se aventurar nos mistérios da composição de uma peça nova? Mais que inédita na moderna república brasileira, essa má disposição dos fatos impõe à dramaturgia que ora entra em cena com o mandato de Dilma Rousseff um elemento estranho ao especificamente político em razão das conotações pessoais envolvidas, e que podem interferir no curso de suas ações.
De outro lado, já se pode saber que a parte dura do núcleo governamental será constituída por quadros formados na administração do mundo sistêmico, nele consagrados por seus desempenhos na condução das finanças, da indústria, dos serviços e do agronegócio, com os quais vai se dar sequência ao atual movimento de expansão e aprofundamento capitalista do país e da sua inserção no sistema mundial. Nesse núcleo não deverá haver lugar privilegiado para operadores especializados na leitura do fato político, como foram José Dirceu e Franklin Martins, aplicados monotematicamente a questões relativas à conservação e à reprodução do poder. Se tal linha de interpretação estiver correta, o perfil do próximo governo acabará confirmando o que foi o tom predominante na campanha eleitoral: mais próximo da agenda da administração do que da política.
Nesse sentido, as políticas públicas orientadas para o social deverão ser objeto de uma forte racionalização, o que deve importar uma maior autonomia na sua implementação diante dos partidos que compõem a ampla base aliada de sustentação congressual do governo. Tanto o cenário interno como o externo, sobretudo este, apontam para essa mesma direção, em que deveremos ter um governo de economistas, a começar pela própria presidente, em que os temas da macroeconomia devem sair dos gabinetes dos doutos para se tornarem linguagem corrente entre os partidos e os políticos. A oposição será obrigada a criar um sucedâneo de um gabinete das "sombras", apto a desafiar, no mesmo idioma, os rumos governamentais.
Pois, de fato, a economia-mundo, na rica expressão do sociólogo Immanuel Wallerstein, entrou em crise sistêmica com a assim chamada guerra cambial, parecendo nos querer devolver a uma cena internacional de marcação hobbesiana. Ressurge, ao menos no plano da retórica, o primado do princípio da soberania nas relações entre as nações sobre as concepções e práticas, como as do Direito Internacional e de suas instituições, que, nessas últimas quatro décadas, visaram moderar a sua influência nas relações entre Estados. Os mercados nacionais, em um tempo de globalização, ameaçam regredir a práticas abertas ou veladas de protecionismo, sob o risco de converter uma crise cambial em uma guerra comercial efetiva.
Os resultados da última reunião do G-20 deixaram patente a afirmação do princípio da soberania sobre as considerações assentadas em princípios de cooperação internacional. A política impõe-se à economia, com os países que lideram o mercado mundial instituindo, como recursos estratégicos para a defesa de suas hegemonias, políticas monetárias de desvalorização de suas moedas nacionais. Nesse cenário, não há lugar para a livre movimentação de capitais, especialmente, como anota Paulo Nogueira Batista Jr, quando "o principal emissor de moeda internacional [os EUA] adota políticas monetárias ultraexpansivas" ("O Globo", 13/11/10).
Será sob os auspícios dessa crise, que Dilma entrará em cena, tendo que fazer várias escolhas de Sofia, uma vez que não terá como contemplar a todos, marca política do governo a que sucede, inclusive por que os constrangimentos sistêmicos a que o país está exposto lhes chegam, em grande parte, do novo estado de coisas reinantes no mundo e que imperativamente exigem respostas adequadas. Nesse contexto, inevitável as pressões por algum nível de ajuste fiscal e pela reforma trabalhista e tributária - essa última já anunciada pela notícia de que o governo Dilma se vai empenhar em medidas de desoneração da folha salarial -, contrapondo interesses que, sob os mandatos de Lula, coexistiram em boa paz.
Assim, a espécie de concordata entre o mundo sistêmico e a política, sempre sob a arbitragem de Lula, que bafejou o governo que ora se conclui, deve encontrar seus limites. As políticas de defesa da atividade industrial e do agronegócio, de difícil composição diante da crise cambial, consistirão, entre outras agendas conflitivas pesadas, em um duro teste para ela. A previsão faz parte da análise política, e, no caso, parece razoável supor que a liberação de tantas tensões represadas no interior do Estado, que agora tendem a se desviar para o terreno livre da sociedade civil, venha a ativar os movimentos sociais e a animar em um impulso de baixo para cima os partidos, principalmente os de esquerda.
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional. Escreve às segundas-feiras
Para onde vamos depois que se findar esse longo entreato entre as eleições e a posse da candidata eleita, quando inauguramos principado novo? Por ora, de ciência certa, somente sabemos que o mar não vai virar sertão e nem o sertão vai virar mar. Dantes, em igual circunstância, os futuros presidentes programavam longas viagens, sob os mais variados pretextos, a fim de que, distantes de pressões, pudessem montar sua equipe de governo e definir os rumos estratégicos e as medidas de impacto com que imporiam suas marcas no exercício da Presidência.
Menos afortunada que eles, a presidente eleita não deve contar com esse trunfo antes de ser entregue à voragem dos acontecimentos que estão destinados a surpreendê-la nos quatro anos do seu mandato, que já nascem sob o signo de uma dúvida letal: programa-se para um mandato ou para dois? Trata-se de um governo tampão, sob a guarda de uma criatura que apenas ocupa por um tempo determinado um lugar reservado ao seu criador, aplicada à leitura, mesmo que criativa, de uma pauta já conhecida, ou de uma presidente que vai se aventurar nos mistérios da composição de uma peça nova? Mais que inédita na moderna república brasileira, essa má disposição dos fatos impõe à dramaturgia que ora entra em cena com o mandato de Dilma Rousseff um elemento estranho ao especificamente político em razão das conotações pessoais envolvidas, e que podem interferir no curso de suas ações.
De outro lado, já se pode saber que a parte dura do núcleo governamental será constituída por quadros formados na administração do mundo sistêmico, nele consagrados por seus desempenhos na condução das finanças, da indústria, dos serviços e do agronegócio, com os quais vai se dar sequência ao atual movimento de expansão e aprofundamento capitalista do país e da sua inserção no sistema mundial. Nesse núcleo não deverá haver lugar privilegiado para operadores especializados na leitura do fato político, como foram José Dirceu e Franklin Martins, aplicados monotematicamente a questões relativas à conservação e à reprodução do poder. Se tal linha de interpretação estiver correta, o perfil do próximo governo acabará confirmando o que foi o tom predominante na campanha eleitoral: mais próximo da agenda da administração do que da política.
Nesse sentido, as políticas públicas orientadas para o social deverão ser objeto de uma forte racionalização, o que deve importar uma maior autonomia na sua implementação diante dos partidos que compõem a ampla base aliada de sustentação congressual do governo. Tanto o cenário interno como o externo, sobretudo este, apontam para essa mesma direção, em que deveremos ter um governo de economistas, a começar pela própria presidente, em que os temas da macroeconomia devem sair dos gabinetes dos doutos para se tornarem linguagem corrente entre os partidos e os políticos. A oposição será obrigada a criar um sucedâneo de um gabinete das "sombras", apto a desafiar, no mesmo idioma, os rumos governamentais.
Pois, de fato, a economia-mundo, na rica expressão do sociólogo Immanuel Wallerstein, entrou em crise sistêmica com a assim chamada guerra cambial, parecendo nos querer devolver a uma cena internacional de marcação hobbesiana. Ressurge, ao menos no plano da retórica, o primado do princípio da soberania nas relações entre as nações sobre as concepções e práticas, como as do Direito Internacional e de suas instituições, que, nessas últimas quatro décadas, visaram moderar a sua influência nas relações entre Estados. Os mercados nacionais, em um tempo de globalização, ameaçam regredir a práticas abertas ou veladas de protecionismo, sob o risco de converter uma crise cambial em uma guerra comercial efetiva.
Os resultados da última reunião do G-20 deixaram patente a afirmação do princípio da soberania sobre as considerações assentadas em princípios de cooperação internacional. A política impõe-se à economia, com os países que lideram o mercado mundial instituindo, como recursos estratégicos para a defesa de suas hegemonias, políticas monetárias de desvalorização de suas moedas nacionais. Nesse cenário, não há lugar para a livre movimentação de capitais, especialmente, como anota Paulo Nogueira Batista Jr, quando "o principal emissor de moeda internacional [os EUA] adota políticas monetárias ultraexpansivas" ("O Globo", 13/11/10).
Será sob os auspícios dessa crise, que Dilma entrará em cena, tendo que fazer várias escolhas de Sofia, uma vez que não terá como contemplar a todos, marca política do governo a que sucede, inclusive por que os constrangimentos sistêmicos a que o país está exposto lhes chegam, em grande parte, do novo estado de coisas reinantes no mundo e que imperativamente exigem respostas adequadas. Nesse contexto, inevitável as pressões por algum nível de ajuste fiscal e pela reforma trabalhista e tributária - essa última já anunciada pela notícia de que o governo Dilma se vai empenhar em medidas de desoneração da folha salarial -, contrapondo interesses que, sob os mandatos de Lula, coexistiram em boa paz.
Assim, a espécie de concordata entre o mundo sistêmico e a política, sempre sob a arbitragem de Lula, que bafejou o governo que ora se conclui, deve encontrar seus limites. As políticas de defesa da atividade industrial e do agronegócio, de difícil composição diante da crise cambial, consistirão, entre outras agendas conflitivas pesadas, em um duro teste para ela. A previsão faz parte da análise política, e, no caso, parece razoável supor que a liberação de tantas tensões represadas no interior do Estado, que agora tendem a se desviar para o terreno livre da sociedade civil, venha a ativar os movimentos sociais e a animar em um impulso de baixo para cima os partidos, principalmente os de esquerda.
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional. Escreve às segundas-feiras