sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Reflexão do dia – Dora Kramer

Não se pode imaginar que Dilma, candidata de Lula, o desmentisse a cada bravata nem que brigasse internamente para que o governo não entrasse na rota da gastança.

Tampouco ser aceitas de forma acrítica as providências de contenção tomadas agora, como se na campanha que a elegeu não houvesse sido vendido ao público um horizonte de esplendores num País arrumadíssimo sob todos os aspectos da economia.

Nada ia mal e iria muito melhor, dizia Lula com a anuência de Dilma.

KRAMER, Dora. Sob nova (?) direção. O Estado de S. Paulo, 17/2/2011.

O Corte e o recorte:: Roberto Freire

A presidente Dilma Rousseff vive uma saia justa entre a herança que considera "bendita", sendo ela mesma o fruto dessa herança, e uma inflação cada vez mais insinuante, produto da festa de gastos públicos a que se resumiu o governo Lula.

Nos dois últimos anos, o surgimento da inflação foi jogado nas costas largas da bolha especulativa das commodities, que tem um forte componente derivado do investimento prioritário feito na eleição da então candidata. De certa forma, Dilma é um pouco vítima de seu próprio projeto.

Confrontada com a realidade, longe dos fulgurantes fogos de artifício da propaganda que alimentou o governo passado, temos uma economia cujas bases foram irresponsavelmente solapadas em benefício de uma candidatura presidencial que vendeu a ilusão de um crescimento lastreado em gasto público e financiado pela poupança externa.

Obrigado a ajustar a economia à realidade, vemos o governo anunciar um corte da ordem de R$ 50 bilhões, visando combater a inflação que ele mesmo alimentou; o desequilíbrio do câmbio é fruto da valorização de nossas commodities e da desvalorização do dólar em nível mundial; e a taxa de juros é a mais alta dentre os países emergentes e uma das mais altas do mercado internacional. Acertar as coisas na área fiscal passa a ser uma necessidade e não uma opção.

Vista por seu "valor de face", tal corte parece à primeira vista muito grande. Ocorre que muito do que está sendo "cortado" são despesas infladas quando da feitura do orçamento pelo Congresso. Há uma boa distância entre valor autorizado e o empenhado. Assim como há entre valor empenhado e o de fato pago no exercício.

Qualquer que seja o critério que se observe, o anúncio do governo, no entanto, evidencia que haverá uma queda do ritmo da economia, antes negado peremptoriamente, e um decréscimo dos serviços prestados nas áreas de educação, saúde e segurança.

De outro lado, o que se convencionou chamar de investimento em nossa infraestrutura, mormente os voltados para a ampliação de nossos portos, aeroportos, energia, estradas e ferrovias sofrerão atrasos ou poderão ser cancelados.

Sem falar no que foi propagandeado à exaustão como os mirabolantes planos de dois milhões de casas populares e as seis mil creches que embalaram os sonhos de nosso povo durante a campanha eleitoral.

Apresentado como o "maior plano de metas já feito em nosso país", do PAC ninguém mais fala, a não ser para lembrar de atrasos, de obras superfaturadas paralisadas pelo Ministério Público e o TCU ou da gestão incompetente da maioria delas. O que fica evidente pela morosidade das obras necessárias para fazer frente ao desafio de realizar as Olimpíadas e a Copa do mundo.

Como no governo Lula, as medidas anunciadas no governo Dilma visam o curto prazo, mas a questão fiscal requer muito mais que cortes pontuais. Há que se pensar a longo prazo, montar estratégia e efetivá-las com ações competentes, o que o atual governo está longe de implementar, pela carga que carrega do governo passado.

Roberto Freire é presidente do PPS

FONTE: BRASIL ECONÔMICO

PMDB dá seu recado:: Merval Pereira

A votação do salário mínimo na Câmara acabou sendo melhor do que o próprio governo poderia esperar. A adesão integral do PMDB, com 100% de votos a favor do governo, é fato inédito, uma demonstração de lealdade e de controle da base partidária pela direção do partido.

O vice-presidente Michel Temer reuniu os 77 deputados federais da bancada no dia anterior e conseguiu tirar um compromisso de votação que se materializou.

Esse também foi um aviso do PMDB, de que, da mesma maneira que ele tem uma bancada que vota unida em favor de determinado assunto de interesse do governo que integra, essa unidade pode se voltar contra o governo caso os interesses do partido não sejam atendidos, como não estão sendo até agora.

Além desse comprometimento peemedebista, outro fato que deve ter surpreendido agradavelmente o governo foi que apenas 15 deputados da base aliada votaram contra o mínimo de R$545, com o detalhe de que nove desses votos vieram do PDT, uma dissidência irrisória numa base que pode variar de 380 a 400 deputados.

Alguns deputados que votaram contra a proposta do governo na base aliada têm atuação individualista, pois não necessitam nem do partido nem do governo para se eleger, como é o caso de Paulo Maluf, do PP de São Paulo, que tem lá seu eleitorado cativo.

Assim também o novato Tiririca, do PR, que votou pelo mínimo de R$600 defendido pelo PSDB. A primeira reação do deputado foi dizer que votara com o governo, mas, quando a lista oficial da votação saiu, ele assumiu que votara a favor da maior proposta, alegando que estava ali "por causa do povo".

É, aliás, um voto muito lógico esse do Tiririca, que não tem nenhum compromisso nem com o governo nem com o partido que lhe cedeu a legenda apenas para conseguir eleger mais dois ou três deputados na esteira de sua votação excepcional, que não teve nenhuma ajuda oficial e se elegeu por razões insondáveis do eleitorado, votos de protesto ou de deboche, mas decisões individuais que geraram um deputado desligado de qualquer movimento político.

No final das contas o governo superou seu primeiro teste importante na Câmara com folga, mas vitória tão fácil não deve iludir os governistas. Nos próximos quatro anos a dificuldade de unir a base aliada aumentará à medida que as demandas não forem atendidas ou que os ventos da popularidade não forem favoráveis.

Já a oposição também não ficou mal, embora desorganizada ainda, com os dois maiores partidos - PSDB e DEM - com problemas internos seriíssimos e disputas de poder que, no caso do DEM, podem literalmente levar à extinção do partido, como, aliás, desejou em voz bastante alta, de cima de um palanque, o ex-presidente Lula durante a recente campanha presidencial.

Até se acertarem para partir para uma política mais organizada, vai demorar um pouco, mas saíram-se bem diante do eleitorado, o PSDB defendendo coerentemente o salário mínimo de R$600 apresentado como programa de governo de seu candidato derrotado à Presidência da República José Serra; e o DEM apoiando, com a Força Sindical, o mínimo de R$560.

Não tinham outro papel a desempenhar numa disputa previamente ganha pelo governo. Aliás, o presidente da Força, o deputado federal Paulo Pereira da Silva, foi quem levou seu partido a um racha maior e era o mais exaltado na defesa de um salário maior que o anunciado pelo governo.

Chegou a dizer que para vencer o governo o jeito seria o povo ficar "18 dias acampado na praça", numa referência ao movimento de protesto do Egito que acabou derrubando o ditador Hosni Mubarak.

Mas, como o pessoal não está com essa disposição toda, conformou-se Paulinho, a derrota seria inevitável, como foi.

A truculência de suas palavras e atitudes não seria a mesma, certamente, se Lula ainda estivesse no governo, mas de qualquer maneira posicionou-se como uma oposição tão aguerrida quanto foi a do PT fora do governo.

Com o agravante de que Paulinho é deputado da base partidária governista, e a Força Sindical foi uma das centrais beneficiadas por decisões do governo anterior, com o reconhecimento formal e muita distribuição de verbas.

Assim como o PDT sofrerá represálias do governo, perdendo cargos que almejava - o candidato derrotado ao governo do Paraná e ex-senador Osmar Dias preparava-se para assumir a direção de Itaipu -, também a Força Sindical deverá permanecer numa lista negra do Palácio do Planalto até que mostre a sua real face nas comemorações do dia 1º de Maio.

Até lá, é previsível que haverá tempo para acordos com o governo em torno de outros temas trabalhistas que interessem à central sindical de Paulinho, sendo pouco provável que aceite voltar à oposição fazendo aliança com o PSDB ou com o DEM.

A oposição, por sinal, tinha um ponto forte para apoiar sua reivindicação de um salário mínimo maior. O problema é quando um partido de oposição apoia um aumento maior do salário mínimo com o governo empenhado em fazer o controle da inflação e retomar o equilíbrio fiscal.

Há uma aparente incoerência nessa atitude.

Quando o PT era oposição, o partido cansou de defender aumentos maiores do salário mínimo mesmo com o governo dando um aumento real.

Desta vez, o governo está tendo que conter os gastos por decisões erradas que tomou nos dois últimos anos da gestão anterior, com objetivos eleitoreiros.

Quando um governo está em situação fiscal ruim, como este está, por culpa de atitudes irresponsáveis anteriores, a oposição tem então condições morais de dizer que o corte de gastos não pode recair sobre o trabalhador, mas sim nos setores do governo que foram inchados politicamente.

Deveria, no entanto, ter incluído na discussão a reforma da Previdência.

FONTE: O GLOBO

Congresso mínimo (e pelado):: Fernando de Barros e Silva

"O Legislativo arriou as calças". Foi essa a expressão que um deputado ilustre usou ao comentar comigo a votação do mínimo, anteontem à noite. Não se referia, porém, ao valor do salário ou à vitória acachapante do governo.

Referia-se, antes, à aprovação pela Câmara da lei que fixa regras para o reajuste do mínimo até 2015 (correção pela inflação anual mais o índice de crescimento da economia de dois anos atrás). Com isso, o Congresso abdica de legislar sobre o assunto até o fim deste governo. É uma renúncia escandalosa.

Parece haver uma tendência de esvaziamento do Legislativo em várias partes do mundo democrático. No Brasil isso é muito tangível. Não pode ser bom que um poder já desidratado, além de tão desmoralizado pela ação e inação de seus membros, abra mão de uma das suas prerrogativas constitucionais, entregando-a na prática ao Executivo.

Ao governo convém definir o salário mínimo por decreto. Evita assim o desgaste político anual com data marcada e consegue maior previsibilidade no Orçamento. Trata-se, obviamente, de um passo na direção de um bonapartismo soft.

Estranhamente, houve pouca grita na oposição contra o golpe que o Congresso se auto-aplicou. Foi o quase-nanico PPS quem até agora prometeu ir ao STF. É possível que este seja o próximo capítulo da judicialização da política. Judicialização que tem sido, ela própria, outra causa e sintoma de certa debilidade democrática no país.

O PSDB parece mais ocupado em exibir suas feridas, dividido entre a defesa dos R$ 600 demagógicos do ex-candidato Serra na Câmara e dos R$ 560 pró-forma do futuro candidato Aécio no Senado.

Como o Congresso pelo jeito já não apita mais nada, os tucanos deveriam ter logo encampado a emenda do PSOL -de R$ 700. Cada vez mais decorativos, os socialistas pelo menos têm convicções de verdade: são a favor do acirramento entre as classes e contra a economia de mercado.

Tucanos, uni-vos!

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

Pontapé inicial:: Eliane Cantanhêde

Do jeito que a coisa vai, Dilma pode chegar ao fim do ano mais candidata a unanimidade do que o próprio padrinho Lula. Os bancos estão saciados, os economistas, crédulos, e a população não reclama. A imprensa nacional é cheia de elogios, a internacional já badala até o seu "charme".

A oposição? Os aecistas estão mais ocupados em assumir o comando, e os serristas, mais preocupados com a própria sobrevivência.

E o Congresso? A vitória do salário mínimo de R$ 545 era mais do que previsível. Presidentes aprovam tudo o que bem entendem em início de mandato e os partidos aliados ao Planalto somam 388 dos 513 deputados. Enquanto Dilma continuar com essa bola toda na opinião pública, ninguém se move.

É por isso que a novidade da votação do mínimo foi a volta das centrais sindicais ao campo político, criando a expectativa de que é um aquecimento e que vieram para ficar. O jogo só está começando.

Não que a Força Sindical, a CGT e muito menos a CUT ameacem formar um time contra Dilma, mas tomara que joguem como craques políticos, mantenham as reivindicações tradicionais e saibam fazer pressão, recuperando a musculatura: centrais agem pró-trabalhadores e tensionam governos.

O incrível índice zero de traição do PMDB (nenhum dos seus 77 deputados votou contra o governo) é um recado, ou melhor, um triplo recado: o vice Michel Temer jamais esteve tão forte, o segundo partido da Câmara tem comando e está unido. Unido, frise-se, para o que der e vier. Hoje, com tudo indo bem, são todos a favor. E amanhã, se tudo não estiver mais tão bem?

Aí, é bom mesmo, até para a própria Dilma, que as centrais sindicais estejam em campo. O PMDB é aliado na boa, mas pode se tornar adversário na baixa. As centrais tendem a fazer o caminho inverso. E elas têm tropa, têm rua.

Dilma está firme e forte, mas nunca se sabe o dia de amanhã.

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

Uma vitória do tamanho que ela é:: Maria Cristina Fernandes

A aprovação do projeto de lei que fixou o salário mínimo em R$ 545 cai como uma luva na cantilena de que o governo Dilma Rousseff estreou rompendo com os paradigmas de seu antecessor.

Desde a posse, o gestual lhe deu alento. Louva-se a discrição, a formalidade e o recato com o mesmo diapasão que, até dia desses, registrava uma marionete com passado duvidoso e presente sem jogo de cintura. Só a aversão pelos modos de Luiz Inácio Lula da Silva continua a mesma.

É outro governo e há novos personagens no poder, sendo o mais decisivo deles uma presidente cujo processo de decisão parece guardar poucas semelhanças com o de Lula.

A vitória sobre as centrais sindicais simboliza a expectativa de que a presidente, que vem de um extrato de classe média cultivada, finalmente consiga colocar essa gente em seu devido lugar.

O distanciamento, que é nítido, talvez possa ser resumido pelo fato de que os sindicalistas agora precisam de uma pauta para encontrar a presidente da República. Mas isso não significa que seu conteúdo seja distinto daquele que marcou a relação das centrais com o início do governo passado. Houve enfrentamento lá e cá.

Lula mal tinha tomado pé do governo quando mandou para o Congresso um projeto de reforma da Previdência que instituiu a cobrança de inativos, o fator previdenciário e a elevação da idade mínima. Foi o suficiente para o então ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini, ser saudado em eventos com o "carrasco dos trabalhadores" ou "pit bull das reformas".

Também foi no início do governo que Lula chegou a verbalizar seu interesse em desidratar a CLT com o fim da multa de 40% do FGTS e flexibilidade às férias.

Na sua estreia Lula garfou em um mês o reajuste do mínimo adiando para maio uma correção prevista para abril. O arrocho fiscal de 2003 seguiu determinando reajustes inferiores à demanda sindical até que, em 2005, Waldomiro Diniz surgiu das trevas do petismo inaugurando a temporada de crises do primeiro mandato e jogando o governo no colo do movimento sindical.

A agenda de reformas pretendida pelo governo foi postergada naquilo que feria o interesse dos sindicatos como a regulamentação do direito de greve ou da previdência complementar para o funcionalismo público. E, finalmente, no segundo mandato, as centrais coroariam essa simbiose com a regulamentação que lhes deu acesso aos recursos da contribuição sindical.

Ainda é cedo para saber se a aprovação dos R$ 545 animará o governo Dilma a retomar a agenda perdida do primeiro mandato de Lula. As desigualdades no mercado de trabalho entre estatutários, celetistas e informais seguem sendo a principal agenda social que o governo Lula deixou inacabada. O mais provável, porém, é que, depois dessa trombada inicial, ambos os lados recolham suas armas.

Às centrais não interessam esticar a corda sob pena de perder o controle sobre seus postos no Ministério do Trabalho. E ao governo não convém correr o risco de fomentar a aproximação entre centrais e a oposição num momento em que os dois principais líderes da oposição, o senador Aécio Neves e o governador Geraldo Alckmin demonstram interesse em estreitar a relação.

É bem verdade que o placar acanhado de ambas as propostas oposicionistas - R$ 600/106 votos e R$ 560/120 votos - não autoriza as centrais a fazer fé na conversão tucana às suas causas. Tampouco a oposição parece iludida pela ideia de que os sindicalistas abandonariam o butim do Ministério do Trabalho por um barco à deriva.

Todos os governos eleitos desde a redemocratização estreiam com grandes vitórias legislativas. Fernando Collor de Mello enfiou goela abaixo dos congressistas o confisco. Fernando Henrique Cardoso quebrou monopólios ancestrais com sua anuência. E Lula passou uma reforma da Previdência mais radical do que a do governo que acusara de neoliberal.

Isso não ofusca a vitória de Dilma com os R$ 545, apenas a situa na tradição. Enaltecer em demasia o resultado de ontem só deixa em evidência a expectativa contrária de que a marionete não seria capaz de lidar com o Congresso.

Aliados já disputam, desde a madrugada de ontem, os louros da vitória e suas devidas recompensas, mas a votação tem consequências políticas que extrapolam a guerra por cargos e emendas.

A defesa dos R$ 545 ajudou a manter a unidade do governo em torno do corte de gastos para conter a inflação. Guido Mantega, um dos focos de resistência ao discurso fiscalista no governo Lula, acabou se tornando seu porta-voz na gestão Dilma com o pacote dos R$ 50 bi em cortes. Uma das faixas estendidas na noite de quarta-feira nas galerias da Câmara comparava o ministro da Fazenda a Fernando Henrique Cardoso.

Passada a aprovação do mínimo, tende a ficar claro que os R$ 50 bi são uma meta com reduzidas chances de ser alcançada. No gasto social mais importante da União - a Previdência - o mínimo de R$ 545 já terá feito sua parte. Se focado no PAC, o corte pode acabar comprometendo a produtividade da economia. A margem possível de contenção no funcionalismo é reduzida e o corte em verbas de gabinete pode deixar o café mais fraco na repartição mas nem sequer faz cócegas na balança fiscal.

Sem os cortes desejados, pode ganhar força no governo a ideia de que a saída é conter o crédito pela via dos juros. No primeiro mandato, prevaleceu a ala, liderada por Antonio Palocci, que defendia despesas menores e política monetária mais restritiva. No segundo mandato, aquele em que Dilma, aliada a Mantega, passou a reinar, o crescimento da economia se fez mais vigoroso com a expansão de gastos.

É o velho cabo de guerra que, para onde quer que penda, afeta a rua e, por consequência, o Congresso. Aí, sim, vai ser preciso desencavar aquele bambolê que ficou no fundo do armário para que o ex-presidente continue uma fotografia na parede.

Maria Cristina Fernandes é editora de Política.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

Golpe de mão:: Dora Kramer

Entende-se que o governo queira por meio de maioria controlar o Congresso. Foge ao preceito republicano da independência entre os Poderes, mas é do jogo do poder.

O que não se pode compreender e muito menos aceitar é que isso seja feito por meio de inconstitucionalidades embutidas em um projeto de lei. Inaceitável, tampouco, é que o Congresso seja tão submisso ao Executivo que se deixe usurpar em suas prerrogativas e ainda defenda ardentemente o direito do Palácio do Planalto de fazê-lo ao arrepio da Constituição.

Aconteceu anteontem na aprovação do novo salário mínimo na Câmara: a despeito da tentativa do deputado Roberto Freire (PPS) de impedir a iniquidade, foi aprovado um dispositivo do projeto de lei que retira do Congresso a discussão do valor do mínimo até o fim do mandato de Dilma Rousseff.

O truque é o seguinte: fica estabelecido que conforme a política para o salário mínimo até 2014, os parâmetros para se chegar à proposta do governo são aqueles acertados com as centrais sindicais em 2007 - PIB dos dois anos anteriores mais a inflação do período -, sendo o valor fixado por decreto ano a ano.

Bastante simples de compreender qual a consequência, pois não? Pois suas excelências integrantes da maioria governista (e também da oposição que não ajudou Freire no embate) preferiram fazer de conta que não entenderam.

Pelos próximos três anos, se o Senado aprovar o projeto tal como está, o governo fica livre dessa discussão no Congresso. Uma graça o principal argumento do líder do PT na Câmara, Paulo Teixeira: a medida elimina a "burocracia".

Eis, então, que temos o seguinte: os próprios parlamentares se consideram meros carimbadores das decisões do Planalto e veem o debate no Parlamento como um trâmite burocrático.

Por esse raciocínio, eliminar-se-iam quaisquer tramitações congressuais, deixando a decisão de legislar para o Executivo. Como ocorre nas ditaduras.

Caso o Senado aprove, Roberto Freire recorrerá ao Supremo Tribunal Federal com uma ação direta de inconstitucionalidade, baseada no dispositivo da Constituição segundo o qual o valor do salário mínimo deve ser fixado por lei. Não por decreto baseado numa lei estabelecendo os critérios para o cálculo.

Argumenta Freire: se for por decreto presidencial, só o poder público será obrigado a cumprir. A sociedade e a iniciativa privada poderão ignorar, pois seu parâmetro é a Constituição e não o Diário Oficial.

Levantou-se naquela noite de discussões e monumentais incoerências de posições passadas e presentes a seguinte questão: se o cálculo está fixado em lei e o governo tem maioria no Congresso, o debate é sempre inútil. Então, melhor que se eliminem os intermediários.

Nada mais confortável para o governo e nada mais deformado no que tange ao sistema democrático de representação. O Executivo fica desobrigado de negociar, as forças políticas representadas no Parlamento impedidas de se manifestar e o poder de um dos Poderes fica submetido a acordos feitos com as centrais sindicais.

É o império do gabinete. O que o governo disser será a lei que se substitui à Constituição, ao Parlamento e à sociedade.

O poder continua emanando do povo, mas desse jeito em seu nome não é exercido.

Dominado. A escolha de um réu (João Paulo Cunha) do processo do mensalão para presidir a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara seria uma contradição em termos, caso a mesma comissão já não tenha sido presidida pelo notório deputado Eduardo Cunha.

Caso também mensaleiros, protagonistas de escândalos e réus de outros processos não estivessem sendo abrigados pelo governo federal e protegidos pelo PT, com vistas a promover uma "absolvição de fato".

Devido lugar. Evidência na sessão da Câmara que discutia o salário mínimo: na hora do vamos ver, as celebridades não participam. Recolhem-se ao lugar de onde nunca deveriam ter saído: a galeria das nulidades na política.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Ligação clandestina::Rogério L. Furquim Werneck

O anúncio de corte de gastos feito na semana passada não teve a repercussão que o governo esperava. Por duas razões básicas. O corte parece menor do que o necessário e, ao mesmo tempo, maior do que o ajuste que o governo, de fato, se mostra disposto a fazer. Mas há uma terceira razão para se duvidar do real compromisso do governo com a mudança da política fiscal. Boa parte da expansão fiscal dos últimos anos tem-se dado por fora do Orçamento, com base num artifício contábil que tem permitido ao Tesouro transferir centenas de bilhões de reais ao BNDES, sem o devido registro nas contas de resultado primário e dívida líquida do governo. E, agora, em meio à discussão sobre um suposto corte de gastos de R$50 bilhões, noticia-se que o governo já contempla novo aporte do Tesouro ao BNDES, de R$55 bilhões. Já é tempo de se tratar essa questão com a seriedade que merece.

A história é bem conhecida. Em 2008, preocupado com os efeitos da crise mundial sobre a economia brasileira, o governo decidiu capitalizar o BNDES para que pudesse expandir seus empréstimos a empresas estatais e privadas. Mas uma capitalização nos moldes tradicionais, que aumentasse o capital próprio do banco, reduziria o resultado primário e aumentaria a dívida líquida do governo. Para dissimular o impacto sobre as contas públicas, o governo decidiu partir para o subterfúgio da capitalização velada. O BNDES foi agraciado pelo Tesouro com empréstimos de 30 anos e juros pesadamente subsidiados. Para bancar tais empréstimos, o Tesouro teve de emitir dívida. E isso inflou a dívida bruta, mas não a dívida líquida, porque, ao calculá-la, o Tesouro se permitiu abater da dívida bruta, como ativos, os créditos de 30 anos que havia constituído junto ao BNDES.

O governo vem recorrendo a esse subterfúgio, ano após ano, desde 2008. As estatísticas de dívida bruta do Governo federal, em dezembro de 2010, mostram que os créditos do Tesouro junto ao BNDES já ultrapassam R$230 bilhões. Pode-se verificar que R$28,8 bilhões foram acumulados ao longo de 2008, R$93,8 bilhões em 2009 e R$107,5 bilhões em 2010. Em percentagem do PIB, tais valores correspondem a 0,9%, 2,9% e, novamente, 2,9%.

O governo tem ressaltado a importância fundamental que tiveram os empréstimos do Tesouro ao BNDES na contenção da crise, em 2008 e 2009, por terem propiciado a injeção de forte estímulo à demanda agregada. E, de fato, um impulso fiscal de 0,9% do PIB em 2008, seguido de novo impulso de nada menos que 2,9% do PIB em 2009, configura um estímulo extraordinário. O problema é que, apesar de todos os sinais de vigorosa recuperação em 2010, o governo entendeu que deveria continuar a estimular a economia com novas transferências do Tesouro ao BNDES da ordem de 2,9% do PIB no ano passado.

Esse impulso fiscal foi muito maior do que o que adveio da deterioração da conta oficial de resultado primário em 2010 (que deixa de fora a capitalização do BNDES), mesmo quando as cifras são recalculadas sem apelo à notória alquimia contábil a que tem recorrido o governo. Não faz sentido, portanto, discutir como a política fiscal deve ser corrigida, em face do sobreaquecimento da economia, sem levar em conta os impulsos fiscais que têm sido gerados pelas gigantescas transferências do Tesouro ao BNDES. É indefensável que, a essa altura dos acontecimentos, a economia volte a ser estimulada com um impulso fiscal de mais de 1,3% do PIB, que é o que adviria de um novo aporte de R$55 bilhões do Tesouro ao BNDES.

Chegou a hora de fechar o orçamento fiscal paralelo que o governo tem mantido no BNDES, por meio de operações dissimuladas de capitalização da instituição pelo Tesouro. A dissimulação tem trazido descrédito às contas públicas e à política fiscal. E já não ilude ninguém. O próprio FMI tem assinalado em suas publicações que as estatísticas de resultado fiscal do Brasil omitem transferências do Tesouro ao BNDES da ordem de 3% do PIB, tanto em 2009 como em 2010. Até quando o governo vai insistir nesse papelão?

Rogério L. Furquim Werneck é economista.

FONTE: O GLOBO

O Bolívar de Garanhuns::Nelson Motta

Enquanto desencarna da presidência, Lula vai ser recebido em Caracas, Havana e Manágua como um Bolívar de Garanhuns. Os compañeros vão vestir a guayabera de gala e ouvir seus sábios conselhos econômicos - para que façam os cortes orçamentários que Dilma está fazendo -, e políticos -- para que deem uma afrouxada para não serem mubarakados?

Sei lá, o homem é imprevisível, pode até dar umas lições de democracia aos hermanos bolivarianos. Ele ama dar lições, é como uma missão, uma compulsão irresistível para alguém que tudo sabe e tão generosamente ensina.

Será que ele vai ensinar a Chávez como lidar com a mídia? Ou vai só dizer que a Venezuela tem democracia até demais e invejá-lo? Do jeito que o coronel vai ladeira abaixo, talvez o melhor conselho seja trocar de babalaô. E pedir a Sarney que indique um bom.

Que espetáculo vai ser esse papo entre Lula e Fidel, o mundo merece conhecê-lo na íntegra, ou ao menos ler os melhores momentos nas "Reflexiones" do Comandante. Os eternos ressentidos com Lula, que não aceitam um nordestino, pobre e operário na presidência, torcem para que Fidel o homenageie com um discurso de três horas sobre as conquistas da Revolução. O último.

E Raúl, coitado, talvez tenha que ouvir de Lula lições de tolerância, apesar de, apertado pela pressão internacional, ter libertado os presos políticos que Lula ignorou e depois igualou a criminosos comuns.

Quem sabe Lula pode ensinar alguma coisa ao velho molestador Daniel Ortega sobre relações públicas, construção de imagem e propaganda governamental? Ou indicar o Franklin Martins como consultor?

Além de falar mal dos Estados Unidos e de dizer que o Brasil está melhor do que eles, Lula pode ensinar aos compañeros a base da nossa estabilidade e prosperidade: a manutenção da política econômica "daquela pessoa".

Com o PIB em queda, inflação em alta e popularidade em baixa, os compañeros estão precisando muito dos conselhos de Lula. Mas ele também precisa dos ensinamentos deles para ajudá-lo a desconstruir o mensalão como uma conspiração da mídia golpista. Nisso eles têm o maior know-how do continente.

Nelson Motta é jornalista.

FONTE: O GLOBO

O Brasil que protege os refugiados:: Juliano Basile

Se tivesse prevalecido o entendimento de Luiz Paulo Barreto, o caso Battisti provavelmente não estaria nas páginas dos jornais brasileiros e italianos como um foco de desentendimento entre os dois países. Barreto foi autor do voto decisivo no Comitê Nacional de Refugiados (Conare) que negou o status de refugiado político ao ativista italiano Cesare Battisti. Depois do seu voto, restava, então, enviá-lo de volta para a Itália e por um ponto final no processo.

Mas o voto de Barreto, que foi o último num placar de 3 a 2, não prevaleceu. Numa decisão inédita, o então ministro da Justiça, Tarso Genro, foi contrário à posição do Conare. Ele reviu a decisão do conselho e concedeu o refúgio a Battisti. Esse foi o estopim para que o caso fosse enviado ao Supremo Tribunal Federal (STF), onde foi julgado, em 2009, e voltou, neste mês, depois que o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu pela manutenção de Battisti no Brasil.

Quase dois anos depois do seu voto, Barreto organizou um livro sobre refugiados - assunto no qual é especialista. O livro foi lançado nas celebrações dos 60 anos do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), em 14 de dezembro. Na época, Barreto era ministro da Justiça. Hoje, é secretário-executivo da pasta.

São sete artigos. Barreto é autor de dois. No primeiro, ele conta a história da lei de refugiados no Brasil. "Há fatos memoráveis", diz Barreto. "Certa vez, jovens cidadãos chilenos procuraram a Arquidiocese do Rio de Janeiro com uma carta de recomendação do Vicariato de Solidariedade do Chile pedindo que fossem protegidos no Brasil pela Igreja Católica." A carta foi encaminhada ao cardeal dom Eugenio de Araújo Sales, em abril de 1976. "Na época, era impossível se pensar numa assistência do governo brasileiro a essas pessoas", continuou o autor, lembrando os governos militares que vigoravam no Brasil e no Chile. Ao fim, o cardeal ligou para o comandante geral do Exército e, ao invés de denunciar os chilenos, comunicou que, a partir daquele momento, passaria a acolher pessoas perseguidas do Chile, da Argentina e do Uruguai, com recursos da própria igreja.

No segundo artigo, Barreto faz comentários à legislação brasileira. Hoje, o país conta com 4.306 refugiados de 75 nacionalidades. "O número não é grande, mas a grande variedade de nacionalidades compõe um quadro muito rico de pessoas que tiveram problemas em seus países de origem, nas mais longínquas partes do mundo, e encontraram no Brasil a possibilidade de reconstruir suas vidas", afirma o autor.

Além de artigos e de uma seção dedicada à jurisprudência, o livro traz fotos e um prefácio de uma página escrito pela atriz hollywoodiana Angelina Jolie. Ela atua como embaixadora da ONU para refugiados. Diz Angelina: "O Brasil tem generosamente recebido migrantes e refugiados por décadas, e tem feito isso com respeito aos seus direitos e à sua dignidade humana". Para a atriz, a experiência brasileira é bastante positiva num "mundo onde refugiados e estrangeiros são com frequência estigmatizados e marginalizados devido ao racismo e à xenofobia". "Nós temos muito que aprender com a positiva experiência brasileira em relação aos refugiados", conclui Angelina, que, por certo, não lê os jornais brasileiros e italianos que todos os dias trazem os desentendimentos de ambos os governos em torno do caso Battisti.

"Refúgio no Brasil - A Proteção Brasileira aos Refugiados e o Seu Impacto nas Américas".

Luiz Paulo Teles Barreto (org.). Ministério da Justiça e Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Gratuito.

Pode ser obtido pelos sites: http://www.mj.gov.br/ ou www.acnur.org/t3/portugues

FONTE: VALOR ECONÔMICO

Culturas e ditaduras:: Demétrio Magnoli

"Mudamos nosso destino. Foi uma conquista da nossa geração." Em meio ao júbilo que tomou as ruas do Egito, um manifestante explicou que eles se sentiam "acima da Lua". As imagens da explosão de euforia tiveram impacto no Brasil. Naquele dia, por aqui, as pessoas comuns declaravam-se mais felizes. Por meio desse pequeno milagre que é a empatia humana, elas viram a si mesmas nos rostos e nos olhos dos egípcios. Quase todos com idade para isso enxergaram mais longe: viram, na Praça Tahrir, os contornos das multidões de alemães que, mais de duas décadas atrás, derrubaram a golpes de picareta o Muro de Berlim.

Quase todos, mas não todos, pois a ideologia é um ácido capaz de corroer a empatia. "O Egito não está preparado para a democracia", ouviu-se aqui e ali, na transposição do senso comum de um conceito corrente, difundido por respeitáveis analistas, que assevera a incompatibilidade entre a "cultura árabe" e o império da liberdade política. Cultura é uma palavrinha de mil e uma utilidades. A "cultura alemã" ("ocidental"?) seria um fundamento para a revolução democrática de 1989 ou para a revolução nazista de 1933?

A invocação incessante da cultura reflete uma forma singular de cegueira. Alguns viram, na revolução egípcia, não uma expressão amplificada das manifestações democráticas no Irã de 2009, mas a reprodução da trajetória da Revolução Iraniana de 1979. No Egito, não se verificaram cenas comparáveis às das massas que, em Teerã, seguiam estandartes com a imagem do aiatolá Khomeini. Mas eles enxergam apenas aquilo que mostram seus óculos ideológicos - isto é, a "insurreição dos muçulmanos". Árabes aqui; persas acolá - não são todos, no fim das contas, fiéis do Islã? A sentença irrevogável desses analistas expressa a tese dos arautos da "guerra de civilizações": Islã e liberdade política são termos imiscíveis.

"Olhe a cultura!", advertem nossos antiamericanos viscerais, sempre propensos a incensar a ditadura iraniana: "aquilo que é bom para nós não se adapta à sociedade deles." Lula, afinal, não mencionou as diferenças de "costumes" para flertar com o apedrejamento? A "cultura islâmica" figura como argumento oficial da teocracia iraniana na legitimação de seu regime. No mesmo Irã, mas antes de 1979, apelava-se à "cultura persa", pré-islâmica, para justificar a ditadura pró-ocidental do xá Reza Pahlevi. Culturas, tantas culturas...

"Hosni Mubarak ou o caos." O teorema, reiterado pelo ditador do Egito durante 30 anos, repousa sobre a chave mágica da cultura. "Caos", no caso, é o espectro do fundamentalismo islâmico, corporificado na Irmandade Muçulmana. Na incubadora proporcionada pelas ditaduras pró-ocidentais no mundo muçulmano, sob a luz fria do teorema culturalista, nasceram as árvores do jihadismo contemporâneo. Ayman al-Zawahiri, o egípcio que escreve os manifestos da Al-Qaeda, também manipula a chave da cultura - girando-a, porém, no sentido inverso.

"Depois de Mubarak, a Irmandade Muçulmana", alertam os neoconservadores nos Estados Unidos. Islã, fundamentalismo e jihadismo são termos interligados, mas não idênticos. Há quatro décadas, uma cisão separou os seguidores de Sayyd Qutb da corrente principal da Irmandade Muçulmana. Os primeiros fermentaram o caldo do jihadismo, produzindo a Jihad Islâmica, no Egito, e o embrião da Al-Qaeda, na Arábia Saudita. Enquanto isso, proscrita e perseguida, a Irmandade iniciava uma longa jornada de reflexão doutrinária. Uma encruzilhada crucial foi ultrapassada pela condenação inequívoca, sistemática, do terror "islâmico". Hoje, os Irmãos encontram-se no limiar de uma segunda escolha, entre fundamentalismo e democracia.

"O Egito cairá no colo da Irmandade Muçulmana", adverte o Estado de Israel. O Egito é uma sociedade mais complexa do que sugere o quadro bicolor do culturalismo. Durante todo o século 20, correntes liberais e socialistas moldaram uma paisagem política diferenciada, plena de matizes. A Irmandade obteve 20% das cadeiras no Parlamento em 2005, na única oportunidade em que a ditadura lhe permitiu concorrer apresentando candidatos independentes. Ela não representa a maioria dos egípcios, mas expressa a vontade de uma minoria relevante. Obviamente, não haverá no Egito uma democracia digna desse título sem a admissão legal do partido dos Irmãos.

Israel usa o argumento da cultura com a finalidade de prolongar a vigência de uma política insustentável de ocupação da totalidade da Palestina histórica. Para consumo público, seus dirigentes acenam com a ameaça improvável de um Egito aliado ao Hamas, o partido palestino fundamentalista oriundo de uma costela da Irmandade Muçulmana. Entre quatro paredes, contudo, eles temem o desdobramento da revolução árabe na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Como reagirá Israel se os palestinos, que são árabes, desistirem do sonho nacionalista de um Estado soberano e, como os egípcios, tomarem as ruas para reivindicar direitos políticos iguais no conjunto Israel/Palestina?

Turquia, não Irã - eis a pista apropriada para a especulação sobre o futuro do Egito. A Turquia é governada pelo Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), que emanou de sucessivas cisões e revisões do fundamentalismo islâmico turco. Numa via de dupla mão, o AKP nutriu-se da democratização da Turquia e contribuiu para a dissolução do autoritarismo militar que lastreava a república laica fundada por Kemal Ataturk. A facção majoritária da Irmandade Muçulmana interpreta a experiência turca como uma saída possível para o seu dilema. O jihadismo, ao contrário, enxerga na Turquia uma ameaça existencial: a síntese entre a cultura muçulmana e a democracia.

A história multissecular da reforma do Islã conhece uma aceleração no Egito. Os arautos ocidentais da "guerra de civilizações", presos à armadilha culturalista, nada têm de útil a nos dizer sobre isso.

Sociólogo e Doutor em Geografia Humana pela USP.

FONTE: O GLOBO (17/2/2011)

Oposição abre batalha no STF pelo mínimo de 2012

Nem bem foi aprovado o mínimo de R$ 545 para este ano, caminha para o Supremo Tribunal Federal a batalha pelo salário de 2012. Dois partidos da oposição, o PSDB e o PPS, decidiram ir ao STF caso o Senado mantenha o artigo 3º do projeto aprovado na Câmara, que prevê a fixação do mínimo por decreto presidencial até 2O15. Para os "oposicionistas, o artigo é inconstitucional, pois tira do Congresso o poder de decisão sobre o tema – algo previsto na Constituição. Ouvidos, três ministros do Supremo consideraram que o artigo pode, de fato, causar problemas ao Planalto. O governo, porém, rejeita a tese de inconstitucionalidade e diz que o decreto apenas fixará um valor a partir da fórmula de cálculo aprovada no Congresso. Depois da vitória na Câmara, o governo ameaça castigar aliados infiéis, entre eles o PDT e seu ministro Carlos Lupi (Trabalho). Nove dos 27 deputados pedestistas e dois petistas votaram pelos R$ 560. No Senado, o governo espera contar com 58 votos, mas já sabe que o petista Paulo Paim (RS) planeja apresentar emenda pelos R$ 560. Nas centrais e na oposição, o clima ontem era de desolação com o fraco desempenho na Câmara

Decreto é novo round para Dilma

O TESTE DO MÍNIMO

Oposição vai ao Supremo contra artigo que tira do Congresso poder de votar o mínimo

Cristiane Jungblut, Adriana Vasconcelos e Carolina Brígido

Deve parar no Judiciário a discussão do valor do salário mínimo do ano que vem. O PSDB e o PPS, separadamente, anunciaram ontem que recorrerão ao Supremo Tribunal Federal (STF) caso o Senado também aprove o artigo que prevê que, nos próximos quatro anos, o valor seja regulamentado por meio de decreto presidencial. É o que prevê o artigo 3º do projeto de lei sobre o salário mínimo já aprovado na Câmara. Os dois partidos de oposição consideram a medida inconstitucional e ingressarão no Supremo com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin).

Na verdade, a preocupação dos partidos é perder o palanque político do Congresso para a discussão de um tema explosivo, como o reajuste do mínimo. Mas a proposta também causou preocupação no Supremo Tribunal Federal (STF). Pelo menos três dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) consideram problemática a decisão do governo de definir o valor do salário mínimo por decreto nos próximos três anos.

No Supremo, o ministro Marco Aurélio Mello disse abertamente que, em tese, não se pode retirar do Congresso Nacional a atribuição de aprovar ou não o valor definido pelo Palácio do Planalto. Os outros dois ministros consultados fizeram a mesma observação, mas preferiram não ser identificados:

- Essa transferência a um outro poder de um ato que é próprio do Legislativo cria um problema. A ordem natural das coisas é a aprovação pelo Congresso para ter-se lei no sentido formal e material. Acaba ocorrendo uma delegação, e a Carta de 1988 colocou um fim nas delegações, nessas transferências. Em tese, é um problema. Eu não conheço a situação concreta.

Para o Palácio do Planalto, a polêmica não existe, porque a presidente Dilma Rousseff apenas divulgará o valor que resultar da aplicação seca da regra previamente conhecida e que está sendo aprovada agora pelo Congresso Nacional. Em 2012, conforme a regra de reajuste do mínimo previsto para até 2015, o benefício será de R$616. Se for anunciado por decreto, os parlamentares da oposição ou da base perdem a oportunidade de debater valores diferenciados, dependendo da conjuntura política do momento.

Assessores jurídicos do governo rejeitam a tese da inconstitucionalidade do texto, argumentando que já estaria definida em lei uma regra permanente de reajuste do mínimo até 2015: a correção pela inflação mais o PIB de dois anos anteriores. Lembram ainda que outros presidentes lançaram mão de decretos e portarias para fixar o mínimo, mesmo depois da Constituição de 1988. Em março de 1994, no governo Itamar Franco, por exemplo, foi por portaria interministerial.

Anteontem, na votação do mínimo, o presidente do PPS, deputado Roberto Freire (SP), acusou o governo de querer "usurpar" os poderes do Legislativo. A emenda do PPS foi derrotada por 350 votos contra, 117 a favor, além de duas abstenções.

O texto do projeto diz que "reajustes e aumentos fixados (pela regra) serão estabelecidos pelo Poder Executivo, por meio de decreto, conforme os termos dessa lei". Segundo interpretação técnica do Palácio do Planalto, a Constituição determina que haja fixação periódica do mínimo e que isso está garantido no projeto, que será lei. No artigo 7º da Constituição, é dito que o salário mínimo será "fixado em lei, nacionalmente unificado (...), com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo".

- Não podemos abrir mão do nosso direito de discutir e votar todos os anos o reajuste do mínimo, transferindo essa responsabilidade para a vontade exclusiva da presidente. A Constituição não permite - disse o deputado Roberto Freire.

Na mesma linha, o líder do PSDB no Senado, Álvaro Dias (PR), disse que tentará derrubar o artigo na votação do Senado, mas sabe que será difícil:

- Além de representar uma afronta à Constituição, o dispositivo incluído na MP retira do Congresso Nacional a prerrogativa de discutir e aprovar o valor do salário mínimo.

Em contrapartida, os líderes governistas na Câmara, deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP), e no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR), saíram a campo para defender a decisão de Dilma.

- A Câmara não vai decidir sobre o mínimo, a Câmara já decidiu (ontem). O que o Executivo vai fazer é essa equação prevista no projeto. Não é inconstitucional. O salário mínimo está sendo fixado por uma lei, e o decreto que fixará os próximos valores representa apenas um desdobramento dessa lei. A oposição é que tenta botar defeito - acrescentou Jucá.

FONTE: O GLOBO

Valor não cobre inflação de 2011

Sindicatos devem levar reivindicação à Justiça

BRASÍLIA. Mesmo que ainda não tenha sido convertido em lei, o reajuste do mínimo para R$545 a partir de março deve criar outro embate judicial. O Sindicato Nacional dos Aposentados, filiado à Força Sindical, decidiu pedir aos tribunais que o novo piso incorpore também a inflação de janeiro e fevereiro de 2011, o que poderia elevar o valor do salário a cerca de R$550. A correção aprovada na Câmara é ligeiramente superior ao INPC acumulado de 2010, que fechou em 6,47%.

A CUT, porém, discorda do cálculo e considera que a compensação da inflação total de 2011 virá no reajuste de janeiro de 2012. Isso porque a política de valorização salarial aprovada na lei cria a regra de reajuste anual até 2015 e inclui a inflação acumulada do ano anterior e a variação do PIB de dois anos antes. Segundo Artur Henrique, presidente da central, pode ocorrer uma disputa para retroagir o valor de R$545 para janeiro e fevereiro.

- O Sindicato Nacional dos Aposentados já tomou essa decisão. Vai pedir na Justiça que o reajuste, que valerá a partir de março, quando virar lei, contenha o reajuste da inflação de janeiro e de fevereiro - disse o deputado Paulo Pereira (PDT-SP), o Paulinho da Força.

Segundo ele, o sindicato irá argumentar que o reajuste deve incorporar a inflação dos últimos 14 meses. Dessa forma, em 2012, somente a inflação a partir de março precisaria ser considerada.

Segundo o IBGE, o INPC de janeiro de 2011 ficou em 0,94%, superior ao 0,88% registrado em janeiro de 2010. No primeiro trimestre de 2010 o INPC acumulado foi de 2,31%.

Governo retribui apoio do PMDB com cargos na Caixa

Partido cobra reconhecimento depois de exibir força na votação do mínimo

Confirmação de políticos indicados para diretorias do banco deve sair antes de votação do projeto pelo Senado

Valdo Cruz, Ranier Bragon e Maria Clara Cabral

BRASÍLIA - Depois de exibir força ao votar unido pelo salário mínimo de R$ 545, o PMDB espera ser recompensado pela presidente Dilma Rousseff na distribuição de cargos na máquina federal. O governo entendeu o recado e promete começar a pagar antes da votação do projeto no Senado.

A cúpula peemedebista decidiu trabalhar para ter o apoio integral da sua bancada de 77 deputados para ficar credora e cobrar compromissos do Palácio do Planalto.

A tática funcionou e nomeações solicitadas pelo partido na Caixa Econômica Federal devem ser efetivadas nos próximos dias, antes da votação do projeto do salário mínimo no Senado, prevista para a próxima quarta-feira.

O PMDB sugeriu os nomes do ex-ministro da Integração Nacional Geddel Vieira Lima e do ex-governador da Paraíba José Maranhão para as vice-presidências de Crédito da Pessoa Física e de Fundos e Loterias da Caixa.

O PMDB já possui seis ministérios no governo Dilma, mesmo número que tinha no fim do governo Lula. O partido ocupa Agricultura, Minas e Energia, Defesa, Previdência Social, Turismo e Assuntos Estratégicos.

A grande briga agora é por cargos no segundo escalão. Além da Caixa, o PMDB quer diretorias do Banco do Brasil, de empresas estatais do setor elétrico e da Funasa (Fundação Nacional de Saúde).

A estratégia peemedebista na votação de anteontem foi montada pelo vice-presidente Michel Temer e pelo líder da bancada, Henrique Eduardo Alves (RN), diante da conclusão de que não bastava garantir maioria, mas era preciso aparecer como o partido mais fiel para ter força na divisão de poder.

RECONHECIMENTO

Temer disse ontem à Folha que o PMDB "não votou pensando em cargos". Em seguida, deixou implícito que o partido espera reconhecimento. "Agora, está nas mãos do governo fazer o que deve ser feito e o que achar melhor", afirmou.

Logo após a votação, o ministro da Casa Civil, Antonio Palocci, ligou para Alves e lhe cumprimentou. O líder do governo na Câmara, Cândido Vaccarezza (PT-SP), disse ontem que o "PMDB saiu fortalecido e tem o reconhecimento do governo".

Em reunião com a bancada anteontem, Temer afirmou aos peemedebistas que "não adiantava estar unido pela metade", diante da expectativa inicial de conseguir 55 dos 77 votos do partido para o governo.

Em sua opinião, "outra posição enfraqueceria o partido", que precisava demonstrar união num momento que é acusado de fisiologismo e criticado por causa de suas divisões.

Temer disse que o PMDB "surpreendeu" e que os deputados entenderam que dar "uns 50 votos ao governo era o mesmo que zero para efeito de força política".

O vice-presidente afirmou que na votação de quarta-feira o PMDB buscou "demonstrar que é governo, quer ser tratado como governo e continuará sendo governo".

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

Supremo antevê debate quente sobre mínimo por decreto

Três ministros acham contestável delegação ao Executivo, prevista na nova lei, para decidir sozinho sobre correção

Mariângela Gallucci

Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) preveem um "debate quente" na corte se, de fato, a lei do salário mínimo autorizar a presidente Dilma Rousseff a reajustar anualmente seu valor por meio de decreto, sem necessidade de passar por votação no Congresso. O PPS anunciou ontem que vai acionar o Supremo se o projeto for aprovado pelo Senado e a lei for sancionada pela presidente.

"A ordem natural das coisas é a aprovação pelo Congresso para ter-se lei no sentido formal e material", afirmou o ministro Marco Aurélio Mello. A Constituição estabelece textualmente que o valor do salário mínimo será fixado em lei.

"Toda vez que a Constituição se refere a lei é no sentido formal e material. Ainda se pode imaginar uma medida provisória que tem força de lei, que passa depois pelo Congresso. Agora essa transferência a um outro Poder de um ato que é próprio do Legislativo cria um problema", observou Marco Aurélio.

Outros dois ministros do STF consultados pelo Estado concordam que pode haver conflito na delegação de poderes à presidente para reajustar o salário mínimo por meio de decreto. Segundo eles, a Constituição não admite, em tese, essa transferência de atribuição do Legislativo para o Executivo. No entanto, outro ministro do Supremo entende que, em princípio, não há problemas. "Na legislação orçamentária, a lei permite que o Executivo remaneje x, y, z por decreto", argumentou essa fonte.

Adin. O PPS anunciou ontem que, se a lei entrar em vigor, o partido vai protocolar uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo para impedir que o aumento do mínimo seja definido por decreto até 2015, conforme texto aprovado pela Câmara. O partido sustenta que o Congresso e a sociedade devem debater anualmente o valor do reajuste.

De acordo com o presidente do PPS, Roberto Freire, o governo "de forma inadmissível, usurpa dos legítimos representantes do povo brasileiro o direito de decidir sobre os valores adequados para o reajuste e aumento do piso dos trabalhadores".

No ano passado, o próprio STF mandou ao Congresso um projeto polêmico. Para conseguir reajustar os salários de seus ministros, o Supremo tem de mandar projetos de lei para aprovação do Legislativo. Mas na proposta de 2010 o tribunal sugeriu uma espécie de gatilho salarial. No projeto foi incluído um dispositivo segundo o qual a partir de 2012 o reajuste seria feito por um ato administrativo com base na variação do IPCA.

Prerrogativa. A fórmula introduzida pela presidente Dilma Rousseff no texto da lei aprovada pela Câmara pretende livrá-la da desgastante discussão do salário mínimo todo início de ano - o que é feito desde 1988, por imposição constitucional.

Pela proposta, os parlamentares perdem a prerrogativa de discutir os reajustes. Uma emenda do PPS tentou modificar o projeto, mas foi derrubada.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Complexo do Alemão, Serra Pelada::Fernando Gabeira

A tomada do Complexo do Alemão foi uma grande vitória da polícia do Rio de Janeiro contra traficantes de droga. Ela representou uma libertação para os moradores que viviam sob o jugo do crime. E foi conquistada sem carnificina. Dados inegáveis.

Existem uma operação real e uma narrativa. Sem questionar o mérito da operação real, tentamos colocar algumas perguntas no momento da euforia vitoriosa. A história mostra que momentos como esse são péssimos para quem tem o hábito de perguntar. A pessoa aparece como se fosse negativa, ou mesmo invejosa, diante da trajetória resplandecente dos triunfantes. Recomenda-se, nessas ocasiões, a tática oriental contida no exemplo do pequeno arbusto que se curva para que a ventania passe. A ventania passou e é hora de questionar não a tomada do Complexo do Alemão, mas a narrativa que a apresentou como uma vitória da civilização contra a barbárie.

Três das quatro mais importantes quadrilhas da polícia do Rio participaram da tomada do Alemão. A pilhagem dos bens dos traficantes e de moradores foi tão espetacular que um dos policiais bandidos, grampeado pela Polícia Federal, comparou o Complexo do Alemão à Serra Pelada, onde milhares de garimpeiros cavavam o solo em busca de uma pepita de ouro.

A Serra Pelada que conhecemos pessoalmente, ou através das fotos em preto e branco de Sebastião Salgado, não sugere uma operação de rapina, mas a saga de uma parte da população maltrapilha e seminua tentando mudar seu destino.

No Complexo do Alemão ocorreu apenas uma grande operação de rapina. Dezenas de repórteres e cinegrafistas estavam lá, mas isso escapou de seu raio de observação. Era uma operação de guerra, como no Iraque, em que os repórteres, por se escolherem como uma extensão da força ocupante, perdem o potencial crítico. Foi tudo lindo e maravilhoso na narrativa, enquanto no terreno real a pilhagem se desenvolvia na sombra.

Um policial contou-me que em certos momentos teve de apontar o fuzil para deter a fuga de colegas com um caminhão cheio de objetos dos barracos do Complexo.

A própria imprensa se deu conta disso, antes de surgir a imagem de Serra Pelada. O pastor Ronai de Almeida Braga Júnior denunciou que foi assaltado pelos policiais. Sua denúncia demorou a ganhar espaço, sob o argumento de que um caso era estatisticamente desprezível. Mas depois que ele falou surgiram vários outros.

O Exército procurou punir com rapidez um oficial que participou de saques. Mas a instituição é a responsável por manter a ordem no Complexo. Depois da ocupação surgiram artistas, fotógrafos, modelos, inúmeros talentos no Alemão. Até um cinema com filmes em três dimensões foi inaugurado. Mas ainda é difícil, hoje, convencer muitos no Complexo de que foi um triunfo do bem contra o mal.

A narrativa começou falseando as causas da sequência de atentados que culminou com a decisão de ocupar o Complexo. Segundo ela, os carros estavam sendo incendiados porque traficantes não se conformavam com o êxito das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), redutoras de seu espaço. Na época, levantei uma singela pergunta: Se os traficantes queriam questionar as UPPs, por que não o fizeram no momento eleitoral, quando o governo estava mais vulnerável?

Semanas depois da ocupação, uma autoridade me confessou as razões dos atentados. Com as informações obtidas nos presídios de segurança, concluiu-se que os atentados eram uma represália contra ação da polícia entre as famílias dos presos. Desde o princípio do ano passado começou uma operação, comandada pelo chefe da Polícia, Allan Turnowski, para recuperar o dinheiro do tráfico que estava com as famílias. Operação necessária, que usaria o clássico método de comparação entre bens e rendimentos. Segundo os presos, a operação extrapolou seus objetivos legais e virou uma fonte de confisco. Foi esse o estopim.

O que foi revelado até agora é apenas uma parte da história da tomada do Complexo do Alemão. Foram vistos carros de polícia vindos do interior nas vielas do morro. Todos os setores corruptos da instituição entenderam a mensagem. A importância da missão policial e o entusiasmo da imprensa eram uma liga que garantia um metal simbólico para a poderosa blindagem.

Crianças mergulhando nas piscinas dos traficantes eram uma ótima imagem de libertação. Mostravam o contraste entre o conforto dos donos do morro e as dificuldades da vida cotidiana dos moradores. Sugeriam uma socialização, indicavam que aqueles bens agora seriam públicos.

Acontece que esse processo de passagem dos bens dos traficantes para a sociedade depende de um ritual, está previsto em lei, origina inventários. O que ocorreu na verdade, segundo os grampos, foi uma invasão de policiais de todos os batalhões, tentando a sorte: um aparelho de televisão, um lote de pares de tênis, um fuzil. E o garimpo não se detinha nos bens que, legalmente, devem ficar com o governo. O garimpo envolveu o saque de várias casas de cidadãos comuns, perplexos com a fúria e a ganância de seus salvadores.

A operação que desvendou esse lado da tomada do Complexo do Alemão ilumina uma outra narrativa que fascinou os jornalistas: o chamado Choque de Ordem. O delegado Carlos Antônio de Oliveira, um dos principais acusados, caiu para cima: ele deixou a polícia e foi dirigir o Choque de Ordem, carro chefe da propaganda oficial.

O Choque de Ordem, como a tomada do Alemão, era necessário. Deveria, no entanto, ter sido acompanhado de algumas obras de infraestrutura e um trabalho pedagógico. Investido de uma cobertura favorável, foi blindado, apesar de sua intensidade contra os pobres e elegância com os ricos. Foi outra mina de ouro.

Comemorar a libertação do Alemão como a de Paris na 2.ª Guerra Mundial, festejar a prisão de algumas pessoas fazendo pipi na rua como a tomada de Monte Castelo só é possível quando a paixão sequestra o senso crítico. Aves de rapina agradecem.

Jornalista

Conflito mata ao menos 20 na Líbia e sete no Bahrein

Confrontos entre opositores e grupos pró-governo da Líbia deixaram ao menos 20 mortos em quatro cidades.

Muammar Gaddafi, há mais de 40 anos no poder, mobilizou até atiradores de elite para conter protestos.

Na capital, Trípoli, partidários de Gaddafi se reuniram em apoio ao ditador. No Bahrein, sete morreram desde segunda. Os militares ocuparam a praça da Pérola.

ONDAS DE REVOLTA

Conflitos na Líbia registram 20 mortes
Forças do ditador Gaddafi mobilizaram até atiradores de elite para conter protestos em quatro cidades do país

Segundo Irmandade Muçulmana, homens do Exército dispararam munição letal para dispersar multidões

Opositores do ditador Muammar Gaddafi promoveram ontem um "dia de fúria" na Líbia, com atos em pelo menos quatro cidades. Choques entre opositores e grupos pró-Gaddafi já deixaram ao menos 20 mortos desde anteontem, segundo relatos das agências de notícias.

A onda de protestos que assola os países do Oriente Médio há dois meses atingiu anteontem a primeira cidade líbia, Benghazi -a segunda maior do país e tradicional reduto da oposição.

Segundo o site de oposição Al-Youm, forças de segurança enviadas por Gaddafi tentaram reprimir os protestos e mataram a tiros ao menos seis manifestantes ontem.

O mesmo site afirmou que, na cidade de Beyida, atiradores de elite das Forças de Segurança Interna mataram outros quatro manifestantes.

Já o ativista líbio Fathi al-Warfali, que mora na Suíça, disse que chegou a 11 o número de mortos naquela cidade na noite de anteontem.

Mohammed Ali Abdellah, vice-líder do movimento clandestino Frente Nacional de Salvação da Líbia, afirmou que está havendo escassez de medicamentos nos hospitais de Beyida.

Segundo ele, como represália aos protestos, o governo teria cortado o fornecimento de suprimentos às instalações médicas locais. Os feridos na cidade chegam a 70.

Houve ainda protestos na cidade de Zentan, onde dois manifestantes foram mortos, e Rijban, que teve uma pessoa assassinada, de acordo com o também antigovernista Comitê Líbio pela Verdade e pela Justiça.

As cidades de Darnah e Ajdabiya também teriam registrado agitação.

A organização Human Rights Watch afirmou que 14 pessoas foram presas durante as manifestações.

Como ocorreu no Egito e na Tunísia, opositores estão usando páginas de relacionamentos na internet para organizar protestos.

A TV estatal não está transmitindo os protestos e forças do regime estão impedindo a imprensa de trabalhar livremente. Grande parte das informações sobre manifestações, mortos e feridos é fornecida por testemunhas e fontes fora da Líbia.

A Irmandade Muçulmana da Líbia afirmou que o controle da mídia é uma tentativa de impedir que abusos supostamente cometidos pelas forças de segurança e partidários do governo sejam divulgados pelo mundo.

Em comunicado, a entidade acusou forças de segurança e comitês revolucionários de usar munição letal para dispersar as multidões de manifestantes -o que estaria causando as mortes.

REAÇÃO

O governo tomou ações rápidas na tentativa de impedir que os protestos se espalhem pelo país. Gaddafi propôs aumento de 100% nos salários de funcionários públicos e libertou da prisão 110 militantes islâmicos opositores.

O ditador, que está no poder há 40 anos, também se reuniu com líderes tribais líbios para pedir apoio.

Na capital, Trípoli, onde o comércio funcionava normalmente, partidários de Gaddafi se reuniram em apoio ao ditador na praça Verde. "Nós estamos defendendo Gaddafi", gritava a multidão.

A agência de notícias estatal Jana afirmou que os protestos em Trípoli expressam a "eterna unidade com o irmão líder da revolução", como Gaddafi é conhecido.

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

O Rio – continuação::João Cabral de Melo Neto

Ou
relação da viagem
que faz o Capibaribe
de sua nascente
à cidade do Recife

Encontro com o canavial

No outro dia deixava
o Agreste, na Chã do Carpina.
Entrava por Paudalho,
terra já de cana e de usinas.
Via plantas de cana
com sua cabeleira, ou crina,
muita folha de cana
com sua lâmina fina,
muita soca de cana
com sua aparência franzina,
e canas com pendões
que são as canas maninhas.
Como terras de cana,
são muito mais brandas e femininas.
Foram terras de engenho,
agora são terras de usina.