domingo, 17 de abril de 2011

Reflexão do dia – FHC: No mundo interconectado de hoje.

No mundo interconectado de hoje, vê-se, por exemplo, o que ocorre com as revoluções no meio islâmico, movimentos protestatórios irrompem sem uma ligação formal com a política tradicional. Talvez as discussões sobre os meandros do poder não interessem ao povo no dia-a-dia tanto quanto os efeitos devastadores das enchentes ou o sufoco de um trânsito que não anda nas grandes cidades. Mas, de repente, se dá um “curto-circuito” e o que parecia não ser “política” se politiza. Não foi o que ocorreu nas eleições de 1974 ou na campanha das “diretas já”?

Nestes momentos, o pragmatismo de quem luta para sobreviver no dia-a-dia lidando com questões “concretas” se empolga com crenças e valores. O discurso, noutros termos, não pode ser apenas o institucional, tem de ser o do cotidiano, mas não desligado de valores. Obviamente em nosso caso, o de uma democracia, não estou pensando em movimentos contra a ordem política global, mas em aspirações que a própria sociedade gera e que os partidos precisam estar preparados para que, se não os tiverem suscitado por sua desconexão, possam senti-los e encaminhá-los na direção política desejada.

Fernando Henrique Cardoso. O papel da oposição. O Estado de S. Paulo, 14/4/2011


Entrevistas - Jessé de Souza e Bolívar Lamounier: Aonde vai a nova classe média

Quem conquistará os votos dos 20 milhões de brasileiros que subiram de patamar nos últimos anos?

Ivan Marsiglia

A bola estava no ar, faltava cortar. Foi o que fez o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, num artigo para a revista Interesse Nacional que ganhou o noticiário e inverteu o jogo no debate político brasileiro. O ponto: o sociólogo e presidente de honra do PSDB tenta entender qual será o papel político da chamada “nova classe média”, cuja ascensão há muito vem sendo discutida pelos economistas. Como vão se comportar eleitoralmente os cerca de 20 milhões de pessoas que deixaram a base da pirâmide social do País para chegar à classe C, impulsionados pelo crescimento econômico e os programas sociais da era Lula? O que os partidos, em especial a oposição liderada pelos tucanos, deverão fazer para conquistar corações e mentes acostumados ao novo padrão de consumo adquirido com o aumento da renda e do crédito?

No artigo, que incendiou as torcidas de lado a lado, o ex-presidente afirma que “enquanto o PSDB e seus aliados persistirem em disputar com o PT influência sobre os ‘movimentos sociais’ ou o ‘povão’, isto é, sobre as massas carentes e pouco informadas, falarão sozinhos”. E, no mês em que a presidente Dilma Rousseff completa cem dias de mandato, com seu estilo “gerencial” caindo no gosto das camadas médias e instruídas do País, FHC faz um alerta aos seus pares: “Estas, a despeito dos êxitos econômicos e da publicidade desbragada do governo anterior, mantiveram certa reserva diante de Lula. Essa reserva pode diminuir com relação ao governo atual se ele, seja por que razão for, comportar-se de maneira distinta do governo anterior”.

Estratégia? Resignação? O senador tucano Aécio Neves, potencial candidato à sucessão de Dilma, disse se considerar “mais otimista” que FHC na reconquista do “povão” – que, lembra, cerrou fileiras com o PSDB no Plano Real. Outros aliados, como o presidente do PPS, Roberto Freire, consideraram “equivocada” a proposição do ex-presidente. O PT, por sua vez, na voz sempre pronta do ex-presidente Lula, aproveitou para fustigar o suposto DNA elitista dos tucanos: “Já tivemos políticos que preferiam cheiro de cavalo ao do povo. Agora tem um presidente que diz que é preciso esquecer o povão”.

Para decifrar a inclinação política dos novos emergentes, o Aliás escalou dois especialistas: o sociólogo Jessé de Souza, autor de Os Batalhadores Brasileiros – Nova Classe Média ou Nova Classe Trabalhadora? (UFMG, 2010), e o cientista político Bolívar Lamounier, que lançou, em parceria com Amaury de Souza, A Classe Média Brasileira – Ambições, Valores e Projetos de Sociedade (Elsevier, 2009). A seguir, algumas de suas conclusões.

A aprovação de Dilma em setores de classe média aumentou. E FHC chama a atenção para a disputa pelo voto da ‘nova classe média’. Todos estão de olho nos emergentes?

Jessé de Souza: Os emergentes são a maior novidade econômica, social e política do Brasil na última década. Essa classe crescente é a grande novidade do “Brasil bem-sucedido” dos últimos anos, mas ainda é pouco conhecida. De um lado existe muito preconceito em relação a ela, como em geral aos setores populares no Brasil. De outro, também não cabe a percepção triunfalista que a cerca no debate público. Quando se chamam os emergentes de “nova classe média”, está se querendo dizer que no País as classes médias e não os pobres passam a formar o grosso da população. Isso está longe da verdade. Os “batalhadores”, como os chamo, se assemelham muito mais a uma classe trabalhadora precarizada, típica do pós-fordismo. Uma classe sem direitos e garantias sociais, que trabalha de 10 a 14 horas por dia, estuda à noite e faz bicos nos fins de semana.

Bolívar Lamounier: A avaliação positiva dos primeiros cem dias da presidente Dilma parece-me refletir dois fatos que nada têm a ver com a “nova classe média”. Acho que é um justo crédito de confiança, pois o governo está apenas começando. As medidas mais interessantes da presidente ocorreram no plano externo, no qual vêm sinalizando o abandono do nefasto posicionamento do governo Lula. No interno, não houve medidas significativas. Por outro lado, trata-se de uma sensação de alívio pelo fim do “estilo Lula”. Nos últimos dois anos Lula desandou a falar de todos os assuntos concebíveis, sem nenhum critério de oportunidade ou conveniência. Quanto ao ex-presidente Fernando Henrique, o que fez foi sugerir caminhos para o revigoramento das oposições, de modo geral, e do PSDB, em particular. E o fez com muito acerto. Antes que sua sugestão seja tragada num sorvedouro de equívocos, lembremos que o termo “nova classe média” vem sendo empregado para designar um agregado social correspondente a mais de 40% da população, compreendido entre R$ 1.200 e R$ 4.800 de renda familiar mensal. Não estranharei se alguém se referir à metade dessa camada como “classe trabalhadora” ou até “proletariado”. Como diz Shakespeare, a rose by any other name smells as sweet.

O que aconteceu nos últimos anos com a pirâmide social brasileira?

Bolívar: No último quarto de século, a exemplo do que ocorreu em praticamente todos os países emergentes, houve um intenso processo de mobilidade social vertical. Não só a mobilidade individual que constitui um campo tradicional de estudo dos sociólogos, mas mobilidade também estrutural, de toda uma camada, em decorrência de processos econômicos poderosos, como a abertura das economias, uma fase de vigoroso crescimento da economia mundial e, no caso brasileiro, o controle da inflação e a consequente expansão do crédito. Em vez dos integrantes da classe média tradicional, que apenas almejavam reproduzir o status dos pais, num universo mais ou menos estático, os da “nova” classe média têm a ambição de “subir na vida”, viver melhor, consumir mais e, portanto, aprender e se qualificar a fim de gerar a renda consentânea com essa forma de viver. É pois de estratificação e mobilidade que falamos. Mesmo mobilidade é misleading, pois não se trata de mobilidade individual. O que há é uma grande estrutura mudando, e isso num mundo que vem passando por mudanças acentuadas há várias décadas.

Jessé: O crescimento econômico brasileiro beneficiou tanto os setores superiores e privilegiados quanto os populares. Mas o crescimento mais dinâmico veio da “parte de baixo” da sociedade brasileira, o que mostra o efeito positivo para todos – inclusive para os setores privilegiados que ganham e muito com o novo quadro econômico – de políticas simples como o Bolsa Família e o microcrédito. O desafio para a transformação efetiva da “pirâmide” em “losango”, onde as camadas médias, pelo menos quanto à renda, são maiores que as de baixo e as de cima, implica manter aumentos reais do salário mínimo e aprofundar a política social. Existe um “núcleo duro” da “ralé” – nome provocativo para denunciar o abandono de uma classe que nem sequer é notícia fora das páginas policiais – que precisa de muito mais que estímulos econômicos tópicos e passageiros para ser incluída no mercado competitivo.

O conceito de classe média não é consensual nas ciências sociais. Que características aproximam e distanciam essa nova camada da definição clássica de classe média?

Jessé: Não é apenas o conceito de classe média, o próprio conceito de classe social é percebido superficialmente no debate público. Isso porque uma adequada compreensão do processo de formação das classes permite a crítica do princípio social mais importante para a legitimação de todo tipo de privilégio injusto das sociedades modernas: o princípio da meritocracia. O privilégio injusto nessas sociedades é travestido como justo porque ele é percebido como fruto do “desempenho individual extraordinário”. Uma correta percepção dos “emergentes”, no entanto, exige que percebamos o “tipo humano”, com dramas, tragédias, sonhos e capacidades singulares, específico dessa classe. Não basta quantificar sua renda. É necessário comparar essa nova classe tanto com as classes médias “verdadeiras” quanto com os desclassificados sociais, que chamo de “ralé” para denunciar seu abandono. Os “emergentes” ou “batalhadores” não possuem nenhum dos privilégios de nascimento da classe média verdadeira. Mais especialmente o tempo livre que permite a apropriação do conhecimento útil e valorizado chamado por Pierre Bourdieu de “capital cultural”, que caracteriza a classe média verdadeira. Se a apropriação privilegiada de “capital econômico” marca as classes altas, é a apropriação privilegiada de “capital cultural” que marca as classes médias modernas.

Bolívar: A pergunta suscita a clássica discussão entre as sociologias marxista e weberiana. No marxismo, o conceito de classe tem dois componentes principais. De um lado, certa homogeneidade de condições, e portanto coesão, consciência de si, capacidade de agir coletivamente. Do outro, uma posição comum na estrutura de produção. Especificamente em relação às camadas médias – ou à “pequena burguesia”, como os marxistas as designavam, torcendo o nariz –, fazia-se também uma profecia: a de que elas estariam condenadas a definhar, ensanduichadas entre a burguesia e o proletariado. Já a sociologia weberiana concebe as classes como agregados sociais que raramente chegam a se tornar conscientes e a agir de maneira unitária no campo político. Os membros de uma classe se definem em função de recursos como a educação, o conhecimento especializado, disponibilidades patrimoniais, etc – valorizáveis nos diferentes “mercados sociais”. A ótica weberiana pensa em camadas sociais que não encolhem, ao contrário, se expandem à medida em que o capitalismo avança.

Em diferentes momentos da história, as classes médias assumiram posições progressistas ou retrógradas. Como essa nova classe emergente poderá se portar politicamente?

Jessé: Os “batalhadores” não são uma classe homogênea. Nem sequer se percebem como classe. Estamos adentrando um terreno novo que ainda exige estudo e reflexão. O que pude perceber em minha pesquisa são resultados díspares e heterogêneos. Ainda que a ideologia do “mérito individual” tenha convencido, por razões compreensíveis, parcelas ponderáveis dessa classe, o que a aproxima das classes médias “verdadeiras”, a maioria dos batalhadores se mostrou sensível e favorável aos programas sociais de distribuição de renda – com uma sensibilidade social maior que nas classes do privilégio. A direção política que a classe emergente vai tomar é, portanto, uma luta em aberto. Ela tanto pode ser colonizada pelas classes dominantes economicamente dinâmicas, politicamente conservadoras e socialmente irresponsáveis que caracterizam a sociedade brasileira, como se transformar num protagonista novo, uma “luz no fim do túnel” que sirva de inspiração e exemplo para o exército de abandonados sociais no Brasil. De qualquer modo sua função de fiel da balança tanto da economia quanto da política brasileira no futuro próximo parece certo.

Bolívar: Descartemos, desde logo, a ideia de um comportamento rigorosamente unitário, afinal estamos falando de um agregado com mais de 40% da população. Segundo, descartemos o determinismo que ainda assombra o imaginário de alguns sociólogos. Se as novas classes médias necessariamente devessem se comportar de um jeito ou de outro, o ponto de vista expresso por FHC não faria sentido. De duas, uma: elas seriam inacessíveis ao apelo da oposição ou já a estariam apoiando. Nem uma coisa nem outra. Trata-se de um terreno contestado, como tudo na vida política. Depende da agenda política. Basta lembrar que elas contribuíram maciçamente para a vitória de FHC em 1994 e 1998 e para as de Lula em 2002 e 2006.

Observadores do Congresso notam a presença cada vez maior de sindicalistas na representação parlamentar. Que consequências isso traz à estrutura social brasileira?

Bolívar: De fato, esse é um fenômeno apontado por diversos observadores, como Leôncio Martins Rodrigues. É um processo perfeitamente normal, que acontece em todas as democracias capitalistas avançadas. Quer isso dizer que tais lideranças vão exercer seus mandatos de uma maneira estreitamente fiel aos trabalhadores de menor renda, ou consentânea com interesses legítimos da sociedade como um todo? Aqui, vamos devagar com o andor. Lembremos, para começo de conversa, que os sindicatos brasileiros continuam em geral gostosamente acomodados na estrutura corporativista implantada ao tempo da ditadura Vargas. Lembremos também a profecia de Robert Michels no clássico Os Partidos Políticos, de 1908. O autor previu que mesmo nos partidos socialistas a tendência seria a de os sindicalistas se incrustarem na alta burocracia, formando uma espécie de “nova classe”. No Brasil, não faltam sinais disso. Como bem lembrou FHC, o governo Lula “aparelhou” a máquina do Estado e cooptou as principais centrais sindicais.

Jessé: Dentro de certas circunstâncias excepcionais o Congresso e especialmente o Executivo no Brasil podem mudar a realidade social e política. Em condições normais, no entanto, a política de “verdade”, que estipula quem ganha e quem perde na competição social, é realizada fora dos órgãos representativos. O Estado não é o único centro da vida política, ainda que seja o “teatro” para o qual todas as luzes apontam. No novo tipo de capitalismo financeiro hoje hegemônico, por exemplo, boa parte da política é transformada em “questão técnica” e aplicada como necessidade econômica. A tentativa, aliás muito bem-sucedida, de se vincular a determinação da taxa de juros entre nós unicamente ao combate à inflação serve para travestir o interesse particular de financistas. Nesse sentido, ganhar a esfera pública e a mídia significa selecionar os assuntos que se tornam pauta política e ridicularizar opiniões contrárias. Um poder maior que o de qualquer bancada no Congresso. A demonização do Estado como ineficiente, politiqueiro e corrupto – como se o mercado fosse o oposto disso – serve, do mesmo modo, para transformar as esferas sociais, como a educação e a saúde, que deveriam independer da sorte ou do azar da classe de nascimento e ser acessível a todos, em esferas de lucro privado.

No artigo, FHC diz que ‘enquanto o PSDB e seus aliados persistirem em disputar com o PT influência sobre os movimentos sociais ou o povão, isto é, sobre as massas carentes e pouco informadas, falarão sozinhos’. É uma avaliação que faz sentido?

Bolívar: Eu assino embaixo, e uma de minhas razões está no que acabo de dizer: o governo Lula praticamente transformou os sindicatos e o petismo em apêndices do Estado, ou seja, numa máquina que se vale dos recursos do Estado para manter um quase monopólio político sobre a classe trabalhadora tradicional e a massa pobre.

Jessé: É uma avaliação brilhante, ainda que seja preconceituosa e mostre o perverso “racismo de classe” que perpassa as classes do privilégio no Brasil, as quais FHC representa tão bem. Ela é brilhante, posto que pragmática e óbvia, procurando concentrar esforços e focar sua mensagem para uma clientela em relação à qual um partido liberal como o PSDB tem boas condições de convencer. É a mensagem do “mérito” percebido como esforço individual, que já critiquei e vê como preguiçoso e burro – as massas “pouco informadas”, no eufemismo de FHC – todo aquele que sofre humilhações e experimenta não reconhecimento e invisibilidade social desde que nascem. Na Europa os partidos conservadores manipulam o ódio aos imigrantes. Entre nós se manipula o “racismo de classe” contra os pobres, percebidos como sanguessugas de uma ordem social que, na verdade, os produz e reproduz como párias sem chance na competição social por recursos escassos.

Aécio relativizou a estratégia de FHC se dizendo ‘mais otimista’ na capacidade de o PSDB atrair o eleitor de baixa renda. Já o presidente do PPS, Roberto Freire, considerou o artigo ‘equivocado’...

Bolívar: No que toca ao senador Aécio Neves, fico contente em saber que ele está relativamente otimista. Tomara que esteja certo. Quanto à reação do Roberto Freire, um líder político por quem tenho imenso respeito, não há muito que eu possa acrescentar ao que já falei. A meu juízo, a análise de FHC não é equivocada.

Jessé: A avaliação de FHC é muito mais honesta, sincera e inteligente. É a mesma estratégia do Partido Liberal alemão, por exemplo, que passou de partido nanico a partido formador da coalizão de governo usando o mesmo tipo de discurso e se dirigindo ao mesmo tipo de público que FHC agora preconiza e defende. Em um país sem história de lutas sociais que tenha logrado institucionalizar com sucesso princípios como responsabilidade social e republicanismo, como o nosso, esse tipo de discurso tem amplas condições de sucesso.

A nova presidente tem sido criticada no que diz respeito ao combate à inflação. Mesmo assim, há alguns dias, na contramão dos que pedem um aperto maior nos juros, ela reafirmou que deseja reduzi-los ao longo do mandato. Sinaliza na direção da nova classe?

Jessé: Sem dúvida. Essa classe prosperou em grande medida graças ao crédito farto e facilitado tanto para seus pequenos negócios quanto para seu consumo pessoal. A luta política – a qual se traveste mais do que nunca em “questão técnica” de racionalidade econômica dado que os interesses mais particulares nunca podem se mostrar pelo seu nome verdadeiro – opõe o setor rentista que vive de juros, que é a fração dominante no novo tipo de capitalismo hegemônico aqui e no mundo todo, e a esmagadora maioria da população, que tem interesse por juros não escorchantes.

Bolívar: Bem, não sou expert no pensamento econômico da presidente. Ela por certo não ignora o tamanho da pressão inflacionária que está se formando. Volto ao que dizia no início de nossa conversa. A gestão dela começou bem avaliada mais em função de expectativas que de medidas efetivas. Ela pode demorar a tomar as medidas necessárias por não levar a inflação tão a sério como seria desejável, ou por não se sentir com força política suficiente, ou por querer cortejar a “nova classe média”.

O estilo gerencial de Dilma agrada mais aos emergentes? Quando FHC chama a atenção para o risco de a presidente ‘envolver parte das classes médias’ manifesta o temor de que o lulo-petismo conquiste hegemonia política em todas as camadas do eleitorado?

Bolívar: No que se refere a uma aceitação potencialmente maior de Dilma que de Lula, eu concordo. É um risco? Claro que é. Não existe política sem riscos. O que há é sempre um terreno em disputa.

Jessé: Acho difícil que o PSDB perca sua hegemonia nesses setores. A gestação das ideias que opõem mercado a Estado como uma oposição da virtude em relação ao vício tem larga tradição e prestígio entre nós. Também na esfera pública a hegemonia dessas ideias é praticamente absoluta. Tanto que existe grande afinidade entre setores do PT e do PSDB na política econômica. É preciso compreender a política em sentido mais alargado que o campo dos políticos profissionais para compreender quem e quais visões de mundo detêm hegemonia numa sociedade.

A ascensão da ‘nova classe média’ é menos visível em termos educacionais. Terão os emergentes condições para pensar os problemas do País e avançar na construção de uma sociedade mais democrática e justa?

Jessé: Por trás da afirmação de FHC acerca das classes “pouco informadas” está o preconceito comum de que apenas quem tem acesso à cultura livresca pode ter uma concepção adequada e crítica do mundo. Nada mais longe da verdade. A maior parte dos livros, científicos ou não, reproduz uma percepção afirmativa e acrítica do mundo e produzem mero re-conhecimento e não efetivo conhecimento. Os pobres não são tolos e identificam muito bem seu interesse real. Claro que tempo de leitura e educação aprofundada são importantes, coisas a que os “batalhadores” têm bem menos acesso do que a classe média privilegiada. Mas essa não é a única variável importante. Para uma melhor educação política de um povo, o fator que mais pode contribuir é o acesso a uma esfera pública plural, onde toda a gama de opiniões divergentes tenha o direito de expressão livre.

Bolívar: Essa é uma pergunta relevante, pois há muita gente batendo o bumbo do grande avanço social e quase ninguém discutindo a sustentabilidade desse processo. Consumir é ótimo, mas cada família tem de gerar renda para financiar seu consumo. No mundo atual, a educação é um ponto crítico, e não preciso comentar a situação catastrófica da educação brasileira. Lula cantou aos quatro ventos o fato de ter criado 13 novas universidades. Formidável, mas a melhor universidade do País ocupa o 234º lugar no ranking mundial.

FONTE: ALIÁS/O ESTADO DE S. PAULO

Classe média vai pautar eleições, afirmam analistas

Para especialistas, questão levantada por FHC em artigo sobre como fisgar emergentes será determinante no futuro dos políticos

Gabriel Manzano

A "nova classe média", trazida ao centro do debate político pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, na semana passada, e namorada pelo PT, que vê na presidente Dilma Rousseff a figura talhada para conquistá-la, chegou para mudar o cenário eleitoral do País, admitem analistas, marqueteiros e estudiosos.

O tema apareceu no artigo O Papel da Oposição, divulgado por FHC, e reforçou a condição desse grupo como objeto de desejo do mundo político. É um vasto universo de 29 milhões de pessoas - pobres que, nos últimos seis anos, subiram da classe D para a C e carregam consigo novos comportamentos e expectativas. Analistas, líderes partidários, comunicólogos e marqueteiros já se esforçam para entender como reagirá, no futuro, esse segmento que, ao subir na vida, fez da classe média o maior grupo social do País, com 94 milhões de pessoas (51% da população).

"Não se trata de gente sem nada, que aceite qualquer coisa. É gente que trabalhou duro, subiu, sabe o que quer, tem mais informação e se torna mais exigente", resume Marcia Cavallari, diretora executiva do Ibope. "Isso merece um discurso novo e FHC acertou ao mandar a oposição ir atrás dela", disse.

Não por acaso, o economista Marcelo Néri, da Fundação Getúlio Vargas - primeiro a detectar esse fenômeno, num estudo de 2010 - considera essa iniciativa de Fernando Henrique "a segunda ideia mais inteligente da oposição em anos, depois do plano de estabilização dos anos 1994-2002". Esse brasileiro, diz ele, "quer sonhar, e não apenas diminuir seus pesadelos".

O impacto desse cenário já se faz sentir no mundo político, que ainda procura entender a enorme votação da candidata Marina Silva (PV) nas eleições presidenciais de 2010. "Mas é perda de tempo tentar adivinhar se é um grupo de esquerda ou de direita", observa Antonio Prado, sócio-diretor da Análise, Pesquisa e Planejamento de Mercado (APPM), em São Paulo.

Oportunidades. Grande parte desses emergentes, afirma Prado, "são cidadãos que tomaram iniciativas, buscaram créditos, tornaram-se microempresários". Seus filhos estão entrando na universidade via ProUni. "Como trabalhadores, não querem um Estado que os tutele, mas que lhes dê oportunidades para crescer." E como cidadãos, continua o analista, eles esperam "que haja ordem na sociedade, para nenhum malandro lhes passar a perna" - afinal, esforçaram-se demais para chegar aonde chegaram. Dos políticos, esse eleitor espera "coerência e dedicação ao bem comum".

Para quem imagina que isso tudo tem um certo jeito de direita, Prado avisa que "esse brasileiro já foi pobre e percebeu que uma tarefa prioritária do Estado é atacar as desigualdades". Ou seja, a nova classe é a favor dos programas sociais.

A vendedora Solange Ferreira Luz, moradora da periferia de São Paulo, é um exemplo típico desse novo eleitor mais informado e mais exigente. "Minha maior preocupação é a escola de meus dois filhos", diz ela. Tanto que juntou dinheiro para comprar um computador e prefere que eles estudem em escolas técnicas estaduais, que lhe parecem melhores que as municipais.

Para esse eleitor, perde peso o discurso sobre "a elite de 500 anos" ou o neoliberalismo. O que lhe interessa mais, lembra Marcia Cavallari, "é que há empregos e ele não tem preparo para se candidatar a muitos deles. Então, a qualidade do ensino se torna um fator decisivo para sua vida, para ele aprender e subir. E ele quer que seus filhos cheguem à universidade e tenham uma vida melhor que a sua. Isso torna inevitável, em próximas eleições, o debate qualificado sobre o nível da educação no Brasil."

Pode-se estender essa nova percepção a outros setores. "Para esses emergentes sociais, é tudo novidade. Ele já faz viagens de avião - e os aeroportos estão como estão. O filho na universidade saberá avaliar melhor o nível da educação", compara Renato Meirelles, diretor do instituto Datapopular, que faz estudos sobre o mercado popular no Brasil. Ele menciona, a propósito, pesquisas segundo as quais 68% dos filhos, na classe C, estudaram mais que os pais. Na classe A, esse percentual é de apenas 10%.

Ralé e batalhadores. Os limites desse cenário, no entanto, não podem ser ignorados. Primeiro, porque os "novos" se juntam a uma enorme classe média e podem, é claro, assimilar seus projetos e valores no dia a dia. Esse termo, nova classe média, "designa setores que ampliaram sua capacidade de consumo", adverte Leôncio Martins Rodrigues, "mas não define especialmente um novo segmento social".

O sociólogo Jessé Souza até se recusa a admitir que exista uma nova classe média: existem o que ele chama de "batalhadores", uma multidão que tanto poderá ser "cooptada pelo discurso e pela prática individualista", como "assumir um papel protagonista e ajudar a ‘ralé’ - as massas desassistidas". O próprio Fernando Henrique afirma também que uma classe implica um estilo de vida, valores, e prefere falar de "novas categorias sociais".

Marcelo Néri destaca, também, que "nem política nem economicamente há nada conquistado nesse público - nem pelo PT nem pelas oposições". Além disso, "todos podem perder com a inflação, se ela voltar, e também com o desemprego".

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Classe média, povão e lorota :: Gaudêncio Torquato

Com sua acurada visão, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso quis indicar um rumo aos correligionários, mas acabou produzindo um charabiá, ou seja, uma baita confusão na esfera política. Em polêmico artigo para uma revista, propôs que as oposições invistam na nova classe média, arrematando com a tese de que, "se o PSDB e seus aliados persistirem em disputar com o PT influência sobre os movimentos sociais ou o povão, isto é, sobre as massas carentes e pouco informadas, falarão sozinhos". Nem bem teve tempo para detalhar o pensamento, o sociólogo passou a ser bombardeado. Afinal de contas, que partido se pode dar ao luxo de desprezar "o povão"? A indagação resume o ponto de vista de parceiros como o senador Aécio Neves, que desponta como a maior liderança tucana, para quem o PSDB deve se aproximar de "várias camadas sociais". Como sói ocorrer por estas bandas, a algaravia tomou corpo pelo costume de derrubar argumentos sem avaliar os escopos que traduzem. Ora, para julgar o dito do ilustrado tucano pelo menos dois conceitos precisariam ser postos à mesa de discussão: partido e classe média.

Partido é parcela, parte, pedaço. Sob esse significado, o ente partidário representa fatia da sociedade. É impraticável que seja escoadouro de demandas de todas as classes e grupamentos. Quando, em seus programas, as siglas vocalizam um discurso em defesa da sociedade como um todo, estão apenas cumprindo o ritual de enaltecimento do ideário da liberdade, da igualdade e dos direitos dos cidadãos. São porta-vozes de preceitos e valores das Cartas Magnas das nações. Já para efeito de conquista do poder, sua meta finalista, o partido deve selecionar focos entre classes sociais, grupamentos ou comunidades, para os quais e com os quais estabelece programas, projetos, ações e relações. Se esse ordenamento não é seguido à risca, como se sabe, o motivo é a crise crônica que assola a democracia representativa em todo o planeta, cujos reflexos se projetam sobre a fragilidade partidária, a pasteurização das doutrinas, a desmotivação das bases e a descrença geral nos políticos. A se considerar tal configuração, a tese de Fernando Henrique faz sentido.

A morfologia partidária clássica também reforça seu ponto de vista. Maurice Duverger, em 1951, formulou duas modalidades: partidos de quadros e partidos de massas. Os primeiros não visariam a agrupar contingentes numerosos, e, sim, grupos de notáveis, representantes das elites sociais. Os segundos teriam como foco as massas, o que demandaria mobilizações voltadas para um recrutamento maciço. A classificação não resistiu às avalanches que se abatem sobre a política e, na corrente do desvanecimento ideológico, multiplicaram-se as organizações que tendem a substituir o prisma doutrinário pela estratégia de capturar diversos eleitorados a qualquer custo. Surgiram, então, os entes que o cientista social Otto Kirchheimer chamou de "catch-all parties" ("agarra tudo o que puderes"). Em termos de Brasil, não há dúvida que esse modelo parece o que melhor se ajusta à estrutura partidária. Apesar disso, o PSDB dos tucanos exibe certa semelhança com os partidos de quadros. Não por acaso, é conhecido como agremiação de "muito cacique e pouco índio". Novamente ganha força a tese de Fernando Henrique, eis que é mais prático dialogar com determinado segmento do que motivar as massas assentadas na base da pirâmide social.

Ademais, é sabido que, nos últimos anos, a teia social - iniciada no ciclo FHC e intensamente reforçada no ciclo do lulopetismo pelos programas de distribuição de renda e acesso ao crédito e ao consumo - consolidou os vínculos entre "o povão" e o sistema governista e, consequentemente, com seus partidos aliados. Fortes barreiras afastam as oposições das margens carentes. E assim a abordagem do ex-presidente se vai firmando. Neste ponto, convém levantar o véu da classe média. Depois da vitamina distributivista do governo Lula, cerca de 30 milhões de brasileiros ingressaram na classe C, reduto considerado como a nova classe média. Seria esta nova classe a biruta para indicar aos partidos o caminho do vento? Analisemos a questão sob a planilha do professor Waldir Quadros, do Instituto de Economia da Unicamp, que estuda a dinâmica dos três degraus das classes médias. Ao transformarem a pirâmide social num losango, passaram a ser a maior classe social do País. O especialista aponta três conjuntos que a integram: a alta classe média (7,7% da população), a média (13,2%) e a baixa (38,8%). Além destas, temos na base a massa trabalhadora (30,7%) e os miseráveis (9,7%). Nesse modelo de estratificação, o primeiro grupo corresponde à classe A de outras metodologias. Pois bem, só esse grupo teria pleno acesso a um padrão de vida considerado satisfatório. Os conjuntos médio e baixo das classes médias - somando 52% da população - defrontam-se com grandes carências nas áreas de saúde, educação, saneamento, habitação, transporte coletivo, segurança, etc.

Esses são os aglomerados que clamam pela atenção dos partidos. Aspiram a conquistar as boas coisas que o núcleo mais elevado da classe já possui: planos de saúde mais abrangentes, acesso à educação de qualidade, moradias satisfatórias, transporte particular, academias de ginástica, alimentação saudável, cursos de idiomas, viagens, cultura, lazer, etc. Há, ainda, um fator que confere às classes médias - principalmente ao nível mais elevado - extraordinária significação: a capacidade de irradiar influência. Daí provém a imagem de pedra jogada no meio do lago. As marolas que produzem - demandas, clamor, expectativas, pressão - chegam até às margens. Essa condição sui generis não pode passar ao largo do sentimento de partidos e políticos, e certamente nisso pensou o ex-presidente Fernando Henrique. Que não iria gastar seu sociologuês à toa. Assim, a intenção dos políticos de capturar o "povão" só tem uma explicação: demagogia. Ou mesmo lorota.

Jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação

FONTE:: O ESTADO DE S. PAULO

Acesso à informação :: Merval Pereira

A moderna democracia digital, que permite que a sociedade acompanhe passo a passo a atuação dos funcionários públicos e, por conseguinte, dos governos como um todo, precisa de uma legislação de acesso à informação, ferramenta indispensável para o exercício de uma democracia moderna.

Assunto que mobiliza todos os governos através do mundo, especialmente depois do surgimento do Wikileaks, especializado em vazar documentos secretos, a legislação de acesso à informação pública está recebendo por parte do novo governo brasileiro um tratamento digno de sua importância.

A presidente Dilma Rousseff deve aproveitar o dia internacional de liberdade de imprensa, 3 de maio, para sancionar a nova lei de acesso a documentos públicos, que deve ser um marco no desenvolvimento da democracia brasileira.

Quando o presidente Barack Obama esteve no Brasil, autoridades brasileiras já haviam feito vários contatos com a Casa Branca a respeito do assunto, e o governo americano já havia identificado o Brasil como um potencial sócio numa iniciativa global intitulada "Parceria por um governo aberto".

Um dos primeiros atos de Obama quando assumiu a Casa Branca foi publicar um memorando chamado "Transparência e governo aberto", que afirmava o comprometimento da sua administração em criar um nível sem precedentes de transparência no governo, garantir a confiança pública e estabelecer um sistema de participação e colaboração.

O site www.data.gov lançado pela administração federal dos EUA é consequência dessa política. No ar desde 2009, é um repositório de dados oficiais e permite o desenvolvimento de aplicativos por terceiros. Atualmente, existem mais de 600 aplicativos de utilidade pública desenvolvidos por programadores externos.

O projeto é que os presidentes Dilma e Obama lancem essa iniciativa global, que reunirá mais de 70 países, em setembro, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova York.

Uma das novidades da legislação é acabar com a proteção de sigilo eterno para alguns documentos, como existe hoje através de uma legislação assinada nos últimos dias do governo Fernando Henrique - da qual ele se arrependeu publicamente - que foi muito criticada pelos petistas, mas acabou mantida pelo próprio Lula.

A nova legislação prevê um máximo de 25 anos para documentos classificados como ultrassecretos, com a possibilidade de apenas uma renovação pelo mesmo prazo.

Apesar de ter iniciativas importantes nessa área, o Brasil ainda está muito atrasado. Um estudo da consultoria Macroplan, já referido aqui na coluna, identificou, na categoria interatividade e participação, um site da Câmara dos Deputados do Brasil, o e-democracia, como um dos destaques de informação digital, ao lado do inglês Nº 10 e-petitions e TID +, da Estônia.

O site brasileiro é um espaço virtual criado para estimular cidadãos a contribuir para o processo legislativo federal por meio do compartilhamento de ideias e experiências.

Entre outras coisas, o e-democracia permite aos usuários apresentar normas legislativas, construídas de forma colaborativa para subsidiar o trabalho dos deputados na elaboração de leis.

Esse levantamento feito pela Macroplan, em parceria com pesquisadores do Instituto Universitário Europeu (Florença, Itália), mostra o Brasil na 55ª posição no ranking mundial dos governos eletrônicos, junto com Índia e China.

Publicado pelo Centro Global de Tecnologia da Informação e Comunicação em Parlamentos, das Nações Unidas, o estudo identifica que o Brasil ainda tem um longo caminho pela frente na construção da democracia eletrônica.

O mais difícil não é aprovar a legislação, mas mudar a cultura brasileira em relação a governo aberto, diz Rosental Calmon Alves, professor brasileiro da Universidade do Texas em Austin, especialista em novas tecnologias e um dos incentivadores da nova lei através do Centro Knight para o Jornalismo nas Américas, do qual é diretor.

Em parceria com a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e ONGs foram realizados seminários para discutir o assunto até que o tema fosse assumido pelo governo.

Rosental diz que a dificuldade existe não só da parte do governo propriamente, o que sempre acontece, mas também da sociedade brasileira. "Nossa herança ibérica é de secretismo, respeito à autoridade, sem argui-la. Enquanto a sociedade anglo-saxônica é mais baseada no indivíduo, a nossa é baseada na instituição e na autoridade".

O México saiu de uma política de secretismo quase soviética para ter a legislação mais avançada do mundo. O país é tão aberto que qualquer pessoa pode requerer qualquer documento, mesmo assinando um pseudônimo, sem se identificar. A pressuposição é que os documentos governamentais devem ser públicos.

O livre acesso à informação pública pressupõe que os sites tenham informações relativas às despesas da instituição, como salários de pessoal, gastos ou processos de licitação que devem ser apresentados de maneira mais detalhada e acessível possível.

Rosental Calmon Alves diz que, na realidade, os jornalistas são os que menos usam essas informações nos Estados Unidos, por que o que interessa mesmo é o dia a dia dos cidadãos, que começam a se utilizar da legislação para defender seus direitos, os advogados começam a usar, os lobistas começam a usar. Para ele, tudo se resume a "uma questão de exercício de cidadania".

"A possibilidade de requerer acesso aos documentos públicos muda as regras do jogo", ressalta Rosental.

FONTE: O GLOBO

Mulheres na política:: Dora Kramer

Uma das perguntas que mais se fazem a uma mulher que tem a política como instrumento de trabalho é a razão pela qual o público feminino não está representado no Congresso, nas Assembleias Legislativas e nas direções partidárias na proporção adequada à força quantitativa de seu voto.

Escolher um motivo e a partir dele tentar desvendar essa questão é impossível, dada a gama de causas objetivas e subjetivas envolvidas. Mas uma coisa é certa: a desproporção indica que há correções de rumo a serem feitas, e urgentemente, sob pena de a democracia brasileira perpetuar uma deformação que põe em xeque a própria legitimidade da representação.

O público feminino hoje no Brasil representa 52% do eleitorado. No entanto, as deputadas são 9% da Câmara, as senadoras 15% e as deputadas estaduais em média têm presença de 12% nas Assembleias Legislativas.

Nesse ritmo, pesquisa do demógrafo José Eustáquio Diniz garimpada pela senadora do PT do Paraná, Gleisi Hoffmann, indica que as mulheres brasileiras levariam 207 anos para alcançar, nos Legislativos, condição de igualdade já obtida em vários setores.

Gleisi é a favor do sistema de cotas para mulheres nos partidos, mas não como vem sendo aplicado, na forma de reserva de vagas para registro de candidaturas. Na opinião dela, o modelo ideal é o que consta na proposta de reforma política a ser examinada pelo Senado: cotas nas cadeiras a serem ocupadas, 50% para homens, 50% para mulheres.

Quanto às razões da baixa participação e representação das mulheres na política, a senadora aposta num conjunto de fatores: resistência dos homens em dividir o poder, um acentuado grau de misoginia (aversão às mulheres) dos políticos quando se trata de compartilhar a profissão, discriminação histórica, imposição de obstáculos que impedem as mulheres de adquirir prática e com isso melhorar o desempenho.

"As regras não são iguais, por isso as cotas me parecem o caminho mais adequado", diz, baseada na experiência do PT, onde a presença feminina na base era ampla, mas ínfima no diretório nacional. O cenário mudou e hoje os 30% de vagas reservadas às mulheres estão ocupados.

Além de adequação da representação à proporção do eleitorado, Gleisi Hoffmann aponta um dado essencial para que se abra o caminho da paridade: "Questões essenciais para mais da metade da população estão sendo decididas pela parte minoritária".

Precedentes. Todo mundo se lembra do deputado "motosserra" Hildebrando Pascoal. Menos gente, mas certamente muitos se lembram do deputado Talvane Albuquerque.

Ambos foram cassados em 1999 por crimes ocorridos antes de assumirem seus mandatos. Hildebrando, por homicídios cometidos quando era coronel da Polícia Militar do Acre, e o alagoano Talvane, pela acusação de ser mandante do assassinato da deputada Ceci Cunha em dezembro de 1998, depois da eleição e antes da posse, para assumir como suplente o mandato dela.

O entendimento do Conselho de Ética da Câmara de que não se pode cassar parlamentares por atos anteriores ao mandato em curso foi obra do atual ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Em 2007, quando era deputado, usou o argumento e instituiu a "doutrina" para salvar mensaleiros descobertos em 2005 e reeleitos em 2006.

Hoje a "jurisprudência" é usada pela defesa da deputada Jaqueline Roriz, filmada recebendo R$ 50 mil do operador de um esquema de corrupção montado no governo de Brasília, quatro anos antes de obter mandato federal.

O senador Aloysio Nunes Ferreira lembra-se bem, pois era deputado quando do julgamento dos casos de Hildebrando Pascoal e Talvane Albuquerque, atuando em um deles como relator e no outro como integrante da Comissão de Constituição e Justiça.

"O decoro é atemporal e se a Câmara concluir que um de seus integrantes é indigno de compor o colegiado por ações presentes ou passadas tem o dever de excluí-lo", diz Aloísio.

Para isso, contudo, é preciso que o Poder Legislativo considere que ainda tenha alguma reputação a zelar.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Adeus, Fidel; adeus, silêncio? :: Clóvis Rossi

A América Latina despede-se hoje de Cuba como a conheceu no último meio século e que foi incorporada à memória sentimental do subcontinente, para ser amada ou odiada.

O 6º Congresso do Partido Comunista Cubano aprovará reformas econômicas que transformarão a ilha caribenha. Não se pode, impunemente, cortar a quinta parte dos postos de trabalho. Nem criar do nada impunemente um setor privado, mesmo limitado.

Marco Aurélio Garcia, o assessor diplomático de Dilma Rousseff, voltou de recente viagem à ilha convencido de que às reformas econômicas que serão lançadas hoje seguir-se-á a prazo relativamente curto a reforma política.

O Brasil, aliás, está sendo partícipe das reformas, embora involuntário. Financia a construção do porto de Mariel, que, segundo Marco Aurélio, só tem sentido se for para exportar para os Estados Unidos. Se é assim, implica o restabelecimento de relações, com todo o cortejo de consequências.

Espero que uma das consequências seja o fim do silêncio sobre Cuba por parte da intelectualidade de esquerda, tema de ensaio de Claudia Hilb, socióloga argentina, lançado pela Paz e Terra.

Claudia, militante de esquerda quando a revolução cubana incendiou corações, lamenta agora o silêncio, que atribui à ilusão de que haveria uma "parte boa" do legado revolucionário, qual seja o nivelamento social, dissociada da "parte ruim", a ditadura, "o domínio total do Estado sobre a sociedade.

A socióloga contesta a tese: "O processo de nivelamento das condições [sociais] e o processo de constituir uma forma política com vocação de dominação total são indissociáveis", diz ela.

Na hora em que a esquerda continua sob os escombros do Muro de Berlim, começa a cair mais um muro. Talvez seja a hora de construir algo com tantos tijolos.

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

A verdade:: Eliane Cantanhêde

O artigo autobiográfico do economista Persio Arida na revista "Piauí" é uma preciosidade. Num texto primoroso, ele coloca as coisas no seu devido lugar, mostrando os erros horrendos dos militares da época, mas também reconhecendo o quão equivocada foi a luta armada. Não apenas na tática, mas igualmente nos propósitos.

Sem querer, Persio dá um roteiro impecável para a Comissão da Verdade que tramita no Congresso e se propõe a reconstituir a história como ela é, pelo lado que ganhou à época e pelo que ganhou agora.

Ali estão, contados com a serenidade possível, praticamente dispensando adjetivos, a sua prisão, a tortura, a asfixia pela asma não medicada, o impacto do assassinato do militante Bacuri. É o que a esquerda quer da comissão.

Mas ali está igualmente uma reflexão madura, honesta e corajosa sobre os erros da militância armada -e avaliação, execução e objetivo. E é isso o que os militares reivindicam da comissão.

Ao falar sobre a luta armada, Persio lembra sua angústia ao finalmente admitir para si próprio: "O que teria acontecido com os direitos humanos se aquele movimento tivesse dado certo?". E responde: "Sua dinâmica continha o mesmo vírus que fez, em outros momentos da história, militantes de excepcional pureza revolucionária se transformarem, no poder, em mandantes de mortes em massa e de torturas. (...) O terror legitimado pela utopia revolucionária. Teríamos trocado seis por meia dúzia".

Então, vamos trucidar mais uma vez os militantes que já foram literalmente trucidados? Desdenhar dos que foram presos, torturados, humilhados e alquebrados? Não. Nem Persio o fez.

Sua conclusão, machadiana, diz tudo numa única frase: "A militância contribuiu, por vias tortas, para a volta da democracia -mas nisso se esgotara todo o seu sentido".

Eis uma boa reflexão para a história -não só a dele, mas a do país.

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

Os campeões :: Míriam Leitão

As notícias conversam. O JBS-Friboi foi escolhido pelo BNDES para ser o campeão brasileiro na produção de carne. Recebeu R$7 bilhões nos últimos três anos. Agora, foi acusado pelo Ministério Público do Acre de comprar carne de fazenda com trabalho escravo. A Bertin recebeu em três anos R$3,3 bilhões. Saiu da carne, entrou em energia e não consegue cumprir nenhum contrato.

Divulgadas no noticiário diário, as informações parecem não estar relacionadas. Juntas, elas contam que a estratégia do BNDES de escolher campeões para liderar setores no Brasil está fracassando, da mesma forma que fracassou nos anos 1970.

Inúmeros frigoríficos quebraram desde a crise de 2008 e haveria naturalmente uma concentração, mas o BNDES negou empréstimos a alguns e concentrou ajuda fabulosa em outros. O maior beneficiado foi o JBS-Friboi, ao qual o BNDES concedeu vários tipos de empréstimos, comprou debêntures e ações. Hoje, o banco tem 20% do capital da empresa, mas houve emissões de debêntures que o banco comprou quase 100% do que foi emitido.

Consolidação pode acontecer em qualquer mercado, principalmente depois de crises, mas o problema é que a ideologia do BNDES é de induzir a concentração para a formação de campeões nacionais em cada setor: grandes conglomerados. Esta era exatamente a ideia dos estrategistas da política industrial do governo militar. O projeto fracassou. A maioria dos escolhidos quebrou, se encolheu, foi comprada por empresas estrangeiras. Não é o Estado quem deve escolher quem é campeão; quem tiver competência que se estabeleça.

O frigorífico Independência foi o sinal avançado de que essa escolha de favoritos poderia fracassar: ele quebrou logo após o banco emprestar recursos e comprar ações da empresa.

O JBS com toda a montanha de ajuda deu prejuízo no ano passado, tem demitido funcionários, como aconteceu recentemente em Campo Grande, e suas ações despencaram. De primeiro de janeiro de 2010 até sexta-feira, a queda foi de 41,2%.

Um estudo de Antônio José Maristrello Porto e Rafaela Nogueira, do Centro de pesquisa em Direito e Economia da FGV-Rio, apontou "indícios de que os empréstimos fornecidos pelo BNDES possibilitaram a ampliação dos lucros dos frigoríficos à custa dos consumidores e dos produtores de carne brasileiros." Segundo artigo que os dois publicaram no "Estado de S.Paulo", na semana passada, estudos mostram que o setor teve "aumento de preço para o consumidor final e queda de preço recebido pelo produtor."

Tudo isso era para aumentar nossa presença no mercado internacional, tanto que o BNDES incentivou o JBS na compra de frigoríficos no exterior. No ano passado, caiu o volume de exportação de carne brasileira. Em volume, foi o pior resultado desde 2004. Em valor, subiu porque o preço ficou mais alto no mercado internacional. Segundo a Scot Consultoria, que acompanha o setor, o Brasil está exportando 15% menos do que em 2005.

A Bertin saiu do setor de carne, também dentro dessa estratégia de consolidação induzida pelo Estado. Ganhou concorrências no setor elétrico e foi incluída no consórcio que o governo organizou para disputar a hidrelétrica de Belo Monte. A situação atual da Bertin é a seguinte: ela não conseguiu concluir em tempo seis das térmicas cujas concessões ganhou; está enrolada em outras 15; saiu de Belo Monte e tem que pagar multa a Aneel.

O grupo Bertin recebeu do BNDES R$3,3 bilhões entre 2007 e 2009: R$800 milhões em financiamento e R$2,5 bilhões em operações no mercado de capital. Em 2009, o setor de carnes da Bertin foi comprado pelo JBS-Friboi, grupo que recebeu em três anos R$7 bilhões: um aporte de capital em 2007 no valor de R$1,1 bilhão, um segundo aporte de R$1,6 bilhão. Em 2009/2010 houve subscrição de debêntures no valor de R$3,4 bilhões. Além disso, houve outros financiamentos de R$395 milhões e R$580 milhões. Com a compra, o JBS assumiu todas as dívidas que o grupo tinha com o banco e o banco passou a ter 20% do JBS-Bertin.

A ação do Ministério Público do Acre é contra 14 frigoríficos pelos crimes de compra de gado de fazenda flagrada em trabalho escravo ou em fazendas que foram autuadas por desmatamento ilegal. Um deles é o JBS. A Ação do MP informa que as "guias de transporte animal" comprovaram que o JBS-Friboi comprou bovinos em 2009 e 2010 das fazendas de Gramado e Bella Alliança, no Acre, que "foram flagradas com a prática de exploração de trabalho análogo ao de escravo." A descrição das condições em que foram encontrados os trabalhadores é de envergonhar o país. Eles eram submetidos à moradia indigna, alimentação inadequada, água suja, anotações em caderno de compras, descontos em seus salários do material de segurança, trabalho com agrotóxico sem proteção. Isso cria uma situação absurda: o BNDES escolheu como campeão, emprestou e virou sócio de empresa que aceita essa prática ao comprar carne desses produtores.

No caso da Bertin, o governo agora vai chamar outras empresas para salvar os empreendimentos. A Petrobras está escalada para assumir as termelétricas que a Bertin não conseguiu concluir. A Vale, agora sob nova direção, foi escalada para salvar Belo Monte, assumindo a participação da Bertin no consórcio.

O BNDES reeditou a política industrial que deu errado nos anos 1970 e ela deu errado de novo. O governo vai admitir que errou ou continuar repetindo a mesma insensatez?

FONTE: O GLOBO

Tambor em outro ritmo:: Celso Ming

Em ambiente inédito (em muitos anos) de deterioração das expectativas e certa perda de credibilidade, o Comitê de Política Monetária (Copom) se reunirá nesta quarta-feira para redefinir o nível dos juros básicos (Selic), que hoje está nos 11,75% ao ano.

O contexto é de disparada dos preços. Se não for agora em abril, provavelmente em maio ou junho, a inflação medida em 12 meses terá saltado para além da meta expandida, ou seja, para além dos 6,5% toleráveis, já incluídos aí os dois pontos porcentuais de escape admitidos.

A perda de credibilidade ficou evidenciada pela divergência de projeções da inflação entre a autoridade monetária e o resto do mercado. Enquanto o Banco Central acena com uma inflação de 5,6% em 12 meses, os agentes econômicos, auscultados semanalmente pelo próprio Banco Central e divulgados pela Pesquisa Focus, vão trabalhando com números cada vez mais altos.

Essa quebra na capacidade de condução das expectativas pelo Banco Central é consequência, a um só tempo, de apostas de alto risco, incomuns entre autoridades monetárias, e da tentativa de forçar demais essas apostas para fazer a cabeça dos “marcadores de preços”.

Em vez de atuar como cão de guarda contra a inflação, o Banco Central do novo presidente Alexandre Tombini assumiu postura mais tolerante, que começa com os diagnósticos benevolentes a respeito da natureza da atual escalada dos preços internos.

Em vez de focar a disparada excessiva da demanda interna, o Banco Central comprou a tese do Ministério da Fazenda de que a alta de preços é preponderantemente causada pelo choque externo das commodities agrícolas, dando a entender que não há muito o que fazer para neutralizar suas consequências a não ser esperar que as cotações internacionais voltem espontaneamente a seu curso anterior.

Nessas condições, na sua comunicação com os agentes econômicos, tirou importância da criação “siliconada” de renda provocada pela disparada das despesas do governo federal nos dois últimos anos; insistiu prematuramente em que a atividade econômica está em franca retração – o que, até agora, não foi evidenciado; não pareceu impressionado pelo forte avanço dos preços do setor de serviços; minimizou os efeitos inflacionários provocados pela situação de praticamente pleno emprego no mercado interno; e deu excessiva importância ao impacto sobre os preços da forte expansão do crédito interno.

Parte da mesma síndrome, em vez de se concentrar nos instrumentos clássicos de contra-ataque à inflação, o Banco Central propagou as excelências dos instrumentos macroprudenciais, cuja função principal é melhorar a qualidade do crédito e da dívida externa e não submeter a inflação, embora possam ter subsidiariamente alguma proporção desse efeito.

Na maior parte destes primeiros 110 dias de governo, o Banco Central pareceu mais empenhado em conter o mergulho do dólar no câmbio interno do que em reverter a alta dos preços. (Sobre isso, veja o Confira.)

Há evidentemente alguma probabilidade de que o Banco Central esteja certo e os demais, errados. Mas no mister da condução das expectativas, da qual depende o sucesso do sistema de metas de inflação, não é isso que importa. Importa que o Banco Central está tocando seu tambor em ritmo diferente daquele em que vai marchando o resto do pelotão.

CONFIRA

É o juro alto demais. Em Pequim, a presidente Dilma Rousseff afinal concluiu que “enquanto não conseguir botar os juros para baixo, não há como evitar a valorização do real”.

E a inflação? Isso posto, é preciso baixar os juros. Só que não é possível baixá-los enquanto a inflação não for drasticamente derrubada. Segue-se que a quase única maneira de conter a inflação é praticar uma política de austeridade orçamentária.

Superávit nominal. Se o governo se comprometesse, sem deixar dúvidas, a obter um superávit nominal (incluídos os juros da dívida pública) equivalente a zero em pelo menos três anos, os juros cairiam naturalmente.

E o câmbio não se reverte. A opção é deixar tudo mais ou menos como está. Nessas condições, a inflação poderia até ser reencaixada na meta, os juros cairiam mais devagar, mas também o câmbio não seria revertido tão prontamente.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Evitar um mal maior com inflação::Suely Caldas

O fim da hiperinflação dos anos 70/80 foi festejado com alegria e esperança na América Latina. A inflação é caos, desorganiza a economia, impede empresas e pessoas de planejarem o futuro, golpeia a pobreza, freia o desenvolvimento, além de transformar em lixo a moeda do país, que, junto com a bandeira e o hino nacional, forma o tripé de símbolos de orgulho de uma nação. Quando estabilizou sua economia, em 1994, o Brasil criou o real como moeda nova, porque o cruzeiro estava desmoralizado e desacreditado.

Lá se vão 17 anos bem-sucedidos de estabilidade econômica. Em 1999 o Banco Central (BC) introduziu o regime de metas de inflação, tornando ainda mais sólido o compromisso do governo com a defesa do real e o controle de preços. Não dá para brincar com a inflação. Ela vai chegando de mansinho, vai ampliando espaço na economia e, se não há reação forte para detê-la, ela segue em frente, com a indexação de preços: para se protegerem contra a inflação percebida como inevitável, o comércio, a indústria, os serviços e até o governo começam a reajustar seus preços, indexando-os a algum índice de preços. O próximo passo são os salários, e aí falta quase nada para completar a indexação.

É claro que não vivemos esse cenário. Mas cada dia fica mais esquisito e difícil entender a leniência do BC ao adiar para 2012 o compromisso de trazer a inflação para o centro da meta, de 4,5%. Elevar a meta de 2011 para 5,6% ainda em março é desistir da luta no primeiro round. E instala desconfiança e descrédito adiar a vitória para 2012, um ano bem mais complicado do que 2011.

Em 2012 há um estoque de problemas a favor da inflação difíceis de ser administrados. A começar pelo aumento do salário mínimo, que o governo resolveu indexar à variação do PIB. O mínimo saltará 14% em 2012, espalhando um volume de dinheiro que vai direto para o consumo e pressionará a demanda e os preços. É bom para quem ganha o mínimo, mas incompatível com a meta de segurar a inflação em 4,5%. Além disso, o impacto sobre o aumento do déficit da Previdência dificulta ainda mais o esforço para conter as contas públicas - outro foco que alimenta a inflação.

O segundo problema é o aumento nos combustíveis, que o governo empurra com a barriga, mas sabe ser inevitável. A Petrobrás reajustou o preço de alguns derivados, como o querosene de aviação, e o gás natural vai ficar 12% mais caro em 1.º de maio. Mas a presidente Dilma Rousseff tem impedido o reajuste da gasolina e do diesel, subprodutos com enorme poder de propagação pela economia. Deixar para 2012 ou para o final deste ano fomenta ainda mais o descrédito em relação à capacidade de o BC cumprir a meta de 4,5% ano que vem. O aumento da gasolina carrega um efeito político negativo forte. Mas 2011 não é um ano eleitoral; 2012 é.

E a eleição municipal é o terceiro problema a conspirar contra a meta em 2012. Em ano eleitoral - vide a eleição do ano passado - a caça por votos leva a classe política a exagerar em gastos com obras suntuosas, aumento de salários do funcionalismo, financiamento de campanhas e tudo o mais que pressiona a inflação.

Com tantos fenômenos com datas marcadas e irremovíveis para ocorrer, fica difícil entender o compromisso da direção do BC de adiar para 2012 o que seria menos penoso resolver este ano. A não ser que a intenção seja novamente abandonar a meta, justificando que seria danoso para o desempenho da economia. E, se ao final deste ano a inflação ultrapassar 6,5%, como se espera, a revisão em 2012 já será maior para ser crível. É assim, de tolerância em tolerância, que a inflação vai chegando e se instalando, até ganhar a briga.

O presidente do BC, Alexandre Tombini, já alertou contra a reindexação de preços que contamina a economia. Ele sabe o poder que ela tem de realimentar a inflação por inércia. É perigoso. A torcida é contra e quer ver prevalecer o discurso da presidente Dilma de que não permitirá o descontrole de preços. Ela sabe que a inflação é um imposto que devora a renda dos pobres e multiplica a dos ricos. Ainda há tempo para reverter.

Jornalista, é professora da PUC-Rio

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Recordando Merquior :: Celso Lafer

"Graças à amizade os ausentes são presentes" e "os mortos vivem: vivem na honra, na memória, na dor dos amigos". Foi o que apontou Cícero, escrevendo sobre a especificidade da grande experiência humana da amizade. E é o que me vem à mente ao recordar o percurso do meu querido amigo José Guilherme Merquior, neste ano do 20.º aniversário do seu prematuro falecimento.

José Guilherme foi a mais completa personalidade intelectual da minha geração. Integrou com brio e enorme talento a República das Letras, nacional e internacional, tendo-se destacado por uma criativa e instigante mediação entre a crítica literária e a crítica das ideias.

Com finura analítica e imaginação crítica, sabia ler e interpretar, poesia e ficção. Tinha a clara percepção de que a autonomia da arte não se pode perder na autarquia do estético. O seu ensaio de 1964 sobre a Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, deu, desde logo, a medida da larga bitola de sua vocação de crítico literário. Mostrou que esse famoso poema da saudade, escrito em Coimbra, foi bem-sucedido esteticamente por ser, sem adjetivos e graças à tonalidade do texto e das palavras, uma grande expressão do valor da terra natal.

"O Brasil, na Canção do Exílio, não é isso nem aquilo, o Brasil é sempre mais", observou Merquior. Nos versos simples desse sentimento popular captado pelo engenho do romantismo de Gonçalves Dias, projetou José Guilherme, com a orteguiana sensibilidade compartilhada da nossa geração, o amor-vontade da construção de um Brasil amável - tema que se tornou uma das facetas do seu percurso.

Movido e animado pelo alcance do uso público da razão, José Guilherme expôs, discutiu e propôs ideias sobre sociedade, política e cultura. Nesse propósito teve presentes os desafios do Brasil, um "Outro Ocidente" a ser aprimorado e completado por obra do amor-vontade que projetou na sua análise de Gonçalves Dias. Na análise dos problemas da modernidade, no Brasil e no mundo, teve como pressuposto que "nenhuma crítica do poder possui o direito de absolutizar o poder da crítica. Do contrário se marcha em linha reta para a supressão da liberdade em nome da libertação".

José Guilherme integrava a família intelectual dos grandes carnívoros, pois a sua curiosidade era infindável. Metabolizou e desvendou, desse modo, o alcance da genuína pluralidade de seus interesses com o poder de uma inteligência superiormente abrangente que foi, desde muito jovem, aparelhada para uma erudição excepcional. Escrevia "aquém do jargão" e "além do chavão" e o seu texto exprimia a virtuosidade da vivacidade do seu espírito.

No campo da crítica das ideias, o seu último livro, O Liberalismo - Antigo e Moderno, é a obra que, em função do tema, mais justiça faz aos seus múltiplos talentos. No pluralismo um tanto centrífugo da doutrina liberal e nas várias vertentes da liberdade que contempla, José Guilherme sentiu-se à vontade e assim, com alto senso de proporção, combinou sua fulgurante capacidade de síntese e a sua arguta competência analítica. Destaco, por exemplo, a importância que deu à obra de Bobbio e ao nexo que esta estabeleceu entre liberalismo e democracia, quando o empenho de igualdade está associado ao sentido do papel das instituições de liberdade.

A travessia, que não foi excludente, da crítica literária à crítica das ideias, no percurso de José Guilherme, deu-se de maneira congruente pelos seus estudos sobre a legitimidade. Esta é, como dizia Guglielmo Ferrero, uma espécie de ponte entre o poder e o medo, que resulta de uma construção da cultura e dos valores.

Nos modos históricos de asserção da legitimidade, José Guilherme chamou a atenção para a novidade do modo tópico, que põe em questão a concepção arquitetônica da ordem sociopolítica. O âmago do novo espírito de legitimação é centrífugo. Dá ênfase à validez dos direitos e valores reivindicados pelos localismos de situações específicas. Na fragmentação do mundo contemporâneo, a percepção do modo tópico, explicitado por José Guilherme, é uma contribuição para o entendimento de como é politicamente necessário mediar a diversidade cultural e o conflito dos valores.

No livro dedicado ao tema da legitimidade em Rousseau e Weber, apontou José Guilherme que uma concepção subjetivista e fiduciária de legitimidade, baseada na crença dos governados e na credibilidade de uma reserva de poder dos governantes, prevalece nos paradigmas de Max Weber. Em contraposição, identificou em Rousseau uma concepção objetivista de legitimidade, cuja tônica se encontra na autonomia do consentimento, como base da obrigação política. Uma concepção objetivista de legitimidade encontra espaço de afirmação nas situações de poder nas quais a assimetria entre governantes e governados não é acentuada e existe margem de manobra.

Desse diálogo criativo com Weber e Rousseau extraiu José Guilherme consequências importantes para a ação diplomática brasileira que retêm plena atualidade. Com efeito, para o Brasil, que tem um interesse geral e real em participar na elaboração e na aplicação das regras formais e informais estruturadoras da ordem internacional, o relevante na agenda da discussão da legitimidade é o questionamento do soft power imobilizador da reserva de poder dos grandes e a ênfase a ser dada ao consentimento dos muitos. No mundo contemporâneo aberto à multipolaridade existem espaço e margem de manobra diplomática para essa linha de atuação.

Concluo lembrando que José Guilherme enfrentou "a Indesejada das Gentes", de que fala o poema de Manuel Bandeira, com destemor. Com a coragem, que resulta do sentimento de suas próprias forças, ao lidar com a doença que o levou pouco antes de completar 50 anos mostrou, para evocar Montaigne, "que a firmeza na morte é, sem dúvida, a ação mais notável da vida".

Professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, foi Ministro das Relações Exteriores no governo FHC

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Passagens aéreas sobem 49% no país

Os preços das passagens aéreas no país aumentaram 49% nos últimos 12 meses. Mesmo com a alta dos preços, o brasileiro está viajando mais de avião, atraído pelo parcelamento na compra dos bilhetes.

Inflação no ar

Passagens sobem até 65% com renda e negócios em alta no país

Danielle Nogueira

Apesar da disparada de preços das passagens aéreas, os brasileiros continuam viajando como nunca, agravando os gargalos nos aeroportos do país. Dados do IBGE revelam que, nos últimos 12 meses, o preço médio dos bilhetes para dez destinos no Brasil subiu quase 50%. Em cidades como Belo Horizonte, o aumento chega a 65,04% no período. O Rio (48,16%) aparece em quinto lugar no ranking. Crescimento da renda, novas facilidades de parcelamento e aquecimento dos negócios explicam o movimento de alta, levando a previsões sombrias. Estudo da consultoria Bain & Company mostra que, no ano da Copa, em 2014, o nível de utilização dos 15 principais aeroportos do país será de 128%. Ou seja, estarão operando acima de sua capacidade. Na prática, o descompasso entre oferta e demanda deve se traduzir em mais filas para os passageiros, atrasos de voos e até novos aumentos das tarifas, dizem especialistas.

Com ganho de R$800 mensais, a empregada doméstica Regina Rocha aproveitou a proximidade da Semana Santa e convenceu a patroa a lhe dar uns dias de folga para visitar as tias em Belém. Foi a primeira vez que a carioca viajou de avião na vida e que pôs os pés na capital paraense:

- Aproveitei uma promoção, peguei minhas economias e paguei R$400 pela passagem, incluindo ida e volta - diz ela, que embarcou do Galeão na última quinta-feira, acompanhada da mãe.

Empresas ampliam vendas a prazo

Regina faz parte de um novo universo de passageiros que eram excluídos das viagens de avião até pouco tempo atrás, os 95 milhões de brasileiros da chamada classe C. O fator decisivo para a inclusão dessa leva de consumidores foi o avanço do rendimento médio mensal, que em fevereiro atingiu R$1.540,30 - alta de 3,7% ante igual mês de 2010, segundo os últimos dados disponíveis do IBGE.

A facilidade das vendas a prazo é outro fator que explica o fato de mais gente estar voando Brasil afora. Nem as recentes restrições ao crédito impostas pelo governo devem mudar a política de venda das empresas. Na TAM, por exemplo, clientes do Banco do Brasil e do Itaú Unibanco podem parcelar o valor dos bilhetes em até 48 vezes. Segundo a companhia, novas parcerias serão anunciadas em breve. Na Webjet e na Gol, as vendas a prazo podem ser feitas em até 36 vezes. E a Azul vai ampliar para 12 - hoje são dez - o limite de parcelas, nas compras com 60 dias de antecedência.

- O aumento da renda e as facilidade de pagamento são, sem dúvida, motores do crescimento da demanda. E isso só tende a agravar o gargalo aeroportuário - diz o especialista em aviação e sócio da Bain & Company André Castellini.

Paralelamente, o mercado corporativo - que responde por 65% a 75% das viagens no país - vem impulsionando a movimentação nos aeroportos e, por tabela, o preço médio das passagens. Como as companhias oferecem preços diferenciados para o mesmo voo, as poltronas mais baratas têm sido rapidamente ocupadas. E quem decide comprar o bilhete em cima da hora, o que ocorre com frequência entre os executivos, só encontra disponíveis as tarifas maiores.

Fundador da Azul prevê novo reajuste

Essa dinâmica é claramente percebida nas estatísticas do IBGE. As três cidades que lideraram o ranking de alta de preços dos bilhetes nos 12 meses encerrados em março não têm tradição turística: Belo Horizonte (65,04%), São Paulo (56,26%) e Curitiba (56,17%). A coleta retrata os voos domésticos e é feita semanalmente nos sites das duas maiores aéreas do país - TAM e Gol, que detêm 80% do mercado interno. O instituto diz que o aumento apurado no período também foi influenciado pelo efeito-calendário. Em 2011, o carnaval foi em março, quando os preços das passagens subiram 29%. No ano passado, a folia foi em fevereiro.

Ellos Nolli, presidente de uma empresa mineira de TV a cabo sentiu no bolso o custo mais alto das tarifas. Perdeu o voo que sairia do Rio para Belo Horizonte e teve de pagar o dobro por um novo bilhete para viajar horas depois pela mesma companhia:

- Nós que viajamos a negócios é que estamos pagando a conta da popularização das viagens de avião.

Na contramão dos voos domésticos, o preço das passagens internacionais tem se mantido praticamente estáveis nos últimos três anos, segundo levantamento feito a pedido do GLOBO pelo site Decolar.com. E, em alguns casos, chegaram a cair, ajudando a inflar o número de passageiros. A desvalorização do dólar no período (6%) é apontada como a principal razão para essa tendência. O preço médio para uma viagem a Paris, por exemplo, teve uma leve alta de 1,6% em dólares entre 2008 e 2010, de US$936 para US$951. Em reais, foi constatada queda de 2,7%, de R$1.712 para R$1.665.

É baseado nesse cenário e num crescimento anual de 9% do setor aéreo até 2014 que a Bain & Company projeta uma demanda de 17 milhões de passageiros em meses de pico no ano da Copa nos 15 principais aeroportos do país. Esses terminais concentraram cerca de 80% dos 13 milhões de passageiros que embarcaram ou desembarcaram por mês nos 67 aeroportos administrados pela Infraero em 2010. Os aeroportos de Vitória e Guarulhos estão entre os que enfrentam a pior situação: estarão usando 145% e 140% de sua capacidade em 2014, respectivamente. Galeão (94%) e Santos Dumont (90%) estarão perto do limite.

- São Paulo é o coração econômico do país. E Vitória tem crescido muito por causa do pré-sal. Isso se reflete no movimento dos aeroportos e, onde há gargalo, a tendência é de aumento de tarifas, filas e atrasos - diz Elton Fernandes, professor do Programa de Engenharia de Produção da UFRJ.

O reajuste acumulado de janeiro a abril de 28% do querosene de aviação (QAV) deve contribuir para a alta, já que o combustível responde por 30% dos custos operacionais das aéreas. Embora empresas como a Gol afirmem que "até o momento não vemos motivos para repasse de preços", o fundador da Azul, David Neeleman, diz que os repasses serão inevitáveis:

- Acredito que haverá um reajuste, mas apenas para as tarifas mais altas - disse.

FONTE: O GLOBO

Sem concurso, 27 mil novos funcionários públicos

Regina Alvarez

BRASÍLIA. Com aval do governo federal, está em curso no Congresso uma articulação para o ingresso no serviço público, sem concurso, de 27 mil funcionários terceirizados da área de Saúde. Eles trabalham nos hospitais universitários e devem ser incorporados ao quadro permanente da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), criada no apagar das luzes do governo Lula, pela Medida Provisória 520, para administrar os hospitais universitários.

Com a justificativa de melhorar a gestão na Saúde e atender exigência do Tribunal de Contas da União (TCU) e do Ministério Público do Trabalho - de substituir terceirizados irregulares por concursados -, o governo criou a empresa, ressuscitando princípios do projeto de fundação estatal de direito privado que enviou ao Congresso em 2007, não aprovado até hoje.

MP autoriza contratos por tempo determinado

O ingresso dos terceirizados no quadro permanente da empresa, por um atalho, está sendo articulado no Congresso com o apoio do governo. O relator da MP, deputado Danilo Forte (PMDB-CE), trabalha em sintonia com os ministérios da Educação e da Saúde.

A MP diz que a contratação na EBSERH será por concurso, como determina a Constituição, mas autoriza contratos por tempo determinado na implantação da empresa, por meio de "processo seletivo simplificado (...) mediante análise de currículos". Emenda da deputada Érika Kokai (PT-DF) reforça a janela para a entrada dos terceirizados sem concurso, ao propor que os funcionários do Hospital Universitário de Brasília sejam incorporados ao quadro permanente da empresa logo na implantação. Com essa brecha, os terceirizados dos demais hospitais terão tratamento isonômico.

O relator frisa a intenção de "regularizar" os terceirizados:

- A prioridade é regularizar a situação caótica dos funcionários. Quem já presta serviço terá prioridade sobre os demais - afirma.

O novo modelo, apresentado pelo governo como um avanço na busca da eficiência na Saúde, está na mira do Ministério Público por ser considerado inconstitucional e ferir a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), além de abrir brechas para a contratação de apadrinhados políticos e para o mau uso do dinheiro público.

A empresa criada para administrar de forma centralizada 46 hospitais universitários é pública e dependerá de recursos do Orçamento da União para sobreviver. Porém, terá regime jurídico próprio das empresas privadas e vai funcionar com regras do setor privado, sem se submeter aos controles de fiscalização. Além disso, a MP permite a criação de subsidiárias da EBSERH nos estados.

Em 2010, R$4,2 bilhões a hospitais universitários

Com regime jurídico e gestão privada, a EBSERH receberá recursos dos ministérios da Educação e da Saúde destinados aos hospitais universitários - foram R$4,2 bilhões em 2010 - mas não se submeterá aos limites da LRF para os gastos de pessoal, ao teto constitucional para os salários dos funcionários, nem ao controle social viabilizado pelo registro e acompanhamento das despesas dos órgãos públicos no Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi). Terá um regime próprio para compras e obras, sem precisar seguir as exigências da lei das licitações.

- É uma solução inadequada, tortuosa, que vai criar mais problemas do que soluções. A busca da eficiência é apenas um pretexto. O que se está buscando é a redução dos controles - alerta o procurador do Ministério Público Julio Marcelo de Oliveira, que atua junto ao Tribunal de Contas da União (TCU).

O ministro da Educação, Fernando Haddad, em audiência na Comissão de Educação, defendeu a criação da empresa:

- A discussão sobre hospitais universitários não está mais no âmbito do que é público ou privado. Trata-se de de estabelecer o melhor sistema para o atendimento do cidadão e para a dignidade do funcionário.

FONTE: O GLOBO