Almeida, Francisco Inácio de (org.). O que é ser de esquerda, hoje? Brasília: Fundação Astrojildo Pereira/ Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. 298p.
É precisamente no final do século XVIII, no processo histórico da Revolução Francesa, que surgem as noções políticas contemporâneas acerca do que é direita e esquerda. Todavia, mesmo em fins de século XX e início de XXI, o debate em torno da caracterização desses dois polos, bem como das razões de sua distinção, parece não esgotar-se facilmente. É, portanto, a partir do pressuposto da validade e da necessidade da discussão em torno do que é ser esquerda hoje que se sustenta a proposta desta coletânea.
O livro é fruto da Conferência Nacional Caio Prado Jr., organizada em 2007 na cidade de Brasília pela Fundação Astrojildo Pereira e pelo PPS — Partido Popular Socialista. A conferência reuniu diversos políticos, intelectuais, jornalistas, professores, artistas, entre outros, para pensar a trajetória da “esquerda no mundo e no país, com vistas a uma conceituação teórica e programática do que deve ser uma esquerda contemporânea” (p. 9). Nesse sentido, o livro apresenta 44 textos de autores diferentes que procuram apontar caminhos e perspectivas diversas no que tange ao problema posto na Conferência.
A grande quantidade de textos e reflexões dispostas no livro é uma demonstração da preocupação dessa esquerda contemporânea com a pluralidade dos temas e dos sujeitos, que coexistem no interior de uma sociedade democrática. Exemplos dessas preocupações são os textos que abordam o diálogo com os movimentos sociais, questões de gênero e de meio ambiente. Portanto, temos em mãos uma compilação de escritos bastante ampla. Em razão disso, é impossível passar em revista todos os textos publicados, de modo que o que se encontra aqui discutido é uma seleção daquilo que julgamos mais destacado entre tantas reflexões.
Assim, abordando mais especificamente o livro, a conferência solene de abertura proferida pelo professor José de Souza Martins traz alguns pontos importantes e essenciais que nos permitem nortear o debate e as ações das esquerdas no Brasil contemporâneo. Para Martins, mesmo após as críticas e a falência do socialismo soviético, o pensamento de Marx ainda permanece válido. No entanto, tal validade aparece condicionada a uma releitura de Marx operada no tempo presente, em um processo de depuração que visaria a capturar aquelas análises que ainda podem dar conta de nossa realidade. Nesse sentido, segundo Martins, o grande desafio da esquerda hoje é a recuperação da dialética no intuito de compreensão da realidade brasileira e, no campo prático, agir em nome do historicamente possível e não do politicamente permitido.
Seguindo esse raciocínio, Martins promove uma análise interessante acerca do petismo. Para o sociólogo, ainda que o PT se utilize de uma retórica de esquerda, este não é um partido capaz de se pautar em uma práxis transformadora, em virtude de suas origens baseadas no “agrarismo social nutrido pelos valores mais significativos da tradição conservadora” (p. 52).
No que se relaciona ao petismo, ou mais especificamente ao lulismo, a intervenção de Rudá Ricci também contribui no sentido de explicitar o distanciamento do PT em relação às esquerdas. Partindo de uma caracterização de esquerda ancorada na descentralização do poder e na democracia participativa, Ricci argumenta que o lulismo é composto por três elementos que o afastam do espectro de esquerda: o pragmatismo sindical, o liberalismo econômico e o controle burocrático.
O texto de Alberto Aggio lança luz à compreensão e revisão de uma das ideias mais caras às esquerdas: a revolução. Aggio enfatiza que o conceito de esquerda é essencialmente contextual e situacional, definindo-se a partir de determinado tempo histórico e em relação a determinado espectro político. Assim, em relação ao tempo presente, o historiador sugere a necessidade da existência de uma esquerda contemporânea, reformista e transformadora.
Para tanto, em diálogo com Giuseppe Vacca, Aggio aponta o anacronismo da oposição entre reforma e revolução desde os anos 1930. Isso ocorre porque, segundo Vacca, “o capitalismo é um modo de produção, o socialismo é um critério de regulação do desenvolvimento econômico, que, portanto, não se contrapõe ao primeiro, mas propõe-se a orientá-lo” (p. 103). Diante disso, a revolução deixa de ser o fiat do desenvolvimento histórico, abrindo espaço, portanto, para uma ação reformista e transformadora que pode ser protagonizada pela esquerda.
Também caminhando a partir do referencial teórico gramsciano, Raimundo Santos procura valorizar a política enquanto possibilidade de intervenção coletiva na realidade, pensando na importância da tradição pecebista no cenário político atual. A primeira contribuição dessa tradição pode ser extraída do conceito de revolução passiva de Gramsci, encarada aqui como critério de interpretação e de ação na realidade. Nesse sentido, tomando consciência das poderosas forças hegemônicas que controlam as transformações, de modo conservador e pelo alto, é necessário articular amplas forças “com vistas a configurar um governo que não só minor[e] os efeitos negativos da globalização como alar[gue] a incorporação social com base em um novo ciclo de crescimento” (p. 221).
O segundo ponto elencado por Santos parte das reflexões estabelecidas por Caio Prado Jr. Para Santos, Caio Prado Jr concebeu a revolução brasileira como um processo programado que visava à reestruturação do capitalismo, marcado pela generalização insuficiente dos benefícios da modernidade econômica e social. Deste modo, uma política de esquerda contemporânea deve levar em conta a ampliação desses benefícios do moderno para o Brasil.
Portanto, notamos até aqui que a obra oferece uma pluralidade de temas, reflexões e respostas para o problema central posto na Conferência Caio Prado Jr. No entanto, é preciso também perceber o que há de comum entre essa ampla variedade de análises e perspectivas, no intuito de percebê-las em sua historicidade. Por mais que se distanciem, parece haver um centro comum de onde se irradia grande parte das análises existentes: o reformismo e a defesa da democracia. Esse centro comum aparece com nitidez na apresentação escrita por Francisco Inácio de Almeida:
Da nossa parte, o pluralismo cultural e a opção pelo diálogo entre vertentes reformadoras é o que se pretende buscar para a construção de um movimento político que tenha sólidas bases programáticas e cujo eixo fundamental seja a Constituição de 1988 e uma adesão sem ambiguidades ao moderno Estado democrático de Direito (ALMEIDA, 2013, p. 11).
É necessário pensar historicamente o surgimento dessa esquerda democrática e reformista. Deu-se nos anos 1970 o início de um processo histórico de ruptura na cultura política das esquerdas no Brasil, de modo que a revolução deixa de ser o foco principal, cedendo lugar à democracia. Tal adesão à democracia se explica, sobretudo, em razão tanto da rejeição ao autoritarismo do Estado brasileiro quanto da difusão de novos referenciais teóricos, especialmente aqueles vindos do pensador italiano Antonio Gramsci.
Nessa perspectiva, as esquerdas dos anos 1970, que percorrem o longo processo de transição rumo à democracia, também guardam determinadas continuidades em relação aos debates desenvolvidos nos anos 1960. A discussão então travada em torno do caráter complementar ou antagônico de democracia social e democracia política nos permite observar o que depois seria a diversidade entre as estratégias de combate à ditadura militar: sumariamente, a estratégia da derrubada e a da derrota política daquele regime, como já apontou com precisão Luiz Werneck Vianna.
Assim, partindo dessa discussão, podemos apontar que a esquerda representada nas diversas análises contidas na obra herda ou mesmo continua e aprofunda a cultura política democrática iniciada no âmbito das esquerdas brasileiras que lutaram contra o regime militar por meio da estratégia de derrota do regime militar. Nesse sentido, a caracterização acerca do que é ser de esquerda hoje, no Brasil, parte dessa posição política construída historicamente ao longo das últimas décadas.
Portanto, o presente livro, além de apontar caminhos e reflexões importantes em relação aos desafios contemporâneos das esquerdas no Brasil, demonstra que o processo de construção de uma esquerda democrática ainda se encontra aberto, visto que há ainda amplos setores das esquerdas que não aderiram à democracia como um valor em si, compreendendo-a ainda como um instrumento. O livro deve ser encarado, assim, como uma diversificada e importante contribuição no sentido de aguçarmos nossa percepção a respeito da construção histórica de uma determinada cultura política democrática e reformista — um alicerce indiscutivelmente necessário à construção de novos projetos coletivos para o Brasil.
Marcus Vinícius de Oliveira é mestrando em História na Unesp/Franca.
Fonte: Gramsci e o Brasil