Entrevista. Em crise, o presidencialismo cede à personalização da política e ao declínio do debate público, adverte o filósofo italiano Michelangelo Bovero.
• "Não se extrai a substância da posição dos políticos 'caras vazias' sobre temas cruciais. Dilui-se a dicotomia esquerda e direita"
• "Tudo se move no campo da aparência. Fala-se aquilo que é cativante. É a transformação do debate político em marketing"
Jorge Felix – Valor Econômico - Eu & Fim de Semana
SÃO PAULO - Quando o Congresso Nacional debateu as regras para o último referendo ocorrido no Brasil, em 2005, sobre a proibição de venda de armas de fogo e munição, os parlamentares gastaram mais tempo discutindo a formulação da pergunta do que qualquer outra questão relativa àquela consulta popular. Não à toa. Um dos mais renomados filósofos políticos da atualidade, o italiano Michelangelo Bovero, discípulo e sucessor de Norberto Bobbio (1909-2004) na cátedra de filosofia política da Universidade de Berlim, lembra que quem detém o poder num plebiscito ou referendo não é quem vota, mas quem formula a pergunta. Esse é um dos motivos pelos quais ele condena a utilização de plebiscitos como remédio para fortalecer a democracia e solucionar a crise de representatividade política que vivem as sociedades contemporâneas. "O remédio é pior do que a doença. O plebiscito é uma inversão da democracia", diz ele nesta entrevista ao Valor, ao som de passarinhos, na casa onde se hospedou, em São Paulo.
O tom de Bovero, porém, destoa do ambiente idílico quando critica a usurpação do meio político pela esfera econômico-financeira, que, segundo ele, levou o sistema presidencialista, em todo o planeta, a uma crise aguda. A convite do Instituto Norberto Bobbio, Bovero fez palestras em quatro universidades na capital paulista. Em sua visão, o poder econômico reforça os males do presidencialismo ao enfraquecer o Poder Legislativo em benefício do fácil diálogo com o Poder Executivo e, para isso, alimenta a personalização da política, que passa a ser dominada pelos "caras vazias", responsáveis pelo esvaziamento do debate público. "O liderismo é a enfermidade terminal da democracia", sentencia.
Valor: A política tem sido vista, cada vez mais, como espaço aético. O senhor acredita que as pessoas estão dispostas a entrar nesse espaço?
Michelangelo Bovero: Isso não é um sentimento dos tempos recentes. Desde sempre, a maior parte do tempo vivido pelas pessoas é um tempo de desconfiança da política. Os indivíduos ou grupos que se apoderam dos mecanismos das decisões coletivas são considerados maus. "A política é uma coisa suja" é frase recorrente desde os tempos da crise da democracia ateniense, de Roma, dos tempos de Maquiavel e por aí vai. No entanto, são duas as faces da nobre arte da política: a face de sangue e a face de lama. Nós estamos afogados na lama.
Valor: Uma das características das manifestações sociais, como aqui no Brasil, foi a rapidez com que se formaram e se desfizeram, sem muita consequência em termos políticos. Por quê?
Bovero: Em primeiro lugar, é preciso destacar que há uma potencialidade concreta: a era digital. Ela oferece a potencialidade. Sobre isso, me ocorre fazer uma comparação entre o que dizia um grande personagem da revolução russa, opositor dos bolcheviques: "Com a violência se pode liberar o espaço, nada mais do que isso". Com a convocatória digital se pode organizar protestos, liberar o espaço, derrubar ditadores, mas não se organiza nada. Política, qualquer forma de política, no ambiente democrático, requer organização, discussão, segmentação, sujeitos coletivos. Os chamados partidos estão desgastados? Não gostam da palavra partido? Encontremos outra. O que importa são sujeitos coletivos, que tenham uma orientação e capacidade de enfrentar os problemas com uma linha analítica ideal. Isso não emerge da internet e das grandes convocatórias.
Valor: O senhor não vê problema no desmerecimento da denominação "partido"?
Bovero: O que é partido? Parte. Um pedaço de torta. Uma parte do todo. Tem que funcionar como partido. Pode chamar de outra coisa, é mera retórica. Vai funcionar como partido. Para qualquer processo decisório é necessário que existam partidos. Do contrário, sem partidos para articularem as questões importantes ao debate, como desigualdade social, direitos sociais, crise financeira, saúde, educação, vão surgir, vão ocupar espaços esses "caras vazias". O confronto entre eles se transforma em um "canto" para agradar a opinião pública, e não um debate político com consequências. Nas eleições isso se faz mais evidente. Mas no debate público, nos últimos 20 anos, a cara mais vazia consegue obter a atenção maior, acaba aparecendo mais, distorce o debate sobre o essencial. Emerge daí o governo dos piores e não dos melhores. Ou seja, em vez da aristocracia prevalece a "kakistocracia" [conceito do historiador grego Políbio, que Bovero desenvolveu em seu livro "Contra o Governo dos Piores", publicado em 2002 em português, pela Editora Campus].
Valor: Depois das manifestações, aqui no Brasil, e considerada a crise do presidencialismo de coalizão, aponta-se, sobretudo agora, na campanha eleitoral, um remédio: o plebiscito. Como vê esse tratamento para a crise da democracia representativa?
Bovero: O remédio é pior do que a doença. Medicina, em grego antigo, é fármacon. E o primeiro significado de fármacon é veneno. Há vários exemplos na história. O remédio para o presidencialismo é o hiperpresidencialismo à De Gaulle. Podemos acrescentar que o instituto próprio do referendo não é compatível, em si mesmo, com a democracia. Democracia quer dizer autodeterminação coletiva de indivíduos iguais em condição de poder e de participação nas decisões coletivas. O referendo ou o plebiscito, o que é? É uma pergunta sobre temas específicos. Se não é sobre temas específicos é um engano. Um plebiscito tem sentido, em primeiro lugar, quando se coloca uma alternativa clara entre o "sim" e o "não". Quais são exatamente os problemas que podemos reduzir a alternativas simples entre "sim" e "não"? Ademais, a democracia pressupõe a discussão pública - a discussão pública, não como propaganda, mas como elaboração mesma do problema. Quem tem o poder no plebiscito? Não é quem dá a resposta. É quem formula a pergunta. O plebiscito é uma inversão da democracia. A solução dos problemas só pode sair de uma discussão dentro de um órgão plural, no qual se pode concretamente debater. Não há debate entre 100 milhões de pessoas.
Valor: A questão também é o que se debate. Como vê a questão de o debate político ser tomado de temas como sexualidade, religião, aborto?
Bovero: Não quero dizer que estes não sejam temas importantes. Deixo bem claro isso. Mas se verifica uma troca de prioridade, o que vem antes e o que vem depois. Isso, porque não se discutem os problemas verdadeiros da sociedade, os substanciais. Por várias razões. Destaco duas. Uma, porque a própria política, nesses problemas, foi desautorizada pela oligarquia econômico-financeira global. Não há recursos; então, não podemos falar de benefícios. A política foi claramente desautorizada. Vivemos em tempos de "role of capital" [protagonismo do capital] e não de "role of law" [protagonismo do direito]. O "role of capital" destronou o "role of law". Outra razão é o caráter persuasivo e aparente, tudo se move no campo da aparência. A dialética política, sobretudo, mas não só, nos momentos eleitorais. Aquilo que é cativante, que é agradável, então se fala. É a transformação do debate político em marketing. Nesse quadro, emergem pessoas de certas aparências, de certos apelos populares. Os problemas verdadeiros não podem ser enfrentados por aqueles que são ou de direita ou de esquerda, igualitários ou anti-igualitários. E como não se trata desses temas, trata-se de outros. Entram em cena os que chamo de políticos "caras vazias" por trás dos quais não há nada. Não se extrai a substância da posição deles sobre os temas mais cruciais. Dilui-se a dicotomia esquerda e direita.
Valor: Há uma discussão sobre a funcionalidade da ciência política. De que modo a ciência política pode contribuir para enfrentarmos os desafios da democracia contemporânea?
Bovero: A ciência política, sobretudo americana, que é a dominante, se encontra hoje no papel de "conselheira do príncipe". Os filósofos, principalmente da escola à qual pertenço, a escola de Turim, a escola bobbiana, não são "conselheiros do príncipe" mas, sim, "críticos do príncipe". Nossa escola é de teoria política com a perspectiva de análise crítica para ajudar nas coisas concretas. Mas, se formos falar de uma função da teoria política, é, principalmente, a de educação para a cidadania. É a influência sobre a opinião pública. Por exemplo, eu gosto muito, profissionalmente falando, das causas perdidas. Uma delas é a crítica ao presidencialismo. Aos tipos de presidencialismo, incluindo o brasileiro.
Valor: Qual a capacidade da democracia presidencialista para resolver os problemas de crise financeira, de fronteiras, religiosos que se colocam para a humanidade?
Bovero: Qual democracia? Os regimes contemporâneos que estamos acostumados a chamar de democracia são todos, umas mais e outros menos, apenas democracias aparentes. Uma coisa é o problema do tipo de regime de governo, democracia ou não democracia. Os problemas que você coloca são problemas da política. Problemas do papel da política. Seja qual for a forma de governo. O que a política pode fazer para enfrentar os grandes problemas? São duas coisas distintas. Correndo o risco de uma certa simplificação, precisamos ver quais podem ser os cruzamentos, as conexões. A chamada crise financeira não é somente isso. É uma crise econômica e social de proporções gigantescas. O desemprego na Itália, na Espanha, na França e também na Alemanha é um problema social enorme. São efeitos da chamada crise. Isso convida o teórico analítico, o filósofo, a perguntar-se o que é essa crise. O que entendemos ser essa crise? É a quebra do Lehman Brothers? Talvez esse seja o ponto de partida. Mas é algo muito mais profundo. Em linhas gerais, pode-se dizer que o problema é a usurpação do poder político pelo poder econômico. O que pode fazer a política? Várias foram as classes políticas dos últimos 20 anos e todas se colocaram servas do poder econômico-financeiro global. A liberação dos movimentos do capital foi uma decisão política de quem era apontado como o mais progressista dos presidentes americanos, Bill Clinton. Estamos diante de algo que podemos conceituar como a desautorização da política por parte do establishment econômico-capitalista-financeiro.
Valor: Isso aconteceria, portanto, no presidencialismo ou no parlamentarismo...
Bovero: Sim. Antes, é preciso estabelecer as conexões. Essa situação é consequência do que chamo de meta-ideologia do nosso tempo, o neoliberalismo, que foi estabelecido pelo relatório da comissão multilateral de 1975 e, curiosamente, quando lemos um documento pequeno, de apenas oito páginas, publicado no ano passado por economistas-chefes de um grande banco americano, e comparamos, constatamos que a análise e as indicações terapêuticas são, em substância, as mesmas. Primeiro: a política, os dirigentes políticos estão orientados por esse receituário que vem desde 1975. Ele diz que os governantes não devem atender a todas as demandas dos cidadãos. As demandas sociais devem ser, segundo eles, filtradas, selecionadas. Caso contrário, a democracia vai quebrar porque é insustentável atender às demandas. Um segundo ponto: os direitos. Nosso mestre Norberto Bobbio, um otimista, escreveu em 1990, que nossa época é "a era dos direitos". E o que dizem os porta-vozes da meta-ideologia global? Os direitos, especialmente os direitos sociais, não são direitos, são apenas benefícios sociais que podem ser satisfeitos em certa medida, quando se tem recursos abundantes. Quando não temos, não se pode atender a esses benefícios. Aqui, vamos estabelecer as conexões. As próprias classes políticas, como eles dizem, devem ser postas em quarentena. Então, deve-se enfraquecer os órgãos da representação política, como os parlamentos. Os parlamentos, dizem, são um desastre, são veículos de demandas sociais das mais absurdas, que não se pode satisfazer porque não há recursos. De acordo com essa concepção, deve-se fortalecer os poderes de vértice: o Executivo ou as lideranças. O liderismo é a enfermidade terminal da democracia.
Valor: Isso estimula a personalização da política?
Bovero: Exato. A personalização da política tem uma face institucional que se chama presidencialismo.
Valor: Se o plebiscito é um remédio pior do que a doença, quais seriam os melhores remédios para o presidencialismo?
Bovero: Se eu soubesse, seria presidente do mundo [risos]. O que pode dizer um teórico da democracia? Os movimentos de protesto devem ocupar o lugar de não movimentos de decepção. O sentimento de falta de atenção deve ser canalizado para formas de reconquista da cena pública. Isso é muito difícil e, muitas vezes, enganoso. A chamada Primavera Árabe, por exemplo. Sabemos como foi. Engano dentro do engano. A democracia digital tem produzido "caras vazias". Elas emergem dentro desse contexto. A democracia pode ser o único remédio para a crise da própria democracia.
Valor: Há duas correntes entre os pensadores políticos: uma, que detecta uma crise de poder, que é difícil exercer o poder, e outra, em que a questão é que o poder está muito concentrado em determinado segmento, por exemplo, o financeiro. O que o senhor pode dizer a esse respeito?
Bovero: Qual poder? O conceito de poder mais básico é de Thomas Hobbes. O poder são os meios de que uma pessoa ou grupo pode dispor. São três os grandes poderes: o econômico, o que Bobbio chamava de ideológico, que tem controle sobre as consciências - antigamente, as igrejas, hoje os meios de comunicação, ampliado para abranger aqueles que controlam o enorme mundo da internet - e o poder político, a lei ou as normas. Qual poder pesa mais hoje? O econômico, porque as classes políticas que se formaram durante os anos que chamo de "os 40 não gloriosos" [parodiando a denominação "os 30 gloriosos" de Jean Forastié, amplamente aceita pela literatura econômica, para definir o intervalo entre 1945 e 1975, quando o mundo viveu seu período mais longo de crescimento], de 1975 até agora, se transformaram em servos dos grandes poderes econômicos. Como falei, aceitaram a desautorização do poder político. Além da questão de como se organiza o poder político, as formas de articulação do poder político empurram para mais liderismo, personalização e crescimento dos poderes executivos. De um lado, esses executivos deixaram de ser aqueles que executam frente ao parlamento e outras formas da representação coletiva. Por outro lado, só esses executivos executam mais facilmente os mandos funcionais do poder econômico.
Valor: E assim chegamos a uma crise de representação.
Bovero: Sim. Isso conduz a um distanciamento das pessoas, que não se reconhecem em seus representantes. Esse distanciamento, essa decepção generalizada, levou o grau de confiança nas classes políticas a ser um dos mais baixos, em todo o mundo, em todas as épocas. Outro aspecto complementar é a corrosão da qualidade dos representantes. Isso, em geral, é favorecido pelos processos que alimentam o liderismo, enfraquecem os legislativos e dificultam o debate público entre opiniões distintas.
Valor: Entre tantas lições e a imensa herança intelectual de Norberto Bobbio, qual ponto destacaria que pode mais nos ajudar a enfrentar os desafios da democracia?
Bovero: É realmente uma imensa obra e difícil de encontrar apenas um ponto entre tantas coisas brilhantes que ele escreveu. Mas é o que Bobbio chamava das "promessas não cumpridas" da democracia. Uma delas, principalmente, a falta da educação política para a cidadania. A construção do indivíduo enquanto cidadão. Acrescento a isso o termo analfabetismo político. O que fazemos, nós, os professores, os formadores de opinião, os intelectuais para alfabetizar essas pessoas? É a pergunta.