Tendo estado sempre à frente de manifestações, Lula e o PT buscam entender o que acontece em todo o país
José Casado, Tatiana Farah, Maria Lima e Luiza Damé
RIO, BRASÍLIA e SÃO PAULO - Eles chegaram de forma inesperada. Aos gritos, repetiam em coro ritmado: "Xi, fedeu/ O povo apareceu/ Xi, fedeu/ O povo apareceu..."
Em minutos a portaria do edifício número 1.400 da Avenida Prestes Maia, em São Bernardo do Campo (SP), foi cercada por manifestantes. No centro das vaias e xingamentos estava o morador da cobertura: Luiz Inácio Lula da Silva.
Aquela noite de quarta-feira, 19 de junho, se tornou inesquecível na cidade onde Lula escreveu uma página espetacular da mobilidade social brasileira - ali, o ex-sindicalista liderou as greves que abalaram a ditadura militar, criou o Partido dos Trabalhadores e se elegeu presidente da República.
Desde 1969, quando um irmão comunista o inscreveu na chapa da diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos, como suplente, Lula sempre esteve no comando de protestos nas ruas. Nunca fora alvo de multidão rebelada, muito menos de jovens e jamais na porta de sua casa - ainda mais sob um notável silêncio da vizinhança. Seu principal aliado político na cidade, o prefeito Luiz Marinho, descansava em Paris.
A cena sugeria uma inflexão: aqueles jovens manifestantes tratavam Lula como personagem da galeria de políticos tradicionais.
No rio, Militantes do PT vão às ruas
Na noite seguinte, militantes do PT avançavam com camisetas e bandeiras vermelhas, atendendo a apelo do presidente do partido Rui Falcão, pelo centro do Rio, a 440 quilômetros de São Bernardo. Perto do ponto de concentração de passeatas, na altura da Igreja da Candelária, foram recebidos com vaias, secundadas por um coral: "Sem partido/ Sem partido..." Socorridos por uma pequena tropa embandeirada de outras organizações partidárias (PSTU, PCB e PCdoB), recuaram gritando: "Sem fascismo/ Sem fascismo..."
A presidente Dilma Rousseff amargara idêntico constrangimento quatro dias antes, em Brasília, na cerimônia de abertura da Copa das Confederações. O presidente da Fifa tentou socorrê-la: "Onde está o respeito, onde está o fair play ?", cobrou Joseph Blatter ao microfone. A vaia-resposta foi mais forte.
Desde então, partido e governo oscilam entre surpresa e perplexidade. Depois de 33 anos marcando o compasso da política brasileira, o PT de Lula e Dilma encontrou no espelho da rebeldia das ruas múltiplas evidências da própria crise. Para a maioria dos petistas sobra mais dúvidas do que certezas sobre o rumo. Lula se comporta como uma exceção.
- O que o senhor acha? - quis saber o integrante de um grupo alinhado ao PT, em conversa com o ex-presidente na semana passada.
Na sala do Instituto Lula, em São Paulo, contavam-se duas dezenas de pessoas, quase todos militantes de organizações como Central Única de Trabalhadores, União Nacional de Estudantes, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, União da Juventude Socialista, Movimento Hip Hop-SP, Levante Popular da Juventude e Coletivo Fora do Eixo, entre outros.
Eles se entrelaçam com outros 40 grupos, em torno de uma pauta comum conhecida como Jornada Nacional de Luta. Têm um canal direto com a Presidência da República, via Secretaria-Geral que abriga o Conselho Nacional da Juventude. Com 60 integrantes (20 do governo), esse conselho é presidido desde maio por Alessandro Melchior, de 26 anos, dirigente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais.
Lula dá a senha para a "luta"
Até aquela altura da reunião, Lula é quem fazia perguntas. Quis detalhes das passeatas, do perfil básico dos manifestantes, e ouviu "tem de tudo", com qualificativos como "pobre", "rico", "estudante", "gay", "nazista", "maconheiro". Mas chegara sua vez de falar:
- Já vi muita coisa assim - disse, segundo relatos de quem esteve na plateia. - Isso é coisa da direita. Querem desestabilizar. Acabar com nossas conquistas, com programas sociais, com ministérios criados para as minorias&
Acrescentou: - Eu acho que, possivelmente, seja a hora de vocês, a juventude, os trabalhadores, irem para a rua, não deixar a direita tomar conta e pedir para aprofundar as mudanças.
Era o seu segundo movimento em 24 horas. No dia anterior, convocara a presidente Dilma Rousseff e o prefeito Fernando Haddad para discutir a redução da tarifa de ônibus em São Paulo, em acordo com o PSDB do governo paulista Geraldo Alckmin.
Agora dava a senha para "a luta" - o que na prática pode significar um aumento da estridência nas ruas, com o objetivo de pressionar o governo a se posicionar em torno de uma "pauta" mais à esquerda em relação às propostas dos adversários eleitorais. No PT e no Palácio do Planalto há quem discorde, por enxergar nessa tática eleitoral o risco de enfraquecimento do governo.
Há, também, quem veja autoengano na interpretação de que a mobilização nas ruas é coisa "da direita".
- Recomendo ao meu partido: ouça o que diz a juventude do PT - disse o deputado Vicentinho (SP), presidente da CUT de 1996 a 2000: - Esse movimento de agora é muito justo, respeitoso, novo, criativo, sem panfleto e sem carro de som. Não tem nada a ver com direita, ou golpe. É o jeito deles. Se quisermos participar, tem que ser sem provocação e disputa, sem bandeiras e sem partidos. Nas reuniões em que estive a constatação foi: "Puxa vida, somos o PT, nós que sonhamos isso tudo, nós que puxamos o movimento das ruas e agora somos excluídos?" Foi muito duro. Mas temos que respeitar e interpretar esse recado como a vontade dos jovens.
Marco Aurélio Garcia, assessor internacional da Presidência da República, decidiu escrever a respeito, contou ao GLOBO num e-mail:
- Vivi, como estudante, o Maio-68 na França, movimento de gigantescas proporções, que surgiu aparentemente "do nada". Entre o estopim (a repressão a um grupo de estudantes da Faculdade de Nanterre) e o rumo que os acontecimentos tomaram (a maior greve geral dos tempos contemporâneos) parecia haver um abismo. São esses abismos que têm de ser entendidos.
O Brasil mudou, como as mobilizações atuais demonstram - comentou. - O país só pode ir para frente, não para atrás. Este é o movimento do "quero mais". Engana-se quem o interpreta como um "quero voltar atrás". É um movimento que exige qualidade no gasto público. Nada mais avesso à agenda privatista e antiestado das oposições.
De toda forma, antes de Lula embarcar para África, na sexta-feira, estava quase pronto um calendário de agitação e propaganda, pontuado por greves na primeira quinzena de julho. Predominava o entendimento de que "o partido não pode ter uma postura de covardia política", na síntese feita pelo deputado Ricardo Berzoini (SP), ex-presidente da organização.
Trabalhava-se com urgência, também, na ampliação do arsenal de vigilância e guerrilha digital do PT, da Presidência e de governos como o do Rio Grande do Sul, que lidera uma das frações em disputa pelo controle do partido. No foco, agora, estão as redes sociais - meio mais usado para mobilizar milhões nas últimas semanas, à margem de organizações como o PT, habituadas a trios elétricos, bandeiras vermelhas e ônibus e sanduíche grátis.
Cuidar só do meio não basta, é preciso rever a mensagem, ponderaram alguns deputados em reunião da bancada parlamentar petista, quarta-feira passada em um anexo do Congresso.
- Precisamos atualizar nosso ideário - argumentou o líder da bancada na Câmara José Guimarães (CE). - Só defender o legado não é suficiente para responder às reivindicações.
José Fritsch, ex-ministro da Pesca e presidente do do PT de Santa Catarina, foi além:
- Se o governo faz um mutirão para a Copa, se tem dinheiro para a Copa, pode fazer uma mutirão para essas questões sociais. Esse é o sentimento nas ruas: se tem dinheiro para a Copa, tem que ter para um grande mutirão na Saúde e na Educação.
Recursos não usados em várias áreas
Os atos de contrição em reuniões petistas, nas últimas duas semanas, quase sempre desemborcaram nos entraves provocados pela rarefeita funcionalidade da burocracia governamental, que o próprio PT instalou e comanda há uma década em Brasília. E isso pode ser comprovado pelos dados oficiais sobre investimentos sociais realizados nos últimos dez anos.
Na Saúde, por exemplo, de cada R$ 100 de investimento previsto, o governo só conseguiu gastar R$ 39 - deixou de realizar 61% do orçamento setorial aprovado pelo Congresso, de acordo com levantamento feito pela ONG Contas Abertas a pedido do GLOBO.
O quadro se repete em Saneamento, onde de cada R$ 100 previstos só foram gastos R$ 49 - isto é, sobraram 51% dos recursos em caixa.
Em Transportes, investiu-se um pouco mais, R$ 61 de cada R$ 100 previstos, com sobra de 40% sem uso.
Na Educação registrou-se a melhor média: R$ 60,5 de cada R$ 100 que estavam separados no Orçamento para investimento na área. Restaram 39,5% sem utilização.
No conjunto, os gastos sociais cresceram na década petista, o que pode ser comprovado em análises recentes de instituições independentes, como a ONU que demonstra uma duplicação dos investimentos em Saúde e avanço expressivo em Educação como proporção do Produto Interno Bruto (PIB), nos últimos dez anos. O problema é que essa expansão não foi suficiente e não teve muita qualidade, como indica a insatisfação nas ruas. É certo que o país poderia ter investido muito mais e melhor, como revelam os dados oficiais, se nessa década os projetos prioritários e respectivos orçamentos aprovados tivessem sido plenamente executados.
A perplexidade petista com a própria crise, espelhada nas ruas, tem outras razões de origem, segundo diferentes parlamentares. Uma delas foi a prioridade à máquina eleitoral, para hegemonia nas urnas e no poder - o que levou ao mensalão e, agora, à concentração de energia no plebiscito sobre reforma política. O PT é o eficiente nas eleições. Nesses dez anos fracassou em realizar o governo funcional que sempre propôs. Não significa que chegou ao fim da história.
Fonte: O Globo, 30/6/2013